sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A hora da pena de morte

A pena de morte, que tecnicamente não constitui uma pena no sentido clássico do tripé retribuição-prevenção-ressocialização, deve ser executada daqui a dois dias em um brasileiro (há outro na fila) que se encontra preso na Indonésia há mais de uma década. Ambos foram condenados por tráfico de drogas, delito que, naquela república insular, é reprimido por uma das legislações mais inclementes do mundo. O governo brasileiro bem que tentou obter a indulgentia principis, mas foi em vão (veja).

Antes que a turba que espuma pela boca de ódio do PT bote mais um fracasso na conta de Dilma Rousseff, é preciso serenidade para perceber que, embora a execução dos brasileiros possa chocar a nossa suscetibilidade, não está acontecendo nada além do cumprimento da legislação criminal indonésia. São as regras do jogo, cumpridas dentro do próprio território. Regras que podemos repudiar, mas que exprimem a soberania de um país. Segundo consta, os brasileiros receberam um julgamento justo, no plano da legalidade.

A possibilidade de o chefe do Estado cassar uma decisão judicial legítima é uma antiquíssima medida de equidade, reconhecida e praticada, ao menos em tese, na maior parte do mundo. Mas é uma mera faculdade e, como é óbvio, gera custos políticos para o titular dessa prerrogativa. E, numa república, esses custos políticos se traduzem em votos que ninguém quer perder. Vale ressaltar que o atual presidente, Joko Widodo, tomou posse no ano passado prometendo absoluta intolerância contra os narcotraficantes (veja). Por conseguinte, se ele atendesse ao pedido do Brasil, sofreria o repúdio de seus compatriotas que, é bom que se diga, aprova com entusiasmo a dureza da lei antidrogas local. Provavelmente por isso Widodo demorou até a atender a ligação de nossa presidente. Logicamente, ele sabia do que se tratava.

Além do mais, há o fator cultural: se governo e povo indonésios falam a mesma língua no que tange ao rigor da punição ao narcotráfico, nada mais natural que o presidente daquele país não encontre margem justamente em um caso desses para exercitar a clemência. Essa prerrogativa costuma ser mais aplicada a situações excepcionais e o caso do brasileiro, ao que parece, deve ser rotineiro em um contexto de rigorosa repressão. Outrossim, a clemência soberana se destina a depurar a dureza da lei penal mas, para isso, é preciso que a percepção social sobre o caso aponte para essa dureza, o que não é o contexto.

Por conseguinte, é tolice acusar o governo brasileiro de fracasso. Mas o assessor especial para assuntos internacionais do Brasil, Marco Aurélio Garcia, também exagera ao dizer que houve "insensibilidade" por parte do governo indonésio. Como dito acima, prevaleceram os valores locais.

Compreensível que o governo brasileiro se tenha movimentado, para atender ao pedido da família de Marco Archer. Faz parte de suas atribuições diplomáticas e atende ao sentido ético (ao menos o declarado) da concepção criminal formal de nosso país, que repudia a pena de morte. Mas me pergunto o que meus concidadãos estão pensando a respeito. Afinal, somos um povo ultramoralista — para julgar os outros, bem entendido. Não me dei ao trabalho de procurar manifestações pela grande rede, a fim de saber se estão aplicando o menosprezo do "bem feito"/"quem-mandou-traficar-cocaína-para-lá" ou se resta solidariedade a Archer.

Recordo, entretanto, que a maioria do povo brasileiro é favorável à pena de morte. Talvez não para o narcotraficante, que a bem da verdade atende aos interesses clandestinos de gente em todos os níveis e classes sociais. Mas para os criminosos violentos e patrimoniais, com certeza absoluta. A meu ver, existe um enorme descompasso entre a busca por clemência para Archer e a facilidade com que o brasileiro médio aprova, aplaude e clama não apenas por pena de morte, mas também por execuções sumárias, linchamentos, tortura, etc. A facilidade com que se legitima cotidianamente a barbárie.

Tudo indica que, por volta das 15 horas do próximo sábado, horário de Brasília, Marco Archer deixará a vida por fuzilamento, um método de execução que o Ocidente, quase que totalmente, substituiu por procedimentos supostamente humanizados, como injeções letais (o que não escamoteia as críticas contra esses métodos alegadamente mais suaves e a própria e invencível contradição entre assassinar com o beneplácito do Estado e agir de forma humanizada). O fato de ser um brasileiro e de aqui não vermos a execução higienizada pelo sistema de justiça criminal pode nos causar alguma estranheza. Mas deveria provocar, isto sim, uma reflexão mais profunda: a questão não é se devemos matar um estrangeiro ou matar pelo crime A ou B. A questão é velha: o Estado de direito pode mesmo conviver com a pena de morte?

E nós, queremos conviver com ela?

2 comentários:

Anônimo disse...

Com base em que você tem esse posicionamento: "A meu ver, existe um enorme descompasso entre a busca por clemência para Archer e a facilidade com que o brasileiro médio aprova, aplaude e clama não apenas por pena de morte, mas também por execuções sumárias, linchamentos, tortura, etc. A facilidade com que se legitima cotidianamente a barbárie."?

Há dados? Em princípio, lendo os comentários na Folha de São Paulo (que não têm valor estatístico algum), este me parece ser uma das únicas vezes em que o brasileiro está sendo coerente na sua triste demonstração de ódio, contra o traficante. Por sinal, as enquetes utilizadas como forma de aferição da opinião pública indicam que o brasileiro é a favor, também, do endurecimento das leis de trânsito, contra motoristas alcoolizados. Sinto que há uma tendência geral para o punitivismo, o que é ruim, mas pelo menos coerente e não mais para o "descompasso" com gente querendo clemência para esse cidadão que vai ser fuzilado.

Anônimo disse...

Muito bom.