Nada surpreso com o ocorrido, debruço-me sobre uma lista, elaborada pelo Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, contendo dez razões para sermos contrários à redução da maioridade penal. Minha posição é conhecida, sou contrário por princípio, mas há anos venho temendo que esta seja uma situação para a qual vamos mesmo caminhar. Afinal, leis são elaboradas por políticos, que se movem, em sua grande maioria, pelos sobreditos motivos eleitoreiros e a pauta da segurança pública é uma das mais dramáticas atualmente.
Nem a rejeição do governo federal à PEC adianta, nestes tempos em que sua credibilidade e capacidade de ação e de articulação com o Congresso Nacional estão mais baixos que cloaca de pato. A discussão retorna ao parlamento em um momento péssimo, pois o Executivo não pode contar com a colaboração do Legislativo e levar esta controvérsia a níveis estridentes pode ajudar a esfumaçar a atenção do público sobre os escândalos de corrupção do qual muitos desses mesmos parlamentares estão acusados. Se no geral a maioria dos brasileiros já é favorável à medida, imagine-se na atual conjuntura.
Como não adianta manter o debate no nível ideológico, precisamos enfrentar a questão com coragem e assertividade. Até porque toda lei deveria corresponder ao contexto social de cada tempo e lugar. Minhas impressões sobre os argumentos que o CRP/MG suscitou seguem abaixo.
"É um retrocesso ao Estatuto da Criança e do Adolescente"
O sistema de justiça criminal e a mídia brincam com a ideia de que o ECA chancela o frio cálculo prospectivo sobre cometer crimes |
O ECA é uma excelente lei em seu conteúdo, mas deu o azar de ser produzido no Brasil, onde jamais houve interesse por sua efetivação. O que temos é um profundo preconceito, deliberadamente instilado por empresários morais com o amplo apoio da mídia, sugerindo que o ECA é o fundamento normativo da impunidade.
Assim, uma mitigação de suas regras protetivas seria muito bem recebida pelo grande público, que certamente pressionará os parlamentares à aprovação da medida. Para irmos em sentido contrário, precisaríamos desmistificar a função do ECA, mas isso seria um trabalho educativo e, como tal, árduo e lento, que esbarraria ainda na convicção dos brasileiros em não mudar de opinião.
"O adolescente que comete ato infracional já é responsabilizado com medidas socioeducativas"
É verdade. A verdade complementar é que, ao contrário do previsto pelo próprio ECA, as medidas socioeducativas não poderiam ser similares à prisão comum, mas é exatamente o que acontece. Como sempre digo, este é o campo onde reinam os eufemismos: não existe "crime", e sim "ato infracional"; não existe "pena", e sim "medida socioeducativa"; não existe "prisão", e sim "apreensão". Mas no mundo real, o pau quebra no costado do mesmo jeito, pelos mesmos fatores criminógenos e de criminalização (que são coisas distintas).
O tipo de afirmação que sempre tem adeptos absolutamente convictos |
Penso que para este problema a indicação seja abrir um debate franco sobre as espécies de medidas socioeducativas, em sua concepção e em sua execução. Precisamos escutar as pessoas, mesmo as que defendem a pena de morte, p. ex. Ignorá-las não diminui o seu raio de ação e pode facilitar a adoção de medidas puramente punitivistas em vez de se conceber um sistema racional, viável e humanizado.
Outro problema é que os próprios agentes de segurança pública, por ignorância, muitas vezes acreditam não poder responsabilizar o menor infrator (o "adolescente em conflito com a lei"). Em uma situação de conflito, até fazem apreensões mas, tão logo se disperse a atenção em torno, liberam o adolescente. Isso ajuda a reforçar a ideia de que a impunidade é legal e institucional. A solução seria treinar melhor os agentes, a fim de que os mesmos cumprissem as obrigações de sua alçada e deixassem ao Ministério Público e ao judiciário a decisão sobre a existência de ato infracional e as consequências cabíveis. Contudo, investir em treinamento de policiais está longe de ser objetivo do poder executivo.
"Não educa nem orienta: pune!" e "Não é a forma adequada de conduta para a constituição de sujeitos sadios"
Conforme dito acima, a questão é justamente querer punir o máximo possível, então a este argumento o público em geral responderá que é exatamente o que se deseja. Além disso, apenas à custa de ingenuidade se pode conferir à pena criminal ou à medida socioeducativa um caráter de educação e, mais ainda, de constituição de "sujeitos sadios", seja lá o que isso for. Na verdade, a coerção penal (aqui tomada em sentido amplo) pode ser, no máximo, uma ocasião para se aplicar sobre o indivíduo providências como escolarização ou profissionalização. Nesse caso, ele até poderia aprimorar-se, mas não graças à coerção, e sim à oportunidade de formação. Se assim é, caberia perguntar: então porque não se insistiu na formação antes de o indivíduo ser alcançado pelo sistema punitivo?
