A arte, por seu turno, é a principal expressão daquilo que vai na alma de cada ser humano, por isso a expressão artística, com suas metáforas, símbolos e provocações, tem a capacidade de nos inspirar reflexões profundas sobre as experiências do mundo, sejam pessoais ou não.
Esta manhã, enquanto dirigia meu carro a caminho da clínica onde minha mãe faz hemodiálise, circunstância que sempre me põe reflexivo e sentimental, escutei duas canções estrangeiras que descrevem a mesma situação: o término de um relacionamento amoroso. Então me pus a matutar sobre como experiências em tese semelhantes dispararam reações tão diferentes por parte de seus protagonistas. E, com isso, podemos tentar algumas inferências sobre a personalidade de cada qual.
[Os links para os videoclips estão nos títulos das canções. Vale muito a pena conferir.]
A primeira canção se chama "I'm gonna be strong" e foi composta por uma conhecida (na época) dupla de autores: Barry Mann e Cynthia Weil. Foi originalmente gravada por Frankie Laine (1963) e, no ano seguinte, por Gene Pitney (1964), em ambos os casos como singles. Mas somente se tornou um grande sucesso em 1980, quando gravada no único álbum (auto-intitulado) da banda de rockabilly e new wave Blue Angel, da qual era vocalista Cyndi Lauper (1953- ). Tornou-se o maior sucesso da mal-sucedida banda, da qual Lauper se desligou em 1982. Ela regravou a canção em 1994, incluindo-a em sua coletânea de sucessos Twelve deadly cyns... and then some. Esta é a versão que conheço e é simplesmente arrebatadora1.
I can see
You're slipping
away from me
And you're so
afraid
That I'll plead
with you to stay
But I'm gonna be
strong
I'll let you go
your way
Love is gone
There's no sense
in holding on
And your pity
now
Would be more
than I could bare
So I'm gonna be
strong
I'll pretend I
don't care
I'm gonna be
strong
And stand as
tall as I can
I'm gonna be
strong
And let you go
along
And take it like
a man
When you say
it's the end
I'll hand you a
line
I'll smile and
say
"Don't you
worry, it's fine"
But you'll never
know, darling
After you kiss
me goodbye
How I'll break
down and cry
Cry
Cry
Cry
|
Eu posso ver
Que você está
escapando de mim
E você tem tanto
medo
De que eu lhe implore
para ficar
Mas eu serei
forte
Eu deixarei você
seguir seu caminho
O amor se foi
Não há sentido
em continuar
E a sua piedade
agora
Seria mais do
que eu poderia suportar
Então eu serei
forte
Eu fingirei não
me importar
Eu serei forte
E ficarei o mais
altivo que puder
Eu serei forte
E deixarei você
ir adiante
E encarar isso
como um homem
Quando você
disser que é o fim
Eu lhe darei
corda
Eu sorrirei e
direi
“Não se
preocupe, está tudo bem”
Mas você jamais
saberá, querida
Como depois de seu
beijo de despedida
Eu vou me quebrar
e chorar
Chorar
Chorar
Chorar
|
A composição data da década de 1960. Os tempos eram outros: mais sentimentais, mais melosos, em que o amor romântico era bastante enfatizado explorando a relação com a dor, com a perda. Àquela altura, perder um romance era quase um fim do mundo, mesmo para homens (a canção, escrita em primeira pessoa, relata os sentimentos de um homem), treinados desde cedo para ser fortes e inabaláveis. Quando criança, ouvi várias vezes a frase "homem não chora; só quando a mulher vai embora". E, criança, nunca entendi o significado dessa afirmação.
"I'm gonna be strong" é o que classifico como canção de mimimi, ou seja, é o desabafo de uma pessoa mal resolvida, que adora se vitimizar e se faz de coitadinha para tentar manter o relacionamento. Como se a piedade fosse um modo razoável de conservar relações. O poema pinta um cenário tristonho, derrotista, em que o protagonista se esforça por fingir, à ex-amante, que está bem. Aparentemente, o romance acabou apenas porque, às vezes, as pessoas percebem que não amam mais. Não há menção a conflitos ou a uma nova paixão. E um indivíduo chorão nunca deixa de ressaltar o fato de ter sido trocado, se for esse o caso. A ausência de briga se percebe pelo fato de a mulher que vai embora se despedir carinhosamente, com um beijo.
Daí ela sai e o cara desmorona em sua imensa dor. E como qualquer chorão, ele chora. Com o detalhe de que, em inglês, o mesmo verbo também significa "gritar", permitindo uma interpretação ainda mais dramática.
Devo admitir que me identifico muito com esses coitados à deriva, na linha Álvares de Azevedo. Adoro esta canção. E a interpretação de Cyndi Lauper me deixa sem fôlego.
