Objeto de notável controvérsia e fonte de irritação nos brasileiros, existe, para variar, muita ignorância a respeito. A maior dela consiste no fato de as pessoas acreditarem que houve a criminalização dos castigos físicos contra crianças e adolescentes. Mas a verdade é que não se trata disso. Muito ao contrário, ninguém vai para a cadeia por causa da nova lei. Vamos aos fatos.
A lei sob comento (tecnicamente, só pode ser chama de lei após sancionada) insere alguns artigos novos no Estatuto da Criança e do Adolescente e modifica a redação de outros. No que interessa à vida doméstica dos brasileiros, houve duas grandes inserções:
“Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:
I – castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:
a) sofrimento físico; ou
b) lesão;
II – tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:
a) humilhe; ou
b) ameace gravemente; ou
c) ridicularize.”
“Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:
I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;
III – encaminhamento a cursos ou programas de orientação;
IV – obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;
V – advertência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.”
Ao contrário do que muitos pensam, não estamos tratando exatamente de uma novidade. O ECA já é inspirado pela doutrina da proteção integral e já previa uma série de deveres à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público, tais como a proteção à integridade física e o respeito, dentre outras. O art. 5º já determinava que toda criança e adolescente deveria ser posto a salvo de violência, crueldade e opressão, inclusive por omissão, com diversos desdobramentos. O art. 18 já determinava o dever de todos de "velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor".
Os dois novos artigos são um prolongamento desta regra e se inserem no título dos direitos fundamentais, no capítulo do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade. E o problema todo parece residir sobre o fato de que os possíveis agressores, aqui, são os próprios pais ou responsáveis, não estranhos. Nesse ponto, a polêmica desvela uma certa esquizofrenia do nosso povo: ao mesmo tempo em que crianças e adolescentes são cada vez mais idiotizados por suas famílias — movidas pela insana convicção do direito à felicidade, com base no que não se dá limites ou educação, nem se lhes ensinam valores —, reclama-se uma suposta prerrogativa de facultar às famílias um poder quase irrestrito de decidir como agir, mesmo que isso implique em baixar a porrada, de vez em quando. Vai entender.
A terceira inserção diz respeito ao poder público e se refere a políticas públicas:
“Art. 70-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes, tendo como principais ações:
I – a promoção de campanhas educativas permanentes para a divulgação do direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos;
II – a integração com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com o Conselho Tutelar, com os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e com as entidades não governamentais que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente;
III – a formação continuada e a capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social e dos demais agentes que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente para o desenvolvimento das competências necessárias à prevenção, à identificação de evidências, ao diagnóstico e ao enfrentamento de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente;
IV – o apoio e o incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam violência contra a criança e o adolescente;
V – a inclusão, nas políticas públicas, de ações que visem a garantir os direitos da criança e do adolescente, desde a atenção pré-natal, e de atividades junto aos pais e responsáveis com o objetivo de promover a informação, a reflexão, o debate e a orientação sobre alternativas ao uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante no processo educativo;
VI – a promoção de espaços intersetoriais locais para a articulação de ações e a elaboração de planos de atuação conjunta focados nas famílias em situação de violência, com participação de profissionais de saúde, de assistência social e de educação e de órgãos de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Parágrafo único. As famílias com crianças e adolescentes com deficiência terão prioridade de atendimento nas ações e políticas públicas de prevenção e proteção.”
A primeira alteração redacional no texto foi esta, que diz respeito à ação do Conselho Tutelar, para apuração de infrações:
“Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
............................................................” (NR)
A segunda alteração é a única parte da nova lei que tem repercussão criminal e, mesmo assim, não diz respeito às famílias, mas a profissionais que atendam crianças e adolescentes, envolvendo um crime punido com multa; nada de prisão:
“Art. 245. Deixar o profissional da saúde, da assistência social ou da educação ou qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento envolvendo suspeita ou confirmação de castigo físico, tratamento cruel ou degradante ou maus-tratos contra criança ou adolescente:
Pena – multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.” (NR)
Uma última inserção manda incluir nos currículos escolares questões sobre prevenção de todas as formas de violência contra crianças e adolescentes.
