terça-feira, 4 de novembro de 2014

Deus vai desistir de nós

O Congresso Nacional é uma casa de representação política do povo. Nada mais natural, portanto, que seus integrantes sejam representativos desse povo, o que torna previsível, e até desejável, que surjam as representações classistas. Nada mais natural que, em uma monarquia, haja no parlamento pessoas preocupadas com os direitos da realeza e da aristocracia; ou que não haja ninguém preocupado com índios em países sem população indígena.

O Brasil, com suas notórias imensidão territorial e diversidade étnica, deveria possuir um parlamento de inúmeras cores, origens e sotaques. Mas a verdade é que nunca foi assim. Muito pelo contrário. A formação elitista da população brasileira jamais abriu mão de um way of life marcado pela mais grosseira distinção entre "cidadãos" e "ralé", para usar as expressões do sociólogo Jessé Souza.

Não importa o quão reacionário você seja, não há como negar que a discriminação, no país, era questão jurídica, dentre outros motivos, porque o sufrágio censitário foi uma determinação constitucional, de 1824 a 1891, sem esquecer que a malsinada "Polaca", outorgada por Getúlio Vargas em 1937, negava direitos políticos aos mendigos (art. 117, "c", posteriormente alterado pela Lei Constitucional n. 9, de 1945). Aliás, esse apartheid social era uma questão de origem, por causa das leis legitimando a escravidão.

O perfil do Congresso Nacional sempre foi extremamente elitista, no pior sentido da palavra. Procure saber, por exemplo, o nível de renda dessas pessoas. Procure saber quantos são negros ou quantos são índios (esta é superfácil: nenhum!). Faça um levantamento retroativo e descubra que sempre foi assim. Nem mesmo a relação entre homens e mulheres consegue ser minimamente proporcional. O pleito do último dia 5 de outubro aumentou em 8,51% o tamanho da bancada feminina para a próxima legislatura. Gostou? Então saiba que isso representa um incremento de 47 para 51 mulheres, de um total de 513 cadeiras disponíveis. No Senado, a próxima legislatura deve contar com 13 mulheres, entre 81 cadeiras.

Esses números dependem de algumas suplências. Caso eles se confirmem, em 2015 o Brasil terá 64 mulheres no Congresso Nacional, ou 10,77% dos 594 assentos. Isso em um país que, segundo o Censo de 2010 do IBGE, tinha 51% de mulheres. Daí você me diz se realmente acredita que desse convescote entre mais ou menos iguais podem sair, de fato, políticas igualitárias.

Sem nenhuma coincidência, chegamos a números nada gentis: quantos parlamentares respondem a ações na justiça ou a procedimentos perante tribunais de contas? Segundo o Projeto Excelências, da organização Transparência Brasil, 56,3% dos deputados estão comprometidos; dos senadores, são 50,6%, considerados apenas os parlamentares atualmente na ativa.


Fonte: http://www.excelencias.org.br/@casa.php?tribs

Com horror, vi há algumas semanas a notícia de que a bancada evangélica, no pleito do último dia 5, aumentou em  14%, passando de 70 para 80 autoproclamados servos de Deus. Esse dado contribui para a afirmação mais geral de que, a partir de 2015, teremos a composição mais conservadora desde 1964, como alertou o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), acrescentando à receita militares, policiais e ruralistas.

Eu já joguei a toalha. Os próximos anos tendem a ser muito obscuros no país. Com um congresso desses, somente um presidente igualmente reacionário e comprometido com o atraso humano e social poderia governar com tranquilidade. Qualquer pessoa que pretendesse implementar políticas públicas fundadas nos direitos humanos, em qualquer setor, enfrentaria ingentes resistências. Não são tempos auspiciosos para se pensar nos vulneráveis nem em reforma da legislação penal. Vamos de mal a pior.

Mas, pelo amor de Deus, não me confunda com certos colunistas de revistas ordinárias, que fazem fama denegrindo o Brasil. A despeito deste desabafo conjuntural, continuo sendo um romântico; alguém que tem dificuldade para isso, mas continua sentindo esperança de que, em algum momento, as pessoas cairão em si e as coisas começarão a funcionar. A despeito dos pedidos de intervenção militar.

Mas isso não ocorrerá espontaneamente: dependerá acima de tudo da educação. De uma educação cidadã que comece em casa, nas mínimas atitudes, e que se alastre para a escola, onde deve ser reforçada, e para as demais interações humanas. Certamente por isso acabei fazendo minha escolha por ser um trabalhador da educação. Achei que era o meu lugar. Quero estar no meio disso, quando acontecer.

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