Se somarmos tudo a que assisti da novela Império, que terminou no dia 14 deste mês, não soma um capítulo. Eu apenas via as manchetes quando acessava os portais de notícias e lia um ou outro comentário dos amigos de Facebook. E é por causa destes últimos que sei que a novela teve um desfecho muito triste e violento. Vi pela internet uma parte do capítulo final e foi uma profusão de crimes, com sequestro, assassinatos sucessivos, diálogos brutais e até palavrões pesados em um horário no qual antes eles não apareciam.
Ao que parece, Aguinaldo Silva, autor consagrado e com inúmeros sucessos merecidos no currículo, seguiu a receita dos seriados criminais americanos, que ocupam um percentual imenso da grade televisiva no mundo, sendo populares p. ex. em minha casa. Mas há ônus para isso. Em seu livro, Em busca das penas perdidas, o grande penalista Eugenio Raúl Zaffaroni escreveu uma crítica contundente (com o detalhe de que a obra foi originalmente publicada em 1989):
É importante lembrar que as crianças costumam passar mais horas diante da televisão do que diante da professora. As séries policiais são as mesmas em todo o continente; mais de 60% do material de televisão em nossa região marginal é importado; e boa parte do resto apenas imita grosseiramente o que vem de fora. O material transnacionalizado (as séries policiais) criam demandas de papel dirigidas aos membros das agências penais nacionais que nada têm a ver com os requerimentos nacionais (os funcionários devem comportar-se como os personagens das séries). Os seriados glorificam o violento, o esperto e o que aniquila o "mau". A "solução" do conflito através da supressão do "mau" é o modelo que se introjeta nos planos psíquicos mais profundos, pois são recebidos em etapas muito precoces da vida psíquica das pessoas.
(...) O desprezo que os "seriados" dos últimos anos demonstram pela vida humana, pela dignidade das pessoas e pelas garantias individuais não é simples produto do acaso, mas uma programada propaganda em favor do reforço do poder e do controle social verticalizado-militarizado de toda a sociedade.1Império já era diferente do modelo clássico de novelão desde a sua concepção, pois seu protagonista não era o mocinho de valores inegociáveis e ações altruístas ao ponto do sacrifício. Era um tremendo escroque, amoral e violento, cujo egocentrismo o motivou a tomar como ponto de honra matar o próprio filho, ao descobrir quem era o seu maior inimigo. No entanto, em parte por causa do enorme talento do ator Alexandre Nero, e em parte por sua aparência, que agradou a mulheres e a homens, o personagem era querido pelo público. Já se avolumam os exemplos de que o telespectador brasileiro tem uma inegável preferência pelos protagonistas de caráter duvidoso.
Mal se dissiparam os sons dos tiros de Império, entrou em cena Babilônia, escrita por outro teledramaturgo de primeira linha, com largo e bem sucedido currículo: Gilberto Braga. Gosto muito de Gilberto Braga.
O autor já disse a que veio desde o título de sua trama, uma referência bíblica de pecado. A novela tem três protagonistas e duas delas são vilãs em disputa para ver quem é a mais ordinária. Logo no primeiro capítulo, assassinato e furor sexual deram o tom da narrativa. Tendo nos papeis principais duas grandes e carismáticas atrizes, Glória Pires e Adriana Esteves, o projeto parece querer a simpatia do público para essas mulheres odiosas.
Contudo, o assunto mais comentado de Babilônia foi mesmo o beijo entre duas mulheres que mantêm uma relação conjugal há muitos anos, interpretadas por dois dos maiores nomes das artes cênicas brasileiras: Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. A obrigação de ter homossexuais em destaque em todas as novelas (do horário nobre, ao menos), sem exceção, chegou ao seu ápice até aqui, considerando a idade das atrizes, em um país que nega aos idosos o direito à sexualidade. Aliás, que nega a qualquer pessoa o direito de viver do jeito que prefira, sem que isso cause mal a ninguém.
