sábado, 24 de janeiro de 2015

As crianças mortas na canção

Renato Russo era um poeta trágico. Consta que sequer se considerava um poeta, e sim um "letrista", mas suspeito que era uma concessão à modéstia, ainda que ensaiada. Duvido que ele desconhecesse a força de sua obra, ainda mais com o "messianismo" (a expressão é de Arthur Dapieve, na biografia Renato Russo: o trovador solitário) instilado nos fãs, numa época em que o sucesso musical ainda continha componentes de mérito autoral e não (apenas ou predominantemente) de inserção midiática, que os empresários do ramo de entretenimento, hoje, conseguem atribuir até a retardados mentais.

"A" banda.
Quanto a ser trágico, isto era consequência de seus tumultos íntimos, que não eram poucos. Ele se inquietava com o comportamento das pessoas, com as ações das autoridades e, como se não fosse pouco, com os próprios dilemas. Não à toa me identifico com ele, infelizmente sem contar com o seu talento. O fato é que essas amarguras ponteavam em suas composições, muitas vezes através de alegorias duras de escutar. Uma dessas alegorias, recorrente na obra do compositor, tinha a ver com crianças mortas.

Já no primeiro disco da Legião Urbana (autointitulado, 1984), na canção "O reggae", Renato desabafa: "Tentava ver o que existia de errado/ Quantas crianças Deus já tinha matado".

É preciso perceber que, nesta canção, ele critica os valores da sociedade que, dependendo do teórico consultado, pode ser chamada de pós-moderna, moderna recente, pós-fordista e uma leva de outras nomenclaturas, mas que em síntese é a sociedade capitalista que mede os seres humanos pela fortuna ou pelo acesso ao consumo, subvertendo os valores humanistas pelo individualismo exacerbado, pela busca incessante da satisfação pessoal e pelo abandono do senso crítico, dentre outras perdas. Segundo Eduardo Rezende, editor do blog O Livro dos Dias - Análises e interpretações, esta canção foi feita para criticar o governo Collor, como o próprio Renato teria deixado claro em shows (leia aqui).

O fato de escrever em primeira pessoa reforça o sentimento de perplexidade do poeta ao descrever a primeira e mais importante instância de socialização depois da família, a escola, como um espaço autoritário que não existe para ensinar sobre o mundo, mas sobre como você deve se comportar nele, para agradar aos outros. Um processo de subjetivação disciplinar nos moldes denunciados por Michel Foucault. Sem ter o que aprender com a escola e mesmo com as pessoas que tanto amava, o poeta busca a realidade, ainda que pelo jornal da TV, momento em que aprende "a roubar para vencer".

É quando luta para "descobrir a verdade, no meio das mentiras da cidade", que o poeta se depara com as crianças mortas por Deus. Na verdade, o objetivo aí não era causar nenhum mal estar religioso, mas dizer que muitos malefícios são causados em nome das melhores intenções (declaradas, porque de melhores não têm nada). Todos os mecanismos de controle social buscam legitimação em razões valorosas mas, quando se olha de perto, o que se constata é o objetivo de controlar corpos e almas com objetivos escusos.

No terceiro disco (Que país é este - 1978/1987, 1987), na famosa e cinematográfica "Faroeste caboclo", Renato narra a saga do perigoso bandido João de Santo Cristo, que certo dia é procurado por um senhor de alta classe com dinheiro na mão. Ignoramos a proposta indecorosa feita pelo rico delinquente, mas João a recusa com raiva e revela que tem princípios: "Não boto bomba em banca de jornal/ Nem em colégio de criança/ Isso eu não faço não".

Na sociedade pós-fordista, regida pela ideologia neoliberal, o homem é entendido como um ser racional, dotado de cálculo prospectivo e que toma as suas decisões baseado em uma criteriosa análise de custo-benefício. Por isso, todo mundo acredita que as pessoas tornam-se criminosas simplesmente porque querem, porque são imorais, amorais ou crueis. Esta regra seria ainda mais evidente em relação a criminosos contumazes e violentos, justamente o caso de João de Santo Cristo (que na canção é descrito com uma ferocidade muito superior à mostrada no filme de René Sampaio). Aí vem o inusitado: o bandido de alta classe procura o psicopata porque está convencido de que este lhe fará o trabalho sujo. Mas nada disso: Renato parece estar gritando que ninguém pode calar a liberdade (de expressão, no caso) nem roubar o futuro das crianças.

