quarta-feira, 7 de março de 2007

Para seres humanos, não para as leis

Muito em síntese, a história é assim: numa estradinha do Município de Salvaterra, na paradisíaca e talvez afrodisíaca Ilha do Marajó, "ele" ofereceu carona de bicicleta para "ela", na época com 13 anos. A certa altura, propôs que mantivessem relações sexuais. "Ela" topou. Findo o ato, propôs que se encontrassem no dia seguinte numa piçarreira. "Ela" foi. Transaram novamente. Depois disso, começaram a namorar. "Ele" até frequentava a casa "dela". O pai "dela" permitiu que os dois se casassem.

Mas o Ministério Público se meteu na história e denunciou o rapaz por crime de estupro, praticado com violência presumida, em face da idade da suposta vítima. Mesmo com a moça dizendo não entender porque sua mãe procurara a polícia e admitindo ter perdido a virgindade com outra pessoa, mais remotamente, "ele" chegou a ficar alguns dias preso.

A defesa alegou mudança de costumes sociais e que os namorados, por sua baixa instrução, nem aquilatavam a ilicitude de manterem relações sexuais. Destacou a intenção de casamento.

O Ministério Público, claro, foi insuportavelmente tecnicista. Discursou que a lei existe para proteger os menores de abusos (correto, mas deveria depender da constatação de um abuso), que o consentimento da menor não aproveitava ao rapaz e que a presunção de violência é absoluta (o que está errado). O juiz, embarcando na lei do menor esforço, condenou o réu a 7 anos de reclusão, em regime fechado.

Ontem, a 1ª Câmara Criminal Isolada do Tribunal de Justiça do Estado do Pará acolheu, à unamidade, o voto do Des. João Maroja e absolveu o réu. O acórdão, que será publicado nos próximos dias, ficou assim ementado:


APELAÇÃO. RELAÇÕES SEXUAIS CONSENTIDAS POR MENOR DE TREZE ANOS. NAMORO PÚBLICO, PERMITIDO PELA FAMÍLIA DA MENOR. PROTEÇÃO CONTRA ABUSO SEXUAL. MUDANÇA DE MENTALIDADE SOCIAL. RELATIVIDADE DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. ESTUPRO NÃO CONFIGURADO.
I – Incontroverso nos autos que o apelante manteve relações sexuais com menor de treze anos, por duas vezes, mediante o consentimento da mesma, que inclusive admitiu não ser mais virgem na época, já tendo se relacionado sexualmente com um adolescente. Incontroverso também que, após tais fatos, o apelante passou a manter namoro público com a menor, freqüentando a sua casa, havendo o consentimento paterno inclusive para o casamento.
II – Embora a norma que prevê a violência presumida atenda ao superior interesse da sociedade de proteger a infância e a adolescência de abusos, especialmente sexuais, imputar o delito de estupro ao apelante, numa conjuntura dessas, ignora a realidade atual, os valores sociais dos envolvidos e a interpretação, já nem tão recente, dada aos delitos sexuais pela doutrina e pela jurisprudência. In casu, o maior efeito prático da ação penal, com a prisão do acusado, ainda que por pouco tempo, foi a separação do casal.
III – Só há estupro se a mulher é constrangida à conjunção carnal, mediante uma das modalidades de violência. A presunção desta, em relação aos menores de quatorze anos, é relativa, podendo ser elidida se confessada ou demonstrada a aquiescência da pretensa vítima, ou o erro justificado do agente quanto à idade da mesma.
IV – Inexistente a violência, elementar do tipo de estupro, e portanto o dolo de abuso sexual, resta descaracterizado o delito, por ausência de tipicidade. Sentença reformada para absolver o réu (CPP, art. 386, III). Decisão unânime.

É como diz o voto do desembargador: "é dever do magistrado lembrar que deve aplicar o Direito para satisfação dos seres humanos, não dos códigos e leis que sequer criaturas conscientes são". Por increça que parível, muitos não sabem disso.

3 comentários:

Anônimo disse...

Yúdice, é interessante como os tecnocratas agem. Priorizam somente o texto frio da lei. O ser humano é colocado de escanteio. No caso que tu apresentastes, o Ministério Público, deveria ser responsabilizado por dano moral. Eu, se advogado do réu, faria isso. É revoltante. Enquanto os tubarões estão a solta devorando o patrimônio público, alguns promotores estão precoupados em fazer esse tipo de denúncia. Definitivamente, a legsilação penal deste país precisa mudar.Precisa se adequar aos novos tempos. Essa questão do estupro presumido precisa ser revista, pois, no Pará, a nossa realidade é outra. Eu que estou lotado numa comarca do interior, vejo isso diariamente. Mães com 12, 13 anos.
Yúdice, mudando de assunto, quero fazer uma pós-graduação na área criminal, a distancia, qual vc me recomenda?

Carlos Barretto  disse...

Fantástico este post, Yúdice. Resgata um aspecto humanitário, que muitas vezes esquecemos nos mais variados campos da atividade laboral do ser humano.
Fiquei encantado.
Abs

Yúdice Andrade disse...

Pois é, Márcio, vês isso todos os dias. Logo, deves estar bem mais capacitado a identificar a diferença entre violência e vontade, entre abuso e exercício da liberdade, mesmo por alguém muito jovem, do que muitos juízes que, dominados pela Lei como esta fosse uma coisa viva, parecem esquecer que vivem no mesmo mundo que nós.
Barretto, professores, juristas e médicos, para ficar em apenas três exemplos, precisam ser humanos trabalhando para humanos. Sem essa perspectiva, nem merecem existir. Tentar lembrar as pessoas disso todos os dias é uma das tarefas que me impus.