[Se não viu o capítulo, o texto abaixo contém spoilers. Se ler, não reclame depois.]
Às segundas-feiras, a minissérie Justiça abordará o caso de Vicente (Jesuíta Barbosa), que assassinou com cinco tiros sua noiva Isabela (Marina Ruy Barbosa), ao flagrá-la em um banho pós-sexo com o ex-namorado. Ou seria mais correto dizer que abordará o caso de Elisa (Débora Bloch), mãe de Isabela, que decidiu assassinar Vicente por não se conformar com o fato de ele ficar "apenas" sete anos preso.
A série dá sinais de que pretende construir com calma os personagens. A narrativa é curiosamente lenta para a televisão, mostrando diversas interações dos personagens até se chegar ao clímax. Com isso, o telespectador ganha uma possibilidade que não existe na vida real: a de saber como se deram as diferentes circunstâncias que culminaram em um crime.
Na cabecinha da maioria das pessoas, o "crime" é um evento estático, um acontecimento que eclode por uma decisão estritamente individual do "criminoso". Essa simplificação permite que o "criminoso" seja visto tão somente como uma pessoa má, que decidiu fazer o mal quando lhe era inteiramente possível e exigível agir de acordo com a "lei" e, assim, fazer o bem. Se assim fosse, bastaria impor um castigo, e o pior castigo possível, como retribuição ao mal. É o que as pessoas em geral querem.
As aspas utilizadas no parágrafo anterior alertam para os perigos de naturalizar conceitos que não são ontológicos. Não existe "crime", tampouco "criminoso", como dados da realidade; esses conceitos existem, tão somente, enquanto rótulos apostos a certos fatos e a certas pessoas, por alguém que está em condições de impor o seu julgamento. Assim, poderíamos demonizar Vicente como criminoso, por assassinar a jovem e cheia de vida Isabela, e ao mesmo tempo encontrar justificativas para Elisa, que, se matasse o bandido, estaria justiçando-o e, portanto, para muitos, não cometeria crime. Se levada a tribunal do júri, poderia até mesmo ser absolvida por jurados empáticos. Tecnicamente, contudo, as duas situações constituem homicídio. A diferença que emerge não é jurídica: tem a ver com nossa mania de traçar uma horrenda linha divisória entre vidas merecedoras de respeito e vidas matáveis (expressão de Giorgio Agamben).
Embora instigante, o episódio me incomodou um pouco pelo texto exageradamente didático na sequência de Elisa e seu namorado Heitor (Cássio Gabus Mendes). Ali compareceu, em formato clichê, a síntese do discurso em torno dos crimes: as vítimas ou seus familiares dizem querer justiça, mas na verdade o que buscam não é nada senão vingança. Um sentimento extremado, e muitas vezes totalizante, de que o sofrimento do criminoso poderia apaziguar a nossa angústia. Elisa, no entanto, é um caso superlativo: ela tem idade e instrução, mas mesmo assim está disposta a matar Vicente e se entregar em seguida, recebendo uma punição, porque mesmo na cadeia ela acredita, como declara, que terá paz.
A bem da verdade, Elisa faz uma aposta arriscada: ela afirma que, se por matar sua filha Vicente ficou sete anos preso, ela ficaria menos, então valeria a pena o sacrifício. Aparentemente, ela se rege por um raciocínio matemático, além de uma óbvia aplicação das técnicas de neutralização, tão bem descritas pelos criminólogos Gresham Sykes e David Matza: Elisa não se enxerga como homicida, mas como alguém que imporá a justiça não proporcionada, ao assassino, pelo sistema de justiça criminal, ao condená-lo a uma pena que considera baixa. Com isso, ela solapa princípios éticos supostamente valiosos para a sociedade e para ela mesma (não matar) e se capacita a consumar o ato, que no final das contas é, tão somente, uma medida desesperada para resolver seus tumultos íntimos, oriundos da perda da filha. Outro argumento neutralizador é classificar seu plano como expressão do amor materno, que tudo enfrenta em favor dos filhos.
O plano de Elisa me parece claramente inútil: não há qualquer benefício na morte de Vicente, como lhe diz Heitor, por meio do mais óbvio e oportuno argumento: nada trará Isabela de volta. Resoluta, ela renuncia até ao amor de um homem que realmente se importa com ela, que até lhe propõe formar uma família. Isto me leva a outra questão: afinal, quem é pior, Vicente ou Elisa? Eu e minha esposa divergimos neste ponto.
Minha esposa repudia Vicente porque ele era "instável", ciumento e agressivo. O fato de andar armado (algo proibido pelas leis do país) já prenunciaria a sua propensão a matar, caso contrariado. No entanto, colocando o homicídio em contexto, Vicente estava sob forte pressão, devido ao fato de a empresa de seu pai estar indo à falência, porque o sócio de 20 anos traiu a confiança, desviou dinheiro, fugiu e deixou um rastro ruinoso atrás de si. O clima na empresa era péssimo e já acontecera de um ônibus ter sido incendiado pelos trabalhadores sem salário. Sob efeito de muita bebida, o rapaz tenta demonstrar à noiva seu desejo de se casar, mas nesse exato momento ele flagra a traição, justamente com o ex-namorado, que já rendera conflitos anteriores. Como andava armado, foi só sacar do revólver e descarregá-lo. Crime de ímpeto. Vicente, provavelmente, não pensou no que fazia. Seu semblante não transparece satisfação com a morte, e sim sofrimento, o que sugere um crime verdadeiramente passional. O verdadeiro passional não gosta do que faz, sente culpa e frequentemente até pensa em suicídio.
Diferentemente, Elisa não se socorre nos argumentos técnico-legais da legítima defesa ou do domínio de violenta emoção logo após injusta provocação do ofendido. No plano ético, ela recebeu uma resposta estatal, porém não se conformou com sua intensidade. Teve tempo de buscar ajuda para reconstruir a própria vida, mas acalentou lentamente um projeto de vingança, com longa e detalhada preparação. Para mim, ela é pior. Tenho horror a justiceiros. Isso não diminui o risco que Vicente representa. Também tenho horror a gente impulsiva, pois coloca a todos em perigo, já que não oferece segurança acerca de suas reações. O potencial de risco pode ser maior, mas o troféu de imoralidade fica mesmo com os justiceiros. É o que penso.
Ao final do capítulo, hora de executar o plano, hora de matar. Vicente está na mira da arma de Elisa, que praticou tiro e desenvolveu excelente pontaria. Distância curta, o tiro é certo. Aí descobrimos que o rapaz tem uma companheira e uma filha, cujo nome é Isabela (voltamos à culpa do passional). A justiceira hesita, mas ainda não sabemos se o tiro será dado.
Aguardemos as cenas do próximo capítulo.
Um comentário:
Creio que essa série se apresenta como um grande instrumento didático para as turmas de direito penal I, permitindo, dentre outras discussões, o debate a respeito da polarização do bem e do mal, fruto da construção da figura sempre presente (em uma ou outra configuração) do outro, na qual o inimigo/outro/mal merece as piores consequências (castigos) pelos seus atos, cominando no rompimento dos laços comunitários e no fortalecimento dos movimentos de lei e ordem.
Esse tipo de debate possibilita que o aluno que está tendo seu primeiro contato com a disciplina entenda que a legislação penal e a sua aplicação são fruto de decisões políticas e, por isso mesmo, não atingem de forma homogênea toda a sociedade. Servindo como um instrumento de manutenção do status quo.
Para fechar. Muito boa sua análise do episódio. Como não consigo assistir, fico na expectativa das próximas postagens. Peço desculpas por qualquer impropriedade do comentário.
Grande abraço.
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