Creio que duas críticas à iniciativa são inevitáveis. A primeira diz respeito à vagueza e imprecisão dos termos da lei. O "castigo físico" é definido por sua capacidade de provocar "sofrimento físico" ou lesão. A parte da lesão é fácil de entender, mas qual o sentido de "sofrimento físico"? Parece que o legislador quis limitar, mas se a própria ideia foi vendida como "lei da palmada", somos naturalmente inclinados a entender que houve vedação absoluta a qualquer ação disciplinar de natureza física, mesmo uma palmada leve.
O "tratamento cruel ou degradante", embora para um jurista seja algo mais delimitado, é ainda mais dúbio. Brigar com uma criança em público, mesmo sem encostar nela, mas submetendo-a à censura de terceiros, é um ato que provoca humilhação? Obviamente, a criança não ficará satisfeita, mas isso é humilhação? Serei punido por fazer isso? Honestamente, não sei responder.
A segunda crítica diz respeito à dificuldade de fiscalizar o cumprimento da norma, valendo lembrar que o ECA é uma das leis mais desrespeitadas que existem, a despeito de suas belas e refletidas declarações de intenções. O aumento da complexidade do ordenamento jurídico traz consigo o aumento da contingência, criando maiores condições para a ineficácia da norma e para o descrédito por parte dos cidadãos.
Uma última crítica a ser feita não atinge o texto da lei, e sim o comportamento das pessoas.
Cresci escutando minha mãe dizer que apanhou e não morreu. Apanhou de cinto, "pelo lado da fivela"; de fibra de malva; de galho de goiabeira e outros engenhos criados pela perversidade de outrora. Outras tantas pessoas já me disseram que, em suas famílias, quando um filho apanhava, apanhavam todos, para dar exemplo e porque isso seria uma espécie de "justiça". Aí me recordo de que apanhávamos por não querer comer certo tipo de alimento ou por não vestir a roupa que fora separada para nós. Também recordo a humilhação que isso provocava, porque vinha junto com uma aguda percepção da própria impotência. Não consigo assimilar como essas práticas "educacionais" pudessem ter algum valor, ainda mais a ponto de serem celebradas por tantos hoje em dia.
Sempre disse que não sou contrário ao que chamo cinicamente de "palmadinha evangélica", de modo que, aparentemente, alinho-me ao grupo que se opõe à nova lei. Mas o ato deveria ser empregado no último caso e sempre com uma razão. Quando dei a tal palmada, não foi sequer para doer; junto com ela, subi o tom de voz e criei um cenário que mais impressionava do que machucava. E mesmo assim aquele ato me machucou. Não entendo como alguém possa ficar feliz por bater em um filho. Posso não me arrepender, mas não me orgulho. Considero uma vergonha esse orgulho.
Também não posso ignorar que muitos dos que bradam sobre o seu direito de educar a prole, que não pode ser limitado por terceiros, estão muito longe de ser a pessoa lúcida, ponderada e criteriosa que supõem. Muitos sequer mereciam ser pais. Muitos não reuniriam condições mínimas para passar no teste, se houvesse a tal carteira de habilitação para ser pai/mãe, de que fala minha esposa. E é do alto de uma arrogância que só não extrapola a ignorância que essas pessoas falam.
"Apanhei e não morri". Isso é mérito? Era para morrer? O fato de eu ter sobrevivido prova que o método empregado era o correto? E se as gerações se sucedem, mas continuamos agindo como agiam os indivíduos de séculos atrás, onde está a evolução da sociedade? Somos melhores do que nossos antepassados? Não, somos piores. Porque eles realmente pertenciam a outros padrões culturais. Hoje, discursamos sobre amar nossas crianças e ultrapassamos pouco o discurso.
Por fim, quando a tal lei entrar em vigor, imagino que, tão logo apagados os holofotes iniciais (a mídia cuidará disso), será marcada por seu caráter altamente inócuo. Se o restante do ECA já é marcado por isso, por que a palmada não seria? Para refletir.
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Creio que duas críticas à iniciativa são inevitáveis. A primeira diz respeito à vagueza e imprecisão dos termos da lei. O "castigo físico" é definido por sua capacidade de provocar "sofrimento físico" ou lesão. A parte da lesão é fácil de entender, mas qual o sentido de "sofrimento físico"? Parece que o legislador quis limitar, mas se a própria ideia foi vendida como "lei da palmada", somos naturalmente inclinados a entender que houve vedação absoluta a qualquer ação disciplinar de natureza física, mesmo uma palmada leve.