Ainda mais importante é superar as antigas concepções correcionalistas (não me refiro especificamente à escola penal, mas à noção de que o indivíduo considerado transgressor precisa ser recuperado moralmente), segundo as quais o Estado, quando sanciona, age à semelhança de um pai preocupado que educa o filho rebelde. Esta visão romântica mascara a função precípua do sistema punitivo, que é a de reproduzir a segregação e a desigualdade que já existem na sociedade. A meu ver, uma das razões pelas quais nos movemos em círculos nesta matéria é, justamente, o fato de que muitos, inclusive de boa fé, discutem formas de aprimorar uma finalidade da coerção que não corresponde à realidade.
"Aumenta a segregação, o preconceito e a desigualdade social" e "Trata o efeito, não a causa"
Ainda que isso possa ser mera retórica, penso que o caso não é de aumentar, mas de institucionalizar segregação, preconceito e desigualdade que estão arraigados na sociedade. Não é a lei que cria esses processos; eles já estão aí. Basta um breve passeio pelas redes sociais para constatar o crescente ódio contra toda forma de alteridade e, também, de conquista de direitos pelos segmentos sociais mais vulneráveis. Parece haver um desejo extremo de impedir, a todo custo, que surja uma sociedade mais igualitária.
Se assim for, mesmo, então a redução da maioridade penal vai exatamente ao encontro dessa sofreguidão por aumentar o abismo entre classes (ou como queiram chamar). Por consequência, também aqui não temos um argumento dissuasório.
Quanto ao argumento sobre efeitos e causas, parece-me adequado porque, se o crime já ocorreu, fatores pregressos já se tornaram ativos e, em geral, nenhum deles interessa ao processo penal, que vai até o quesito motivo do crime, sempre entendido como a situação pretexto, a que dispara a ocorrência do fato, sem se perquirir sobre a causa do motivo. A finalidade também se limita a identificar possíveis agravantes e atenuantes que, por sua natureza, giram em torno do "crime", não ajudando a entender se o fato em si era mesmo um crime, tanto no sentido de subsumir-se efetivamente à norma incriminadora quanto no sentido de ser admissível uma norma incriminadora acerca daquele conteúdo.
Por conseguinte, o sistema penal é concebido para ser reativo a uma situação específica, de modo que não sabe lidar com uma visão mais ampla do mundo e do ser humano: ele se contorce em torno do fato pretensamente criminoso e de premissas oportunistas (a mais importante delas é a reincidência). Não sendo capaz de enxergar o fato em sua inteireza, limitará a pena também aos aspectos circunstanciais, dando-se por satisfeito com isso. Assim, se a pena criminal pune o fato em si, ela é quanto basta a qualquer pessoa que não investigue o problema mais a fundo.
"Não reduz a violência" e "Apenas simplifica a questão da violência"
Eu já procurei, mas nunca consegui encontrar um exemplo, em qualquer lugar do mundo, em que a aprovação de uma lei penal mais rigorosa tenha sido efetivamente capaz de reduzir a criminalidade. No máximo, ocorre uma retração inicial, que logo desaparece. Todavia, estamos cheios de exemplos em contrário. Um olhar desapaixonado permitiria perceber que a redução da maioridade penal é uma aposta contra fatos, contra a história, contra as estatísticas. Em suma, é uma questão de vingança. Leia mais sobre o insucesso da redução da maioridade penal pela mundo.
Na semana passada, o Jornal Nacional, da Rede Globo, exibiu uma série de reportagens sobre a maioridade penal. Na matéria reservada aos Estados Unidos, que os tolos deslumbrados querem copiar a todo custo (eis o link: http://glo.bo/1MhsGzg), uma revelação interessante. O Estado de Nova Iorque admite a responsabilidade penal a partir dos 7 anos, sendo possível a imposição de prisão perpétua a partir dos 13. Mas é interessante observar que, mesmo lá, está aumentando a discussão sobre o aumento da maioridade penal, que somente seria plena aos 18. Trata-se de uma constatação das consequências perversas da punição. E aí, brasileiros? Ainda querem copiar os yankees?
