quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Todos culpados até que se prove... nada. Você é culpado, mesmo.

Às terças-feiras, a minissérie Justiça mostra a estória de Fátima (Adriana Esteves, confirmando-se como uma ótima atriz), uma adorável esposa e mãe, que tem o azar de ganhar como vizinho o policial militar Douglas (Enrique Diaz). O sujeito idolatra o seu cachorro Furacão, que invade o terreno de Fátima, ameaçando pessoas e matando suas galinhas. O conflito entre os dois núcleos vai crescendo até o dia em que o cachorro morde Jesus (Bernardo Berruzo), caçula da protagonista, em mais uma invasão à propriedade. Ela então pega um revólver e mata o animal.

Adorei a cena do bolo: terna e positiva,
tem atuação convincente da pequena Letícia Braga
Comentando o capítulo um da série, já ressaltei que nenhum crime é um evento isolado; sempre há fatores a mais para considerar. Assim, necessário aduzir que o cachorro é abatido em um dia especialmente grave, pois Waldir (Ângelo Antônio), marido de Fátima, é um motorista de ônibus fura-greve e, por isso, entra em conflito com seus colegas de trabalho. Há uma briga e ele é esfaqueado. O episódio não mostra, mas sabemos pela sinopse que o rapaz morrerá.

Fátima está, portanto, sob o impacto de uma tragédia familiar, tendo que cuidar sozinha dos dois filhos, mantê-los calmos, etc. Sabemos que ela possui um temperamento razoável, pois preferiu colocar os animais para dentro de casa, durante a noite, a fim de salvá-los, em vez de confrontar mais diretamente com o vizinho. Nessa noite, contudo, sucumbiu. Difícil recriminá-la. O cachorro pagou o pato. Ou melhor, as galinhas.

O truculento Douglas não deixa por menos e chama a polícia. Embora sejam colegas, não vemos interação do elemento com eles. Vemos apenas os policiais revistando a casa. Daí o criminalista em mim se perguntou: revistando por quê? Fátima estava tão tranquila quanto possível, colaborativa, então imagino que tenha entregado o revólver. Como não sabemos disso e o denunciante com certeza mencionou a arma, a revista faria sentido. Ela está disposta a ir à delegacia para o que acredita seja uma besteira: tratar da morte de um cachorro (embora exista, de fato, um crime aí, talvez ela ignore isso). Tudo parece sob controle até que surge uma lata contendo cocaína. O policial prova o pó (danadinho...) e diz que há quase um quilo (mas latas de leite têm, em média 400 gramas).

O criminalista em mim reconhece o padrão: revistas domiciliares e droga sendo encontrada do lado de fora, sem nenhuma testemunha além dos próprios policiais. Aplicada a regra está na sua propriedade então é seu, o aviso é dado: "Agora a senhora se complicou". Não adianta explicar nada: você já virou traficante automaticamente. "Vá se explicar ao delegado". E, claro, não discuta comigo, pois é desacato. Sempre assim. Fátima é corajosa e aflora seu instinto de defesa. Acaba jogado no sofá e algemada. Truculência cotidiana com os pobres, totalmente desnecessária. Ela fala nos filhos, que estão vendo tudo, mas ninguém se importa.

Fátima deduz que a droga foi plantada por Douglas. Mas, especulo, ele nem precisaria plantar, se pedisse aos colegas que incriminassem uma inocente como um favor. Sim, existe esse tipo de corporativismo. E também existe um injustificável acesso de policiais a drogas. Douglas seria um traficante, um usuário ou teria droga guardada em um cofre, para usar quando quisesse prejudicar alguém, como uns e outros fazem? Por favor, não mencionemos nomes, para evitar consequências legais. O fato é que, sete anos mais tarde, ele confirmará a suspeita. "Aquele cachorro te custou caro", dirá.

Em meu entendimento, a trama de Fátima é a narração da presunção de culpa, situação a que estão submetidos todos os pobres, quando alcançados pelo sistema de justiça criminal, principalmente pela polícia, que exerce a dianteira dos processos de criminalização secundária. Como tenho defendido nos últimos anos, quem decide o que é crime é a polícia. O Ministério Público só vai na corda e denuncia com base nos inquéritos recebidos. Denuncia quase sempre. Ainda mais em se tratando do onipresente tráfico de drogas, que responde, hoje, por expressiva fatia da clientela criminal no Brasil.

Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em relatório divulgado em abril deste ano, 40 mil pessoas ingressaram nas prisões brasileiras no intervalo de um ano (de 2013 a 2014), mantendo-se o índice de 40% de presos provisórios, a absoluta predominância de negros e tendo o tráfico como a principal causa de prisões. "Os dados do levantamento mostram que 61,6% dos presos são negros, 75% têm até o ensino fundamental completo e 55% têm entre 18 e 29 anos. Vinte e oito por cento respondiam ou foram condenados pelo crime de tráfico de drogas, 25% por roubo, 13% por furto e 10% por homicídio" (cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-04/mais-de-40-mil-presos-entraram-na-populacao-carceraria-brasileira).

O tráfico, real ou fictício, é o grande culpado pelo encarceramento massivo dos últimos anos, mesmo em se tratando da apreensão de pequenas quantidades de droga, especialmente no caso de mulheres. Sobre estas, destaque-se que geralmente são rés primárias (cf. https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/crack-chama-a-atencao-para-dependencia-quimica/populacao-carceraria.aspx), o que deveria reforçar a presunção de inocência. Ou seja, hoje, mandar uma pessoa para a cadeia é bastante simples: basta acusá-la de tráfico. Nem crimes sexuais causam tanto estrago, em termos de acusações falsas. A política de guerra às drogas está nos conduzindo para uma nova Idade Média. Naquela época, bastava um grito de "bruxa" e as fogueiras se acendiam. Agora é "traficante" e a máquina de moer gente é ligada.

De  acordo com a premissa do seriado, dita pela autora, e que usei como epígrafe ("Depois que a justiça morde o seu quinhão, o que é que sobra da vida das pessoas?"), uma acusação leviana, pressuposta pelo sistema como verdadeira, certamente não investigada como deveria, custou a Fátima sete anos de prisão. Mas essa nem é a maior perda.

Eu e minha esposa pensamos a mesma coisa, de tanto vermos seriados americanos: nos Estados Unidos, a polícia não sairia da casa de Fátima sem antes colocar as crianças sob a proteção do serviço social. Aqui, elas foram simplesmente abandonadas. E como não havia quem cuidasse delas, sumiram no mundo. Segundo a sinopse da série, iremos a outra obviedade: o menino se tornará pivete; a menina, prostituta.

Aqui temos o que me parece uma falha de roteiro. Ficamos com a impressão de que Fátima foi presa e simplesmente passou sete anos sem notícias dos filhos. No entanto, uma mãe zelosa, em todas as oportunidades que teve de contato com autoridades policiais ou judiciais, pediria pelas crianças. Alguém tomaria alguma providência. Duas crianças caírem em um buraco negro, da forma relatada, não me parece realista. A luta por reencontrá-los é uma boa estratégia dramática, mas existem pontas soltas, que precisam ser atadas.

Uma última ponderação criminológica: na última cena do seriado, Fátima ameaça Douglas com um facão. Tem todos os motivos do mundo, mas ela é egressa do sistema penitenciário. Já foi marcada. Para voltar como reincidente, não custa nada. É a inserção forçada em carreiras criminais, de que nos fala Zaffaroni. Melhor tomar cuidado. Caranguejo que bobeia a maré leva. Principalmente se for um caranguejo-traficante.

Antecedentes criminais

  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html

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