O "tratamento cruel ou degradante", embora para um jurista seja algo mais delimitado, é ainda mais dúbio. Brigar com uma criança em público, mesmo sem encostar nela, mas submetendo-a à censura de terceiros, é um ato que provoca humilhação? Obviamente, a criança não ficará satisfeita, mas isso é humilhação? Serei punido por fazer isso? Honestamente, não sei responder.
A segunda crítica diz respeito à dificuldade de fiscalizar o cumprimento da norma, valendo lembrar que o ECA é uma das leis mais desrespeitadas que existem, a despeito de suas belas e refletidas declarações de intenções. O aumento da complexidade do ordenamento jurídico traz consigo o aumento da contingência, criando maiores condições para a ineficácia da norma e para o descrédito por parte dos cidadãos.
Uma última crítica a ser feita não atinge o texto da lei, e sim o comportamento das pessoas.
Cresci escutando minha mãe dizer que apanhou e não morreu. Apanhou de cinto, "pelo lado da fivela"; de fibra de malva; de galho de goiabeira e outros engenhos criados pela perversidade de outrora. Outras tantas pessoas já me disseram que, em suas famílias, quando um filho apanhava, apanhavam todos, para dar exemplo e porque isso seria uma espécie de "justiça". Aí me recordo de que apanhávamos por não querer comer certo tipo de alimento ou por não vestir a roupa que fora separada para nós. Também recordo a humilhação que isso provocava, porque vinha junto com uma aguda percepção da própria impotência. Não consigo assimilar como essas práticas "educacionais" pudessem ter algum valor, ainda mais a ponto de serem celebradas por tantos hoje em dia.
Sempre disse que não sou contrário ao que chamo cinicamente de "palmadinha evangélica", de modo que, aparentemente, alinho-me ao grupo que se opõe à nova lei. Mas o ato deveria ser empregado no último caso e sempre com uma razão. Quando dei a tal palmada, não foi sequer para doer; junto com ela, subi o tom de voz e criei um cenário que mais impressionava do que machucava. E mesmo assim aquele ato me machucou. Não entendo como alguém possa ficar feliz por bater em um filho. Posso não me arrepender, mas não me orgulho. Considero uma vergonha esse orgulho.
Também não posso ignorar que muitos dos que bradam sobre o seu direito de educar a prole, que não pode ser limitado por terceiros, estão muito longe de ser a pessoa lúcida, ponderada e criteriosa que supõem. Muitos sequer mereciam ser pais. Muitos não reuniriam condições mínimas para passar no teste, se houvesse a tal carteira de habilitação para ser pai/mãe, de que fala minha esposa. E é do alto de uma arrogância que só não extrapola a ignorância que essas pessoas falam.
"Apanhei e não morri". Isso é mérito? Era para morrer? O fato de eu ter sobrevivido prova que o método empregado era o correto? E se as gerações se sucedem, mas continuamos agindo como agiam os indivíduos de séculos atrás, onde está a evolução da sociedade? Somos melhores do que nossos antepassados? Não, somos piores. Porque eles realmente pertenciam a outros padrões culturais. Hoje, discursamos sobre amar nossas crianças e ultrapassamos pouco o discurso.
Por fim, quando a tal lei entrar em vigor, imagino que, tão logo apagados os holofotes iniciais (a mídia cuidará disso), será marcada por seu caráter altamente inócuo. Se o restante do ECA já é marcado por isso, por que a palmada não seria? Para refletir.
3 comentários:
Também odeio esse negócio de "Apanhei e não morri", e qualquer tipo que "espancamento justificável" realizado por muitos pais até mesmo no dia de hoje. Em diversos aspectos a sociedade estagnou na evolução, triste ver isto. Não consigo entender alguém que se satisfaz batendo em um filho, só o psiquiatra pra entender e tratar.
Boris Casoy disse que a lei era fascista, e que o Estado não deveria se meter na família.
Deve ter dito isso "do alto de sua vassoura".
Gostei da análise. É patético ver o Estado, que sequer consegue impedir que um rolo de papel higiênico diminua de 40 para 30 metros sem que o preço também diminua proporcionalmente, se arvorar em querer "fiscalizar" o sacrossanto lar dos brasileiros.
Kenneth
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