terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eu, que te amo tanto a ponto de te matar

Um dia, na UTI, a mulher cansada, corpo e alma alquebrados pelo câncer, disse ao primogênito que já era tempo de tudo aquilo acabar. Olhou em volta, os aparelhos que a monitoravam, em um pedido mudo. Após um instante de perplexidade, o rapaz respondeu que não lhe competia fazer nada (e nem poderia, porque ela tinha condições de vida autônoma; não dependia dos aparelhos). Uns três ou quatro dias depois, ela saiu da UTI e, em mais dois dias, recebeu alta e voltou para casa. Ainda ficou um pouco mais de dois meses conosco, antes de partir lenta e tão calmamente quanto possível.

Nenhum de nós jamais pensou que passaria por tal situação, mas a verdade é que coisas ruins podem acontecer a qualquer um, inclusive a mim e a você. E pode até ser que alguém que você ama mais do que tudo lhe peça ajuda para morrer. O que será decidido envolve um dos mais crueis dilemas morais que uma pessoa pode enfrentar. Mas esse dilema também envolve um aspecto jurídico grave e nos enseja uma alta indagação: quem mata por amor, a pedido ou ao menos com o consentimento do outro, é homicida?

A eutanásia é um desafio porque extrapola em um nível crítico o clichê, entranhado no senso comum mais rasteiro, de que "criminosos" são sempre pessoas más e inclementes. Embora estejamos falando de um dos atos mais reprováveis, segundo a consciência mais generalizável, matar, às vezes, pode ter um significado completamente diferente. Isso é tão profundo que a arte, volta e meia, explora o tema. Em 2013, o mundo se comoveu com o filme de Michael Haneke, não por acaso intitulado Amor. E agora, a quarta trama de Justiça nos reapresenta esse desafio.

Maurício (Cauã Reymond) e Beatriz (Marjorie Estiano) se amam profundamente. Os roteiristas, tendenciosos, criaram um romance idílico, intenso, tão fofo que coloca um sorriso no rosto do espectador. Tudo para aumentar o impacto dos desdobramentos. A bailarina Beatriz é atropelada e tem a coluna vertebral destruída, resultando em tetraplegia.
Abortada em tudo quanto compreendia de si mesma, pede ao marido que a mate. E ele, após uma breve resistência, atende. O choro convulso do rapaz, deitado ao lado de sua amada em um leito de hospital, é perturbador. Parabéns aos atores.

O desejo de morrer, em pessoas que enfrentam situações como a da personagem, é uma reação frequente. Também é natural que ela se manifeste desde os primeiros momentos, quando a pessoa está sob o vívido impacto da novidade. Mas acredito que ele transparece como sincero quando o tempo comprova que se trata de uma vontade refletida, não de uma emoção transbordada. Difícil avaliar isso. Contudo, fiquei incomodado com o fato de Maurício aceitar o apelo da esposa em um tempo tão exíguo, apenas um dia. A assimilação da perda ― e particularmente da morte de quem ainda está vivo ― é tormentosa e gradual. Como o seriado tinha um compromisso de prender todos os protagonistas no mesmo dia, foi necessário abreviar o tempo de Maurício.


O marido abnegado consegue uma droga de efeito letal, porém indolor, e aplica na esposa, com direito a gravação na qual ela assume a inteira responsabilidade pelo fato (medida inócua, segundo a legislação brasileira), despedida e um intenso sofrimento. Maurício foge, mas não resiste à detenção. Nem poderia, já que está devastado. Após a prisão, não sabe explicar como se sente.

Em um tempo recorde (a celeridade processual do seriado está deixando perplexos alguns alunos meus), Maurício é condenado aos habituais sete anos de prisão. Legalmente, seria caso de homicídio privilegiado, por relevante valor moral (matou para libertar a esposa de seu sofrimento). Estou aqui pensando, mas entendo incabível qualquer qualificadora, inclusive o venefício, já que o meio empregado era conhecido e autorizado por Beatriz. A pena aplicada, portanto, está realista. A questão nem é essa, mas o cabimento da ideia de crime.

No Brasil, a vida humana é sacralizada a um ponto em que não se admite, no discurso predominante, qualquer flexibilização. Vida e morte seriam decisões exclusivas de Deus, assevera o dito discurso reinante. A legislação é carola, beata, porque o povo se finge de religioso e piedoso. Na verdade, bem sabemos que o mesmo cidadão de bem que grita em defesa da vida considera não apenas aceitáveis como desejáveis as execuções sumárias, os linchamentos e outras formas de massacre. O ponto do qual não conseguimos nos afastar é que, no fundo, não se trata de defender a vida, mas de decidir quais vidas merecem respeito e quais são matáveis (falei disso na resenha ao capítulo 1).


O grande mérito de produtos dramatúrgicos como Justiça é nos permitir um olhar sobre o elemento humano que há por trás de todo fato legalmente criminoso. Vemos que tudo possui uma motivação mais profunda, um desdobramento somente acessível a quem conhecesse de perto os personagens, além das peculiaridades próprias do momento.

Ainda acredito, correndo todo o risco de me decepcionar mais uma vez, que se as pessoas pudessem assistir aos cenários "criminosos" da vida real como fazemos com as tramas ficcionais, haveria mais ponderação nos julgamentos maniqueístas, talvez não por empatia, mas quem sabe pelo choque de percebermos que, às vezes, somos movidos por emoções muito semelhantes. Ou seja, o "criminoso" não é, no final das contas, tão diferente de nós mesmos. É a nossa convicção de que ele é um monstro (este vocábulo não é drama; ele também comparece na literatura criminológica), uma não-pessoa ― acima de tudo, a nossa convicção de que somos irremediavelmente distintos e nós, obviamente superiores ― que nos permite odiá-lo e nos leva a lhe desejar as pragas infernais.

Por outras palavras, nossa sanha punitivista talvez possa ser explicada como um trágico mecanismo de defesa, que nos leva a demonizar no outro aquilo que pressentimos, porém não temos coragem de enxergar em nós mesmos. Não é o caso de Maurício. Ele é branco, bonito, honesto, plenamente inserido no sistema produtivo. Nós queremos ser o que ele é, então conseguimos sentir empatia. Para a boa gente brasileira, ele não é um criminoso. E terá um largo apoio em seu projeto de vingança contra Antenor (Antônio Calloni), este sim o vagabundo. Até político é!

Esta quarta e última trama tem uma profundidade filosófica especial, porque o "crime" está dissociado das noções que usualmente o cercam ― ódio, dano, prejuízo, maldade. Nele está o signo do amor, da abnegação, do mortificar-se pelo bem alheio, exatamente o que aprendemos como virtudes. Então os códigos não conversam entre si e nossa cabeça entra em curto-circuito. Talvez seja disso que precisamos para, enfim, enfrentar a grande indagação: o que é um crime, afinal?

Antecedentes criminais

  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
  • Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
  • Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html

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