Pelo visto, não existe nada pior no mundo do que a homossexualidade. Isso me faz lembrar de quando estava lendo o Malleus maleficarum e caí na gargalhada com o seguinte trecho:
Cumpre também chamar a atenção para o fato de que, embora as Escrituras falem de Íncubos e Súcubos a copular com mulheres, em nenhum lugar se lê que tais demônios incidem nos vícios contra a natureza. Não falamos apenas da sodomia, mas todos os outros pecados em que o ato sexual é praticado fora do canal correto. E a enorme gravidade em pecar-se dessa maneira é demonstrada pelo fato de que todos os demônios igualmente, de qualquer ordem hierárquica, abominam e se envergonham de cometer tais atos.2Como se pode ver, desde sempre o mal existe e está disposto a destruir o mundo por mero capricho. Mas pior do que tudo isso é sentir desejo por alguém do mesmo sexo. Deixo à evidente racionalidade daqueles que estão empreendendo campanhas contra a novela a explicação sobre esse mistério. Afinal, quando escuto a expressão "valores da família brasileira", penso no movimento Tradição, Família e Propriedade e agremiações congêneres e sei que estamos diante de lunáticos de ultradireita, dominados por discursos de ódio e de falso moralismo, capazes de negar direitos fundamentais por sua absoluta incapacidade de reconhecer o direito à alteridade. Gente que deveria ter sido eliminada no útero, via abortamento espontâneo, se a natureza fosse mesmo tão sábia quanto dizem.
De minha parte, o que motivou esta postagem é um sentimento de que a maior emissora de TV do país, que tem na teledramaturgia o seu mais importante filão, está apelando demais para o mundo cão a fim de manter a audiência, que já não é a mesma de antes, graças sobretudo à concorrência dos canais a cabo e da internet (já que as outras emissoras bem que tentaram, mas não conseguiram enfrentá-la à altura).
Anos atrás, o programa A grande família, também da Rede Globo, foi apontado como o que mais agregava valores à família brasileira. Ali, a amoralidade do personagem Agostinho Carrara estava em permanente confronto com a honestidade de Lineu Silva. Ao final de cada episódio se podia extrair uma lição positiva. A maldade, digamos assim, cumpria um papel de fazer escada para o bom, o ético, o respeitável. O que estou percebendo na atual safra de novelas é que a funcionalidade do mal como inspiração para o bem desapareceu. E quando resta apenas o vício pelo vício, em uma espécie de quentintarantinização3 da teledramaturgia, começamos a naturalizar o mal, a ponto de achar que essa é a maneira normal de viver ou que não pode ser diferente.
É curioso que a Globo, todavia, se ufane de seu marketing social, apresentado justamente nas novelas, por causa de sua imensa penetração nos lares brasileiros. A despeito dos muitos senões que se pode suscitar contra sua obra, a autora Glória Perez é pioneira nesse ramo e, justiça lhe seja feita, seus trabalhos sempre abraçam alguma causa relevante. Transplante de órgãos, pessoas desaparecidas, pedofilia pela internet, dependência química e seus danos sobre adictos e familiares, tráfico de pessoas são alguns dos temas já abordados. Há sempre algo para se ver que inspire uma reflexão positiva. Novelas são narrativas extensas, compostas por várias subtramas. Por que não reservar algumas delas para discutir algo bom?
Se queremos fazer uma crítica séria e merecedora de atenção, que seja esta: coloque-se a TV a serviço de um objetivo relevante e útil para a sociedade. Neste ponto, vale lembrar que os seriados americanos, ao menos os de hoje, agem dessa forma. Não todos e nem sempre, mas é possível extrair do emaranhado de misérias humanas um pouco de generosidade, de empatia, de luta contra preconceitos, de valorização do ser humano. Precisamos disso com a máxima urgência. E sabemos fazer isso tão bem ou até melhor do que os yankees. Mas precisamos querer.
1 A crítica do autor deve ser enfrentada com prudência, para evitarmos deslumbramentos intelectuais. A transcrição aqui é provocativa, não implicando em adesão irrestrita, até para evitar teorias conspiratórias. No entanto, parece-me existir um bom fundo de verdade nela. Ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, pp. 128-129.
2 Famoso manual de "identificação" de bruxas e roteiro de procedimentos para inquisidores, publicado originalmente em 1487. Minha edição é esta: KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. 23ª edição, Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2014, p. 92.
3 Mais uma vez brincando com o militante que odeia a Globo, interpretado por Marcelo Adnet, que inventa esses neologismos absurdos a partir do nome de pessoas. Quentin Tarantino você conhece: cineasta de renome mundial, responsável por filmes tratados como cult, mas que se você espremer sai apenas violência gratuita exibida com requintes de plasticidade. Tudo bem, ele pode ter melhorado mais recentemente. Conservo, porém, minha impressão de que apreciar sua obra é indicativo de que você também é um psicopata.
Um comentário:
parabéns pela lucidez do comentário.
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