quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Naturalização da violência policial

A polícia que mais mata no mundo em situações cotidianas, a brasileira, aprontou de novo, desta vez na Baixada Fluminense, provocando a morte de uma jovem de apenas 22 anos.

Segundo consta, quatro tiros de fuzil para disparados contra um automóvel da marca HB20, portanto um carro compacto (não que fizesse muita diferença, porque um carro maior seria atravessado pelos projéteis do mesmo jeito). O inusitado do caso está na afirmação dos peritos de que os equipamentos de som instalados no veículo retiveram as balas, impedindo que os dois rapazes também a bordo morressem.

Não discutirei fatos controversos. Atenho-me, tão somente, à versão contada pelos próprios policiais, segundo os quais estavam à procura de dois automóveis, também brancos, onde supostamente viajariam criminosos. Eles então avistaram o dito HB20 e fizeram sinal para que parasse. Como o motorista não obedeceu, os castrenses o perseguiram e efetuaram disparos. Ponto.

Perceberam? Simplesmente porque os suspeitos não pararam, abriram fogo. Nem nas normas internacionais sobre guerra é permitido alvejar o inimigo que foge. Mas para a polícia brasileira é perfeitamente natural disparar contra (e consequentemente matar) suspeitos, mesmo que estes não pratiquem atos violentos, o que justificaria a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal. A coisa piora, naturalmente, porque estamos falando de meros suspeitos.

Se admitimos um procedimento desses, matar "licitamente" deixa de ser consequência da provocação de uma violência e passa a ser mera reação à desobediência! Policiais seriam autoridades tão absolutas que a simples negativa a suas ordens autorizaria a medida capital. E isso no mesmo país que consolidou jurisprudência no sentido de que não existe crime quando o indivíduo resiste de maneira meramente passiva à ação da autoridade. Se o policial dá voz de prisão e o sujeito tenta esmurrá-lo, há crime de resistência, em tese. Mas se o sujeito se agarra a uma grade para impedir a sua remoção, não há crime, porque a autoproteção é uma inclinação natural do ser humano. Jurisprudência nova? Nem um pouco.

Por conseguinte, em caso de fuga, o estrito cumprimento do dever legal se esgotaria nas ações destinadas a parar o criminoso ou suspeito e, caso isso não fosse possível, seria forçoso deixá-lo fugir. Há quem admita tiros de advertência. Eu sou contra, porque a bala que sobe, desce, tendo eu aprendido nas aulas de Física, numa outra vida, que a bala desacelera pelo atrito com o ar, chega à velocidade zero e retorna, sendo acelerada pela gravidade e, com isso, atinge o chão com a mesma velocidade do disparo. Mais ou menos isso. Corrijam-me se eu estiver errado. Por via das dúvidas, sou contra o tiro de advertência. Nunca se sabe quando há um cidadão incauto passando pelo local.

Mas de tanto a polícia dizer que o bandido (termo que legitima tudo) fugiu e por isso atiraram, acabou que todo mundo passou a acreditar que isso é normal. A arbitrariedade foi naturalizada e a sociedade perdeu a noção do absurdo que isso representa. O soldado fala isso na frente do superior e não é punido. A corporação fala isso perante a mídia, e portanto o Ministério Público toma conhecimento, mas ninguém é denunciado. Aí um belo dia um Fiat Stilo preto e peliculado, com suspeitos a bordo, é alvejado e um bebê morre. A mãe disse que gritou pedindo que não atirassem. Obviamente, não foi atendida. E desta vez foi a garota de 22 anos. Nestes casos, é possível que haja punições, porque são exemplares. E os outros? E a rotina de arbitrariedade policial banalizada?

Necessário que se diga, ainda, que essas coisas acontecem por culpa de toda a sociedade. As instituições espelham o imaginário coletivo. Pode ser que nem sempre, mas frequentemente. De tanto repetirem o clichê de que bandido bom é bandido morto, ninguém questiona mais quando a polícia mata. Afinal, era só um bandido. Melhor assim. Se não era o bandido certo, mesmo assim tudo bem, porque serve de aviso.

E se, como no caso, não havia bandidos? Há resposta para isso? Há, sim: eles erraram ao não obedecer aos policiais, parando e se identificando. Permitindo a revista pessoal e veicular. Afinal de contas, a polícia brasileira é extremamente correta quando aborda suspeitos. Ela não constrange, humilha, ameaça nem espanca. Nem extorque. Ela escuta explicações, confere documentos e libera os inocentes. É uma engrenagem que funciona com perfeição. Logo, se você morre, a culpa é exclusivamente sua, porque desobedeceu às regras. E isso merece punição.

Sabe o que é mais triste? Aconteça o que acontecer neste caso, outros iguais continuarão acontecendo. E quase todo mundo vai achar normal. Possivelmente, até você.

Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/08/som-de-carro-salvou-de-tiros-amigos-de-morta-em-acao-da-pm-diz-laudo.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei e revi alguns conceitos.
Abs
kenneth