sexta-feira, 12 de outubro de 2012

À margem do Círio

Todos os anos, minha mãe nos levava para o Círio. Nós sempre ficávamos na Praça do Pescador, onde as horas se sucediam e eu ali, sofrendo, sem compreender o motivo daquela agonia. No ponto em que ficávamos, confluência da Boulevard Castilhos França com a Presidente Vargas, duas coisas me afligiam: a curva fechada que a procissão precisava fazer e que sempre acarretava em empurra-empurra, quedas e algum tumulto; e a tradicional queima de fogos dos estivadores, cujo barulho me incomodava muitíssimo. Eu era criança, não entendia e minha mãe nunca foi muito democrática, então não havia esse papo de negociar com os filhos. Sequer de esclarecê-los.
Os anos se passaram e, aos 13, tornei-me espírita. Foi aí que comecei a gostar mais do Círio porque, ao contrário do que pensam os desinformados, que não são poucos, os espíritas têm um carinho extremo por Maria, por reconhecerem o papel extraordinário que desempenhou na vinda de Jesus. A missão não podia ser conferida a uma mulher qualquer: tinha que ser Maria.
A União Espírita Paraense, que eu frequentava, fica ali na Rua Osvaldo Cruz, de cara a Praça da República,  portanto na área de influência das atividades do Círio. No sábado, estávamos sob os efeitos da Trasladação, por isso o trânsito era interrompido e desviado. O resultado era que as reuniões normais, de grupos, eram substituídas por uma reunião só, invariavelmente falando sobre Maria. Eram noites bonitas, emocionantes, que me fizeram amar essa figura histórica incomparável. Somando-se isso ao fato de que minha mãe parou de nos obrigar a acompanhá-la, a liberdade recém adquirida me permitiu conhecer os meus próprios sentimentos.
Desde então, adoro o Círio e considero um privilégio viver na cidade em que ele é realizado. Naturalmente, isso não tem a ver com fé, já que se trata de um evento católico. Para mim, é um evento social, cultural e acima de tudo humano, que nos permite dias de congraçamento, de fraternidade, uma pausa na habitual indiferença ou hostilidade com que as pessoas passam o restante do ano.
O primeiro ano em que não acompanhei a procissão foi estranhíssimo. Parecia que não havia Círio ocorrendo. Mas preferi assim, porque aglomerações sempre me provocaram mal estar. Passados alguns anos, decidi acompanhar de novo. Como na infância, fomos eu, minha mãe e meu irmão. Fomos à Catedral, para acompanhar a procissão desde o começo, até onde aguentássemos. Mas os tempos eram outros. Em meio aos devotos, havia um certo número de bêbados, vândalos, mulheres seminuas se oferecendo e dizendo obscenidades. Havia gente acompanhando o cortejo, mas com a cabeça em outro lugar. Havia gente brigando e tentando ir ao desforço físico. Na calçada do que hoje é a Estação das Docas, fomos empurrados e quase caímos sobre um imenso tacho de azeite fervente, onde um sem noção fritava batatas para ganhar dinheiro. Recordo-me do desespero de meu irmão, na época obeso mas pelo menos forte, usando os braços para fazer uma espécie de isolamento em redor de mim e de nossa mãe. Recordo-me de seu olhar decepcionado quando, mais adiante, assistiu dois homens se ameaçando e trocando palavras de baixíssimo calão. E no meio do cortejo, muitos e muitos atos de incivilidade e menosprezo pelo semelhante. Foi quando ele decidiu não mais acompanhar o Círio.
Meu irmão retornou alguns anos depois, mas sempre para acompanhar nossa mãe. Eu nunca mais fui. Hoje, ela mesma não vai mais, por causa de sua idade e problemas de saúde. Hoje ela segue uma parte da Trasladação, sempre acompanhada por alguém da família. Afinal, aos 70 anos é preciso ser realista.
Estamos a menos de um dia e meio do Círio e, por força do trabalho e do mestrado, com suas ocupações superlativas, estou mais desconectado do Círio do que nunca. Não queria que fosse assim porque, como disse acima, gosto de viver o clima de fraternidade que se espraia pela cidade. Só vemos algo parecido no Natal, mas no Círio ele é ainda mais intenso. Resta-me, portanto, tirar um momento para fazer minhas orações, aqui em casa, mesmo. Pedindo uma chance para a nossa cidade e saúde, paz e oportunidades para nós.
E você? Tem alguma relação com o Círio que gostaria de dividir conosco?

2 comentários:

Anônimo disse...

Desde criança sempre participei do Círio de Nazaré, mas só depois de me tornar mãe desenvolvi uma relação de cumplicidade com N.Sra. que fez com que eu me apaixonasse perdidamente por essa festa.Hoje vivo o Círio de maneira mais espiritualizada e um dos momentos de maior ardor para mim é poder participar do revezamento que acontece na capela do Bom Pastor no Centro Social de Nazaré,onde grupos de oração se revezam durante as 48 horas que antecedem a primeira romaria, em adoração ao Santissimo Sacramento,pedindo muita paz e muita tranquilidade durante as procissões,o que convenhamos sempre acontece, dado a grandiosidade do evento.É claro que no meio de tantas pessoas encontramos algumas sem qualquer tipo de sentimento religioso ou de solidariedade com o próximo,mas é por essas pessoas que nós que temos fé devemos orar sempre e não somente nesta época do ano.Ainda que fatos lamentáveis aconteçam, acho que não são o suficiente para empanar o brilho e a grandeza que a maioria dos devotos empresta a nossa belíssima festa.

Anônimo disse...

Eu não professo a fé em Maria, mas já vivi o Círio.
Lembro de carregar a bandeira de algum município, pelo Marista, e aguardar no Can, por horas, a chegada da imagem. Fui para o inicio da Presidente Vargas desde madrugada, bem dizer, éramos os piloto do Círio.
Só este fato, já dava uma sensação única. E dentro do colégio, só quem estava no 1°ano, poderia participar.
Foi muito legal. Quando ela chegou eu chorei. Lembro que cheguei em casa contando, aos meus 16 aninhos, que ficara junto a imagem.
Tenho o Círio enquanto fato econômico, social, cultural e religioso, para outros.
Ri muito, Yúdice, ao ler sobre as batatas. Sem noção MESMO!
Suellen Resende.