No quarto disco (As quatro estações, 1989), em "1965 (Duas tribos)", Renato ataca uma das maiores tragédias da história recente do país, a tortura. A certa altura, diz: "Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de brinquedo".

É novamente no blog de Eduardo Rezende (aqui) que encontramos uma interpretação autêntica, na transcrição de comentário feito por Renato durante show no Jockey Club do Rio de Janeiro em 1990: "Esta é a música mais política de todas no disco. Fala de tortura e é sobre aquela época em que fazíamos redação sobre o país maravilhoso que o Brasil seria no futuro e em que achávamos que os presidentes eram o maior barato." Para entender parte do título da canção, 1965 foi o ano do Ato Institucional n. 2, que acabou com as eleições diretas, cassou partidos políticos, suspendeu direitos políticos e suprimiu garantias da magistratura.

Como o tema da canção é muito específico, percebemos que "mataram um menino" simboliza a violência de Estado contra todas as vítimas do sistema, em sua maioria jovens. A arma de verdade deve aludir aos que efetivamente resistiram ao regime de exceção, inclusive pela luta armada. A arma nenhuma, assim como a de brinquedo, parecem-me alusões ao fato de que se torturava e matava com base em meras suspeições ou às vezes se atacava inocentes como forma de acessar parentes e amigos procurados. Por conseguinte, não adiantava não ter arma alguma: você seria moído pela máquina de todo jeito, se agarrado por ela.

Vale lembrar que a atuação contemporânea da polícia brasileira, a que mais mata no mundo todo, é simples variação dos procedimentos adotados pelos agentes da repressão durante a ditadura. Não se trabalha mais com a figura do "subversivo" nem existe mais uma ameaça comunista. Mas os inimigos, as classes perigosas continuam existindo e sempre existirão, sob outros pretextos. E o modo de as autoridades interagirem com elas subsiste e ganha novas justificações, inclusive o apoio popular.

Nesta canção, Renato faz uma de suas mais fortes e belas provocações, que me comove bastante. Depois de falar na luta do bem contra o mal, ele indaga: "E você, de que lado está?" Isto nos remete diretamente à última faixa do disco anterior, "Mais do mesmo", uma letra tão importante que quase deu nome ao disco e que fala sobre um "menino branco" que sobe o morro para tentar se divertir, ou seja, conseguir drogas. Aí vem a pergunta: "Quando tem chacina de adolescente/ Como é que você se sente?"

Aqui, a letra parece destacar a diferença entre as classes sociais e as funções que lhe são atribuídas, com evidente caráter racista. O menino que tem dinheiro para comprar é branco e sai do espaço que lhe é próprio para ir ao morro, símbolo da pobreza. E mesmo em uma ação ilícita, ele se impõe sobre a população local: "Mas já disse que não tem/ E você ainda quer mais/ Por que você não me deixa em paz?"

Seguem-se queixumes sobre uma vida sem oportunidades, ao mesmo tempo em que somos cobrados a ser e a ter muitas coisas, na lógica insana de nossa sociedade meritocrática ("E agora você quer que eu fique assim igual a você/ É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui?"). É nesse momento que o poema insere a pergunta sobre chacina. Canção da banda que menciona expressamente o titulo, pouco comum para a Legião, o "mais do mesmo" representa ciclos de violência sem fim.

No sexto disco (O descobrimento do Brasil, 1993), são duas as menções. Em "A fonte", a pergunta direta denuncia um drama frequente: "Quantas crianças foram mortas dessa vez?"

No artigo "A representação das minorias na obra da Legião Urbana" (Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades, n. 8, maio-outubro 2011) o historiador Gustavo dos Santos Prado insere a canção em um tópico intitulado "O Estado e sua relação com as minorias: a leitura e denúncia do descaso expressos nas obras da banda". Para ele, o objetivo é criticar a falência do Estado de Bem Estar Social, causa de um profundo desalento no indivíduo. Com isso, nosso próprio país vira um "campo inimigo" e "você finge que vê, mas não vê".

Extrai-se, portanto, uma crítica também aos cidadãos, que permitem uma situação dessas. Inevitável pensar nas jornadas de junho de 2013, quando se ouvia tanto que indignação de brasileiro é fogo de palha. Pensar no brasileiro médio que espuma de ódio contra os políticos corruptos enquanto compra a carteira de motorista e busca jeitinhos para tudo. Realmente, é desalentador. Nesta canção, enfim, a morte das crianças não é metáfora e está posta de modo bastante literal. Uma morte que não é apenas assassinar, mas sobretudo um deixar morrer, por inércia e indiferença.