Uma informação importante, contudo: o aumento dessas discussões ocorre em um período de declínio da criminalidade. Ou seja, aparentemente, apenas uma sociedade tranquilizada consegue conversar sobre reduzir a repressão. O diagnóstico é desalentador, afinal estamos a anos-luz disso. Outrossim, os americanos têm investido em um modelo de coerção que não é exclusivamente repressivo, mas contém um viés humano considerável. Usando estratégias como psicoterapia voltada para o controle da raiva e viagens para Uganda, onde os infratores conhecem a realidade de jovens desprovidos de tudo, e com isso sofrem um choque de realidade, os comportamentos têm sido alterados. Mas voltamos ao ponto: a parte da coerção que deu certo não foi a punição em si, mas o investimento humano. E, no Brasil, não se quer falar disso.
"O sistema prisional do Brasil está saturado"
O sistema prisional de boa parte do mundo está saturado, inclusive o dos Estados Unidos. Lá, superlotação e corrupção também são problemas endêmicos, ainda que o nosso cenário seja muito mais degradante. Situação diversa ocorre em conjunturas extremas. Por exemplo na Suécia, cuja taxa de criminalidade decresce desde 2004, a ponto de já terem sido fechados quatro presídios, por falta de clientela. Na Holanda, desde 2009 se discute ideia semelhante. Em 2013, o governo chegou a anunciar o fechamento de 19 presídios, tanto pela redução dos índices criminais quanto pelo uso de rastreadores. Houve reação, em parte por argumentos de que esses recursos não poderiam ser alternativas à prisão (mas quem disse isso foi a oposição, então pode ter sido insurgência oportunista). Outro argumento contrário teve relação com o fechamento de 3.400 postos de trabalho.
Uma biblioteca em penitenciária norueguesa. Quantas escolas brasileiras possuem uma semelhante? |
Fatos são fatos. Sempre me intrigou que o brasileiro só queira imitar os exemplos violentos. Quando surgem os exemplos humanos, por sinal mais bem sucedidos, eles são sumariamente ignorados. Sintomático.
"Isenta o Estado do compromisso com políticas educativas e de atenção para a juventude"
Durante a sangrenta Guerra Civil americana, o oficial da cavalaria John Dunbar tenta o suicídio de um modo inusitado: passando a cavalo em frente à linha inimiga, deixando-se fuzilar. O gesto surpreendente cria uma distração e permite que sua tropa vença a batalha. Ele é encarado como um heroi. Seu general então lhe concede um desejo, qualquer desejo. Dunbar pede: "Não deixe cortarem o meu pé."
O relato acima vem do filme Dança com Lobos (Dances with Wolves, EUA, dir. Kevin Costner, 1990) e mostra algo simples: Dunbar estava com os pés em carne viva e eles seriam amputados porque, nas condições de guerra da época, era impossível lidar com doentes. Mas bastou ele se tornou especial o bastante para o sistema, seus pés foram tratados e ele recuperou a plenitude de sua saúde. Eis a diferença entre querer gastar e ter trabalho e simplesmente jogar fora o que não está prestando. Não tenho a menor dúvida de que, reduzida a maioridade penal, ficará ainda mais difícil conseguir investimentos em projetos de assistência e educação. Não será necessário: o projeto da máquina de moer já estará implantado. O curioso é que ele é muito mais dispendioso, porém gera mais prazer. Não para mim, por certo.
Na votação de ontem, os partidos alinhados à direita votaram pela redução. Os partidos que se afirmam de esquerda se opuseram. E o PMDB, síntese do fisiologismo, liberou seus membros para votar como lhes fosse mais conveniente, do jeitinho que eles gostam. Temo que essa polarização prejudique ainda mais o debate. Afinal, o PT está empenhadíssimo em barrar a redução, tanto que já anunciou o ajuizamento de ação perante o Supremo Tribunal Federal. Eu realmente fico feliz com essa linha de ação do governo, mas lamento que ele não esteja em condições de impor essa ou qualquer outra racionalidade. Sem dúvida, pior seria se o governo também quisesse a medida populista.
Em conclusão, sigo em minha hipótese de que a PEC será aprovada daqui a algum tempo. Mas confio, por enquanto, que os ministros do STF darão uma palavra final que nos livrará dessa aberração. O problema é que o STF também sofre as pedradas dos psicopatas brasileiros e uma decisão judicial não abrandaria os nervos. Ao fim e ao cabo, se ficar tudo como está, na lei e na realidade, não teremos avançado em nada. E nem esse grave e trágico episódio de nossa história terá servido de lição.
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