A segunda canção se chama "Everything" e foi composta pela roqueira canadense Alanis Morissette. Lançada primeiro em CD single, fez parte do repertório do álbum So-called chaos (2003) e também se tornou um grande sucesso2. Mas aí os tempos eram outros. Mesmo em se tratando de uma mulher deixada para trás (a canção, também em primeira pessoa, deixa claro que é uma mulher falando), o tempo das mulheres submissas, que dependiam dos homens para ser felizes, já ficou para trás. Nossa personagem quer insistir na relação e não está lá muito feliz, mas a linguagem é bastante diferente, mais ácida e me impressiona pela franqueza.
I can be an
asshole of the grandest kind
I can withhold
like it's going out of style
I can be the
moodiest baby
And you've never
met anyone as negative
As I am
sometimes
I am the wisest
woman you've ever met
I am the kindest
soul with whom you've connected
I have the
bravest heart that you've ever seen
And you've never
met anyone who is as positive
As I am
sometimes
You see
everything, you see every part
You see all my
light and you love my dark
You dig
everything of which I'm ashamed
There's not
anything to which you can't relate
And you're still
here
I blame everyone else not my own partaking
My
passive-aggressiveness can be devastating
I'm terrified
and mistrusting
And you've never
met anyone who is as closed down
As I am
sometimes
(…)
What I resist
persist and speaks
Louder than I
know
What I resist
you love no matter
How low or high
I go
I'm the funniest
woman that you've ever known
I'm the dullest
woman that you've ever known
I'm the most
gorgeous woman you've ever known
And you've never
met anyone as everything
As I am
sometimes
|
Eu posso ser uma
babaca do pior tipo
Posso resistir de
um jeito fora de moda
Posso ser o bebê
mais temperamental
E você jamais
conheceu ninguém tão pessimista
Quanto eu sou
algumas vezes
Sou a mulher
mais sábia que você já conheceu
Sou a alma mais
bondosa com que já teve contato
Tenho o coração
mais valente que você já viu
E você jamais
conheceu ninguém tão otimista
Quanto eu sou
algumas vezes
Você enxerga
tudo, cada detalhe
Você enxerga
toda a minha luz e ama minha escuridão
Você vasculha
todas as coisas das quais me envergonho
Não existe nada
com que não consiga se relacionar
E você ainda
está aqui
Eu culpo todo
mundo e não assumo a minha parte
Minha
passividade agressiva pode ser devastadora
Eu sou medrosa e
desconfiada
E você nunca
conheceu alguém tão fechada
Quanto eu sou
algumas vezes
(...)
O que eu
resisto, persiste e fala
Mais alto do que
eu achava
O que eu
resisto, você ama, não importa
Quão pra baixo
ou pra cima
Eu esteja
Eu sou a mulher
mais engraçada que você já conheceu
Eu sou a mulher
mais enfadonha que você já conheceu
Eu sou a mulher
mais maravilhosa que você já conheceu
E você nunca
conheceu ninguém que seja tudo
Quanto eu sou
algumas vezes
|
A protagonista desta separação faz questão de se desnudar: não sente medo de ressaltar suas virtudes e seus defeitos (e, pelo visto, os defeitos vêm em maior quantidade, mas provavelmente somos todos assim). Quer ser amada do jeito que realmente é, não dando sinais de que mudaria para "merecer" esse amor. E, no fundo, ela parece acreditar que o parceiro é que sairia perdendo com o afastamento. Por isso provoca: "Você ainda está aqui". Acabe logo com isso, antes que seja tarde. Porque você não encontrará outra mulher que seja tudo o que eu sou, por pior que eu seja, neste mundinho repleto de gente pior ainda. Quer arriscar?
Adoro esta canção e gosto da atitude da moça (cuja autoestima é reforçada pelo belo e festejado videoclip). Uma atitude mais século XXI, que nos pede mais autoconfiança, mais controle dos sentimentos, mais convicção de que a vida segue, apesar de tudo.
Não ouso dizer que alguma dessas canções descreva comportamentos melhores ou piores. Somos humanos: em geral, fazemos o que podemos, de acordo com o que acreditamos acerca de nossas capacidades. E erramos demais. Eventualmente, acertamos algumas. Os acertos nos engrandecem e os erros... também! Porque são uma oportunidade de aprendizado. E a zona de conforto nem sempre é uma boa conselheira.
Não recomendo procurar saber qual amor é melhor ou pior. Confiando na premissa aposte na simplicidade, minha recomendação é mais singela: apenas ame. Tentando acertar.
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1 Desculpem, mas copiei estas informações da Wikipedia, mesmo. Isto aqui não é um trabalho científico. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/I'm_Gonna_Be_Strong; http://pt.wikipedia.org/wiki/Blue_Angel e http://pt.wikipedia.org/wiki/Cyndi_Lauper
Um comentário:
Façamos.
Vamos amar.
Como diria Chico Buarque e Elza Soares na sua versão para Cole Porter!
Grato, mano.
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