E na minha canção favorita da banda, "Perfeição", uma sequência de ironias destinada a chocar o público diante da contradição que seria comemorar tantas tragédias, o objetivo geral do poeta era criticar a omissão e a indiferença do brasileiro frente a tantas mazelas, em um momento da história brasileira em que as esperanças da primeira eleição direta pós-redemocratização haviam escoado pelo ralo de Fernando Collor e seu inoperante sucessor, Itamar Franco. Em uma das alegorias, o trovador propõe "Celebrar a juventude sem escola/ As crianças mortas".

Ao longo de 68 versos, Renato promove verdadeira compilação de categorias de tragédias humanas, desde a guerra até à solidão. Como diz Arthur Dapieve (p. 140): "Na eterna dialética entre ética pública e privada na vida e obra de Renato, O descobrimento trazia também um impressionante retrato do país, filme queimado e tudo. Pois o Brasil também havia conseguido sobreviver a Fernando Collor de Mello, apeado do poder a 29 de dezembro de 1992. O Brasil que sobrara para o vice-presidente Itamar Franco estava por inteiro na quarta faixa, 'Perfeição', incrivelmente amarga mas, no final das contas, otimista. Ninguém era poupado."

Na letra, quase como se fizesse uma tempestade cerebral e se lembrasse aos poucos de tudo que o atormentava, Renato menciona a morte diretamente ao menos três vezes, em diferentes circunstâncias: nas estradas, por falta de hospitais e a de crianças, logo nos primeiros versos. Há críticas ao "Estado que não é nação", à polícia, à mídia e a diferentes formas de violência, intercalando as chicanas perpetradas por autoridades com aquelas que nós mesmos produzimos, em nossas vidas pessoais: desunião, tristeza, vaidade, ganância, difamação, preconceitos, hipocrisia, indiferença, inveja, intolerância, incompreensão, falta de bom senso.

Em que pese podermos atribuir um sentido literal à morte das crianças, o fato de a menção imediatamente anterior ser à "juventude sem escola" sugere que o autor não se refere somente à morte física, mas também à incapacitação do indivíduo pela ausência de educação formal, que inviabiliza a autorrealização individual, ainda no começo da vida.

Não podemos esquecer que, também no sexto disco, em "Love in the afternoon", Renato filosofa sobre a estranheza de os bons morrerem jovens ou morrerem antes. Como informa seu biógrafo, a canção fora inspirada pela morte de amigos do poeta, inclusive Tavinho Fialho, baixista que os acompanha na turnê do disco V (p. 141).

Imagino que poucas tragédias provocam reações tão acres quanto a morte de crianças. Veja-se que já assumo como tragédia, instintivamente. Um adulto adoece e morre: é uma fatalidade. Grave, sem dúvida, ainda mais em uma época em que septuagenários têm sido considerados "novos", ao menos para morrer. Se é uma criança, contudo, trata-se de uma tragédia, porque viola uma concepção que já trazemos conosco: crianças não deviam morrer. Deveria existir uma espécie de ordem natural, que impedisse esse tipo de acontecimento. Quando elas se vão, parece que nos foge um pouco do futuro, das falsas obviedades às quais nos agarramos no cotidiano. Daí que, em um poema, é uma alegoria terrível, que não passa despercebida.

Renato precisava muito nos sacudir e por isso voltava sempre a essa metáfora. Concluo lembrando, todavia, que a despeito das datas de lançamento dos discos da Legião Urbana, muitas dessas canções, inclusive algumas aqui referidas, haviam sido compostas anos antes. O trovador dizia que eram "letras antigas, adolescentes" (Dapieve, p. 100).

Eu queria que mais adolescentes se preocupassem tanto com o mundo como Renato Russo. E que, graças a isso, as crianças pudessem viver.

Com informações extraídas de DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. Sobre o livro, escrevi esta postagem em 2012.

2 comentários:

Anônimo disse...

Permita-me uma correção, mas que em nada abala e beleza e a credibilidade do texto.
"esta canção foi feita para criticar o governo Collor, como o próprio Renato teria deixado claro em shows".

Não é possível, pois Collor foi eleito em 1989 e tomou posse em 1990 e a canção foi gravada em 1984.

Talvez o correto seria dizer que no show da turnê As Quatro Estações, Renato interpretasse a canção e fizesse referências ao governo Collor.

Yúdice Andrade disse...

Meu caro, você está correto. Devo ter interpretado mal a informação dada pela fonte que citei. Grato pela correção e pela aprovação ao texto.