quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Federalização por desconfiança ostensiva

O Congresso Nacional não chegou a apreciar a Proposta de Emenda à Constituição n. 439/2014, que será arquivada daqui a três dias (31 de janeiro), devido ao encerramento da legislatura. Contudo, qualquer um dos autores do projeto, que tenha sido reeleito, pode mandar desarquivá-la. E qual o motivo do interesse?

A intenção é de modificar o art. 109 da Constituição de 1988, por meio da transferência para a competência da Justiça Federal dos "crimes sexuais praticados contra vulnerável". Assim, todo e qualquer caso de estupro ou de exploração sexual contra crianças, adolescentes e portadores de transtornos mentais ou retardo mental sairia da Justiça estadual para o novo foro. Diga-se de passagem, a esmagadora maioria dos processos sobre crimes sexuais, que é enorme, envolve vulneráveis.

Caso a proposta fosse aprovada, os juízes e os tribunais estaduais respirariam aliviados, por perderem uma grande demanda. Por outro lado, a Justiça Federal, que possui uma estrutura muito menor, sofreria com a quantidade de novos feitos. A consequência óbvia será a maior demora em julgar esses processos, em relação à situação atual, ampliando o problema de impunidade efetiva.

Desde a Constituição de 1988, volta e meia se fala em federalização de crimes, em clara demonstração de desconfiança contra o judiciário no âmbito dos Estados. No caso vertente, isto é expressamente declarado pelos próprios autores do projeto, membros da CPI que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes, que abrem a justificação do mesmo com estas palavras:

"O objetivo desta proposta é afastar a impunidade nos crimes sexuais praticados contra vulnerável. Esta CPI constatou, em suas investigações, que muitos exploradores sexuais de crianças e adolescentes gozam de prestígio em suas regiões, por serem políticos, empresários, policiais, juízes, membros do Ministério Público ou parentes de autoridades.

Dessa forma, esses criminosos são blindados, os processos ficam engavetados até prescrever o crime ou os agentes são simplesmente absolvidos e ficam livres para continuarem praticando esses crimes.

Em outros casos, essas redes de exploração sexual de jovens exerce forte coação, com ameaças ou até mesmo com a execução de testemunhas, de delatores e de autoridades envolvidas na investigação e punição de tais crimes."

Sem meias palavras, o que os parlamentares afirmaram é que o judiciário dos Estados é conivente, ou no mínimo leniente, com tais crimes, permitindo-se verdadeiro compadrio com os malfeitores, inclusive por relações pessoais. Note-se que não há nenhuma referência a eventual caráter interestadual ou internacional dos delitos, o que poderia justificar a intenção de federalização. Idêntica crítica à omissão dos Estados ensejou a PEC 45/2004, no particular em que federalizou "as causas relativas a direitos humanos" (art. 109, V-A), instituindo um constrangimento hermenêutico por causa da imprecisão do conceito de direitos humanos.

Não me parece que a transferência de ações penais para a já sobrecarregada Justiça Federal representaria avanço na luta contra a impunidade. E outros problemas surgiriam. Veja-se o caso do Pará, Estado de dimensões colossais: há varas federais e/ou juizados em Belém, Castanhal, Marabá, Redenção, Paragominas, Santarém, Itaituba, Altamira e Tucuruí. Não sei se todas estão instaladas. E são 144 Municípios no Estado. Com a federalização, muitas causas seriam processadas bem longe dos locais dos crimes, dificultando a instrução processual. Só a distância já é um grande problema, mas temos a malha rodoviária ruim, problemas nos serviços de internet, etc. Os nobres parlamentares não pensaram nisso? Ou simplesmente desconhecem o país onde vivem?

Também não vejo como solução dizer à justiça estadual que ela é inconfiável. Nem podemos tomar isso como um fato, uma realidade pura e simples, e ainda por cima imodificável. Não podemos construir políticas sobre exemplos, tão somente. Até porque pressões e influência econômica e política também existem em nível federal. Por isso, penso que a proposta é ingênua e escapista. O que precisamos mudar não é a competência jurisdicional, mas o modo de agir das autoridades públicas como um todo, não apenas as judiciais.

Sobretudo, não podemos fechar os olhos ao abuso sexual contra vulneráveis. Não podemos tolerar certas práticas apenas porque sempre existiram ou porque não queremos nos envolver. Perceba que, agora, já não estou falando do poder público. É cada cidadão que precisa se comprometer com a proteção de nossa juventude. O número de crimes pode diminuir se começarmos a levar o assunto mais a sério.

Ver a PEC e sua justificação: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=34F5A01122AA9EB9A7C7C71019642A98.proposicoesWeb1?codteor=1292330&filename=PEC+439/2014

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfect.