segunda-feira, 29 de agosto de 2016

MESMO QUE O CHÃO TREMA

Um registro para a História, nestes dias sombrios.


"Excelentíssimo senhor presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski;

Excelentíssimo senhor presidente do Senado Federal, Renan Calheiros;

Excelentíssimas senhoras senadoras e excelentíssimos senhores senadores;

Cidadãs e cidadãos de meu amado Brasil,

No dia 1º de janeiro de 2015, assumi meu segundo mandato à presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.

Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.

Ao exercer a presidência da república, respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de Direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.

Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.

Nesta jornada para me defender do impeachment, me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.

Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.

Entre os meus defeitos, não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados e até assassinados.

Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.

Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.

Disso tenho orgulho. Quem acredita luta.

Aos quase 70 anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.

Exercendo a presidência da república, tenho honrado o compromisso com o meu país, com a democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.

Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio.
E por isso, como no passado, resisto.

Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.

Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.

E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.

Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não têm caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu país, pelo seu bem-estar.

Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.

Sei que, em breve e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da presidência da república, que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de vossas excelências e dizer, com a serenidade dos que nada têm a esconder, que não cometi nenhum crime de responsabilidade. Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.

Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.

No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas, resultando em golpes de estado.

O presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada "República do Galeão", que o levou ao suicídio.

O presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu esta cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.

O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo, mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964. Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso país. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.

Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política, nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.

As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.

Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas neste processo foi reconhecido como suspeito pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.

Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou.
Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.

São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.

São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.

A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.

Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras "nenhum direito a menos".

O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.

O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.

O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso país no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.

O que está em jogo é a autoestima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do país de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.

O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.

O que está em jogo é o futuro do país, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.

Senhoras e senhores senadores,

No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.

Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo "conjunto da obra". Quem afasta o presidente pelo "conjunto da obra" é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo governo interino e defendido pelos meus acusadores.

O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.

Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.

Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.

O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.

A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.

Senhor presidente Ricardo Lewandowski, senhoras e senhores senadores,

A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.

Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.

Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.

Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.

Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o país. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do "quanto pior melhor", na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.

A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.

Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.

Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.

As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os senhoras e as senhoras senadores sabem que o funcionamento dessas comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.

Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.

Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.

Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro.

Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.

Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da "sangria" de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.

É notório que durante o meu governo e o do presidente Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.

Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.

Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.

Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.

Encontraram, na pessoa do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o vértice da sua aliança golpista.

Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.

Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma "chantagem explícita" do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação. Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.

Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.

Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.

Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.

Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.

Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.

Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.

Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.

Senhoras e Senhores Senadores,

Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?

A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.

Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.

Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.

Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.

Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano  – foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história.

Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.

Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.

Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.

O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.

Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?

Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?

A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.

A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.

Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.

Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.

Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.

Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.

Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.

Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.

É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.

Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de "devido processo legal".

Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.

Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.

Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.

Senhoras e senhores senadores,

Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.

Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.

Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.

As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher presidenta do Brasil.

Chego à última etapa deste processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso país. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.

Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.

Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.

Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.

Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.

Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.

Reitero: respeito os meus julgadores.

Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.

Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.

Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.

Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.

Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente. Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.

Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.

Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.

Muito obrigada".
29.8.2016
dia do falso julgamento no mercado das pulgas

sábado, 27 de agosto de 2016

Justiça no xadrez das cores

O último trabalho feito pela adorável Míriam Pires (a inesquecível dona Milú, da novela Tieta) foi um curtametragem chamado O xadrez das cores (dir. Marco Schiavon, 2004). Ela interpretava Maria, uma idosa doente que morava sozinha e recebia cuidados de um sobrinho. Este, cansado da rotina de despedir empregadas por causa do péssimo temperamento da tia, e precisando trabalhar, faz uma nova contratação e diz à tia que ela precisará colaborar. A nova empregada é Cida (Zezeh Barbosa), negra, o que dispara um processo grave de assédio moral de cunho racista.

Não deixe de ver o comovente curta:
http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_xadrez_das_cores
(também tem no YouTube)
A tocante narrativa  que explora como metáfora o jogo de xadrez, em que temos dois exércitos em confronto, sendo um branco e um preto (e o branco tem a vantagem de sempre iniciar a partida)  evolui do preconceito desbragado, respondido com paciência e dedicação, para uma relação de amizade. Mas ali era o plano individual. No plano estatal, não há qualquer inclinação à amizade ou sequer à razoabilidade. Muito ao contrário, está claro como nunca que existe uma política subterrânea de massacre (a expressão é de Zaffaroni) da juventude pobre, notadamente da juventude negra  o que, na realidade brasileira, dá no mesmo.

A terceira trama de Justiça explora essa realidade. E, mais uma vez, o crime é o de tráfico de drogas, que atualmente gera uma das maiores demandas de criminalização no país. Há traficantes por todos os lados, segundo parece. Mas, curiosamente, eles quase sempre têm a pele escura.

No campo penal, a política de drogas figura em qualquer ranking de temas centrais. De um lado, a política proibicionista radical, não à toa chamada de "guerra às drogas" (a imagem bélica ajuda a criar a percepção de um inimigo do Estado, que precisa ser destruído a todo custo, não sendo razoável reconhecer-lhe direitos), de inspiração estadunidense. Em seu O inimigo no direito penal, Zaffaroni leciona que o fim do comunismo forçou os americanos a inventar um novo inimigo figadal, o narcotráfico. O posto seria perdido em 2001, mediante substituição pelo terrorismo, mas a "guerra às drogas" nunca deixou de ser uma política pública intensa e uma promissora plataforma eleitoral para muitos. Bem sucedida, foi importada para países como o Brasil, onde, como denunciam inúmeros estudiosos, provoca muito mais mortes do que o próprio consumo das drogas e suas demais mazelas. Em nossa história recente, é bandeira levantada por candidatos muito à direita, notadamente os da "Bancada da Bala", uma das confrarias criminosas abancadas no Congresso Nacional, cada vez mais inflada por gente oriunda das agências punitivas.

Nossa minissérie explora a extrema vulnerabilidade dos negros à criminalização na conta do tráfico. E o faz de maneira muito incisiva. O racismo em Justiça é escancarado em um nível quase didático ― seja na recepcionista do restaurante que alega, às 22h, estarem reservadas todas aquelas mesas vazias; seja na triagem do policial militar, que separa negros para fins de revista pessoal e brancos para liberação. Chega ao ponto de chamar a "branquinha" para ir para casa, pois ela parece de bem. Mas dadas as ressalvas que estão sendo feitas a estas resenhas, Deus me livre afirmar que o racismo não se exprime exatamente com essa rudeza panfletária. Não sou negro; não sei como é. Deixo essa análise a quem sente na pele.

Necessário ressaltar que, ao contrário de Fátima, que foi vítima de uma armação cruel, a protagonista Rose (Jéssica Ellen) se expôs à sanha estatal. Estava com sua "irmã" Débora (Luísa Arraes) em uma festa na praia quando as duas resolveram fumar maconha e, para complicar, dispuseram-se a comprar para os amigos. Assim, estavam com papelotes da droga escondidos na roupa. A branca Débora foi dispensada sem mais; a negra Rose foi revistada. Cumpriu-se a criminalização secundária por estereotipização: criminoso é quem o sistema punitivo alcançou, porque desejou fazê-lo, a partir de certas características físicas ou sociais.

A política brasileira de guerra às drogas se reflete em uma legislação histérica. O art. 33 da Lei de Drogas tipifica o crime de tráfico usando 18 verbos diferentes, indicativo de que o legislador não queria deixar passar nada. Por pouco não tipificou a conduta de pensar em drogas. Mas tipificou as condutas de adquirirtrazer consigo, entregar a consumo ou fornecer, ainda que gratuitamente. Rose e Débora compraram maconha para consumo próprio, mas também para repassar aos amigos. À interpretação literal, incorreram no tipo. Simples assim. Para aqueles que não enxergam nela a condição de traficante, respondo dizendo que é exatamente esse um dos problemas da política proibicionista radical que temos.

Rose, assim, nos primeiros minutos de seus 18 anos e portanto já neoimputável, foi presa durante a comemoração de seu aniversário e de sua aprovação no vestibular. Horas antes, em uma cena comovente, escutara a sua mãe, negra pobre e sem instrução, empregada doméstica na casa de Débora, dizer que ela estava fazendo história. Claro: seria a primeira pessoa naquela família a chegar a uma universidade, oportunidade que surgiu para  muitos na última década, consoante a imprensa divulga de vez em quando (http://f5.folha.uol.com.br/humanos/1073080-ex-analfabeto-deixou-a-lavoura-de-cafe-e-virou-estudante-de-medicina.shtml; http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/12/filho-de-agricultor-se-forma-em-medicina-e-enche-familia-de-orgulho.html; http://educacao.uol.com.br/noticias/2015/09/14/filho-de-pedreiro-e-catadora-se-forma-em-direito-e-homenageia-pais-no-pi.htm; http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2016/08/nada-e-impossivel-diz-jovem-que-saiu-da-zona-rural-para-se-tornar-medico.html). Nem era somente a história daquela família, mas do país como um todo.

Presa, perdeu a oportunidade de desenvolvimento pessoal. Mesmo fora da prisão, o estigma do egresso há de acompanhá-la e começa na rejeição do marido de Débora. A mãe morreu e ela está só no mundo. Está calma e parece ter assimilado a lição materna: "Tu não é bandida. Não deixa esse lugar destruir o teu coração!" Mas ela ainda nem começou as suas novas lutas.

Curiosamente, esta trama é a única que não construiu devagar o perfil dos personagens. Ao contrário das três outras introduções, já ao final do primeiro bloco os eventos estavam narrados e, com a pena cumprida, Rose voltou à liberdade. Surge então uma segunda trama (o que ainda não ocorreu nas estórias paralelas): Débora está infeliz porque não consegue engravidar, embora ela e o marido o desejem. Sequelas de um estupro.

Nesse momento, Rose começa a mostrar que ninguém resiste ao ambiente da prisão. Diz que a polícia não prende porque não quer. E diante da afirmação de Débora, de que encontrar o estuprador é o que mais quer na vida, promete ajudá-la nessa missão. Minha ideia imediata: Rose vai buscar contatos feitos na prisão para punir o estuprador. Sinais de justiçamento a caminho. E o público vai gostar disso. Talvez a prisão tenha mesmo destruído o coração da moça. Mas não é exatamente isso que fazem as prisões? E nós continuamos apostando nela mais do que em qualquer outra coisa, ignorando isso de propósito.

Ao fim e ao cabo, talvez esse terceiro enredo não seja exatamente sobre racismo. Nem exatamente sobre Rose. Talvez a personagem negra tenha dado azar até nisso. Estaremos diante de um sintoma? Só continuando a assistir para saber.

Post scriptum. Por questões de estilo, todos os protagonistas da série ficaram presos por sete anos. No caso de Rose, uma pena muito elevada. O tráfico enseja reclusão de 5 a 15 anos, mas pode haver redução de um sexto a dois terços se o réu for primário e tiver bons antecedentes, bem como não se dedique a outras atividades criminosas. Rose também poderia ser enquadrada na forma "privilegiada" do crime, pois ofereceu droga eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoas de seu relacionamento, para juntos consumirem. A pena é de 6 meses a 1 ano. Alguém decidiu ser muito duro com ela. Na vida real, não seria de surpreender.

Antecedentes criminais
  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
  • Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Todos culpados até que se prove... nada. Você é culpado, mesmo.

Às terças-feiras, a minissérie Justiça mostra a estória de Fátima (Adriana Esteves, confirmando-se como uma ótima atriz), uma adorável esposa e mãe, que tem o azar de ganhar como vizinho o policial militar Douglas (Enrique Diaz). O sujeito idolatra o seu cachorro Furacão, que invade o terreno de Fátima, ameaçando pessoas e matando suas galinhas. O conflito entre os dois núcleos vai crescendo até o dia em que o cachorro morde Jesus (Bernardo Berruzo), caçula da protagonista, em mais uma invasão à propriedade. Ela então pega um revólver e mata o animal.

Adorei a cena do bolo: terna e positiva,
tem atuação convincente da pequena Letícia Braga
Comentando o capítulo um da série, já ressaltei que nenhum crime é um evento isolado; sempre há fatores a mais para considerar. Assim, necessário aduzir que o cachorro é abatido em um dia especialmente grave, pois Waldir (Ângelo Antônio), marido de Fátima, é um motorista de ônibus fura-greve e, por isso, entra em conflito com seus colegas de trabalho. Há uma briga e ele é esfaqueado. O episódio não mostra, mas sabemos pela sinopse que o rapaz morrerá.

Fátima está, portanto, sob o impacto de uma tragédia familiar, tendo que cuidar sozinha dos dois filhos, mantê-los calmos, etc. Sabemos que ela possui um temperamento razoável, pois preferiu colocar os animais para dentro de casa, durante a noite, a fim de salvá-los, em vez de confrontar mais diretamente com o vizinho. Nessa noite, contudo, sucumbiu. Difícil recriminá-la. O cachorro pagou o pato. Ou melhor, as galinhas.

O truculento Douglas não deixa por menos e chama a polícia. Embora sejam colegas, não vemos interação do elemento com eles. Vemos apenas os policiais revistando a casa. Daí o criminalista em mim se perguntou: revistando por quê? Fátima estava tão tranquila quanto possível, colaborativa, então imagino que tenha entregado o revólver. Como não sabemos disso e o denunciante com certeza mencionou a arma, a revista faria sentido. Ela está disposta a ir à delegacia para o que acredita seja uma besteira: tratar da morte de um cachorro (embora exista, de fato, um crime aí, talvez ela ignore isso). Tudo parece sob controle até que surge uma lata contendo cocaína. O policial prova o pó (danadinho...) e diz que há quase um quilo (mas latas de leite têm, em média 400 gramas).

O criminalista em mim reconhece o padrão: revistas domiciliares e droga sendo encontrada do lado de fora, sem nenhuma testemunha além dos próprios policiais. Aplicada a regra está na sua propriedade então é seu, o aviso é dado: "Agora a senhora se complicou". Não adianta explicar nada: você já virou traficante automaticamente. "Vá se explicar ao delegado". E, claro, não discuta comigo, pois é desacato. Sempre assim. Fátima é corajosa e aflora seu instinto de defesa. Acaba jogado no sofá e algemada. Truculência cotidiana com os pobres, totalmente desnecessária. Ela fala nos filhos, que estão vendo tudo, mas ninguém se importa.

Fátima deduz que a droga foi plantada por Douglas. Mas, especulo, ele nem precisaria plantar, se pedisse aos colegas que incriminassem uma inocente como um favor. Sim, existe esse tipo de corporativismo. E também existe um injustificável acesso de policiais a drogas. Douglas seria um traficante, um usuário ou teria droga guardada em um cofre, para usar quando quisesse prejudicar alguém, como uns e outros fazem? Por favor, não mencionemos nomes, para evitar consequências legais. O fato é que, sete anos mais tarde, ele confirmará a suspeita. "Aquele cachorro te custou caro", dirá.

Em meu entendimento, a trama de Fátima é a narração da presunção de culpa, situação a que estão submetidos todos os pobres, quando alcançados pelo sistema de justiça criminal, principalmente pela polícia, que exerce a dianteira dos processos de criminalização secundária. Como tenho defendido nos últimos anos, quem decide o que é crime é a polícia. O Ministério Público só vai na corda e denuncia com base nos inquéritos recebidos. Denuncia quase sempre. Ainda mais em se tratando do onipresente tráfico de drogas, que responde, hoje, por expressiva fatia da clientela criminal no Brasil.

Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em relatório divulgado em abril deste ano, 40 mil pessoas ingressaram nas prisões brasileiras no intervalo de um ano (de 2013 a 2014), mantendo-se o índice de 40% de presos provisórios, a absoluta predominância de negros e tendo o tráfico como a principal causa de prisões. "Os dados do levantamento mostram que 61,6% dos presos são negros, 75% têm até o ensino fundamental completo e 55% têm entre 18 e 29 anos. Vinte e oito por cento respondiam ou foram condenados pelo crime de tráfico de drogas, 25% por roubo, 13% por furto e 10% por homicídio" (cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-04/mais-de-40-mil-presos-entraram-na-populacao-carceraria-brasileira).

O tráfico, real ou fictício, é o grande culpado pelo encarceramento massivo dos últimos anos, mesmo em se tratando da apreensão de pequenas quantidades de droga, especialmente no caso de mulheres. Sobre estas, destaque-se que geralmente são rés primárias (cf. https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/crack-chama-a-atencao-para-dependencia-quimica/populacao-carceraria.aspx), o que deveria reforçar a presunção de inocência. Ou seja, hoje, mandar uma pessoa para a cadeia é bastante simples: basta acusá-la de tráfico. Nem crimes sexuais causam tanto estrago, em termos de acusações falsas. A política de guerra às drogas está nos conduzindo para uma nova Idade Média. Naquela época, bastava um grito de "bruxa" e as fogueiras se acendiam. Agora é "traficante" e a máquina de moer gente é ligada.

De  acordo com a premissa do seriado, dita pela autora, e que usei como epígrafe ("Depois que a justiça morde o seu quinhão, o que é que sobra da vida das pessoas?"), uma acusação leviana, pressuposta pelo sistema como verdadeira, certamente não investigada como deveria, custou a Fátima sete anos de prisão. Mas essa nem é a maior perda.

Eu e minha esposa pensamos a mesma coisa, de tanto vermos seriados americanos: nos Estados Unidos, a polícia não sairia da casa de Fátima sem antes colocar as crianças sob a proteção do serviço social. Aqui, elas foram simplesmente abandonadas. E como não havia quem cuidasse delas, sumiram no mundo. Segundo a sinopse da série, iremos a outra obviedade: o menino se tornará pivete; a menina, prostituta.

Aqui temos o que me parece uma falha de roteiro. Ficamos com a impressão de que Fátima foi presa e simplesmente passou sete anos sem notícias dos filhos. No entanto, uma mãe zelosa, em todas as oportunidades que teve de contato com autoridades policiais ou judiciais, pediria pelas crianças. Alguém tomaria alguma providência. Duas crianças caírem em um buraco negro, da forma relatada, não me parece realista. A luta por reencontrá-los é uma boa estratégia dramática, mas existem pontas soltas, que precisam ser atadas.

Uma última ponderação criminológica: na última cena do seriado, Fátima ameaça Douglas com um facão. Tem todos os motivos do mundo, mas ela é egressa do sistema penitenciário. Já foi marcada. Para voltar como reincidente, não custa nada. É a inserção forçada em carreiras criminais, de que nos fala Zaffaroni. Melhor tomar cuidado. Caranguejo que bobeia a maré leva. Principalmente se for um caranguejo-traficante.

Antecedentes criminais

  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html

Elisa e Vicente: a justiça como deturpação

[Se não viu o capítulo, o texto abaixo contém spoilers. Se ler, não reclame depois.]

Às segundas-feiras, a minissérie Justiça abordará o caso de Vicente (Jesuíta Barbosa), que assassinou com cinco tiros sua noiva Isabela (Marina Ruy Barbosa), ao flagrá-la em um banho pós-sexo com o ex-namorado. Ou seria mais correto dizer que abordará o caso de Elisa (Débora Bloch), mãe de Isabela, que decidiu assassinar Vicente por não se conformar com o fato de ele ficar "apenas" sete anos preso.

A série dá sinais de que pretende construir com calma os personagens. A narrativa é curiosamente lenta para a televisão, mostrando diversas interações dos personagens até se chegar ao clímax. Com isso, o telespectador ganha uma possibilidade que não existe na vida real: a de saber como se deram as diferentes circunstâncias que culminaram em um crime.

Na cabecinha da maioria das pessoas, o "crime" é um evento estático, um acontecimento que eclode por uma decisão estritamente individual do "criminoso". Essa simplificação permite que o "criminoso" seja visto tão somente como uma pessoa má, que decidiu fazer o mal quando lhe era inteiramente possível e exigível agir de acordo com a "lei" e, assim, fazer o bem. Se assim fosse, bastaria impor um castigo, e o pior castigo possível, como retribuição ao mal. É o que as pessoas em geral querem.

As aspas utilizadas no parágrafo anterior alertam para os perigos de naturalizar conceitos que não são ontológicos. Não existe "crime", tampouco "criminoso", como dados da realidade; esses conceitos existem, tão somente, enquanto rótulos apostos a certos fatos e a certas pessoas, por alguém que está em condições de impor o seu julgamento. Assim, poderíamos demonizar Vicente como criminoso, por assassinar a jovem e cheia de vida Isabela, e ao mesmo tempo encontrar justificativas para Elisa, que, se matasse o bandido, estaria justiçando-o e, portanto, para muitos, não cometeria crime. Se levada a tribunal do júri, poderia até mesmo ser absolvida por jurados empáticos. Tecnicamente, contudo, as duas situações constituem homicídio. A diferença que emerge não é jurídica: tem a ver com nossa mania de traçar uma horrenda linha divisória entre vidas merecedoras de respeito e vidas matáveis (expressão de Giorgio Agamben).

Embora instigante, o episódio me incomodou um pouco pelo texto exageradamente didático na sequência de Elisa e seu namorado Heitor (Cássio Gabus Mendes). Ali compareceu, em formato clichê, a síntese do discurso em torno dos crimes: as vítimas ou seus familiares dizem querer justiça, mas na verdade o que buscam não é nada senão vingança. Um sentimento extremado, e muitas vezes totalizante, de que o sofrimento do criminoso poderia apaziguar a nossa angústia. Elisa, no entanto, é um caso superlativo: ela tem idade e instrução, mas mesmo assim está disposta a matar Vicente e se entregar em seguida, recebendo uma punição, porque mesmo na cadeia ela acredita, como declara, que terá paz.

A bem da verdade, Elisa faz uma aposta arriscada: ela afirma que, se por matar sua filha Vicente ficou sete anos preso, ela ficaria menos, então valeria a pena o sacrifício. Aparentemente, ela se rege por um raciocínio matemático, além de uma óbvia aplicação das técnicas de neutralização, tão bem descritas pelos criminólogos Gresham Sykes e David Matza: Elisa não se enxerga como homicida, mas como alguém que imporá a justiça não proporcionada, ao assassino, pelo sistema de justiça criminal, ao condená-lo a uma pena que considera baixa. Com isso, ela solapa princípios éticos supostamente valiosos para a sociedade e para ela mesma (não matar) e se capacita a consumar o ato, que no final das contas é, tão somente, uma medida desesperada para resolver seus tumultos íntimos, oriundos da perda da filha. Outro argumento neutralizador é classificar seu plano como expressão do amor materno, que tudo enfrenta em favor dos filhos.

O plano de Elisa me parece claramente inútil: não há qualquer benefício na morte de Vicente, como lhe diz Heitor, por meio do mais óbvio e oportuno argumento: nada trará Isabela de volta. Resoluta, ela renuncia até ao amor de um homem que realmente se importa com ela, que até lhe propõe formar uma família. Isto me leva a outra questão: afinal, quem é pior, Vicente ou Elisa? Eu e minha esposa divergimos neste ponto.

Minha esposa repudia Vicente porque ele era "instável", ciumento e agressivo. O fato de andar armado (algo proibido pelas leis do país) já prenunciaria a sua propensão a matar, caso contrariado. No entanto, colocando o homicídio em contexto, Vicente estava sob forte pressão, devido ao fato de a empresa de seu pai estar indo à falência, porque o sócio de 20 anos traiu a confiança, desviou dinheiro, fugiu e deixou um rastro ruinoso atrás de si. O clima na empresa era péssimo e já acontecera de um ônibus ter sido incendiado pelos trabalhadores sem salário. Sob efeito de muita bebida, o rapaz tenta demonstrar à noiva seu desejo de se casar, mas nesse exato momento ele flagra a traição, justamente com o ex-namorado, que já rendera conflitos anteriores. Como andava armado, foi só sacar do revólver e descarregá-lo. Crime de ímpeto. Vicente, provavelmente, não pensou no que fazia. Seu semblante não transparece satisfação com a morte, e sim sofrimento, o que sugere um crime verdadeiramente passional. O verdadeiro passional não gosta do que faz, sente culpa e frequentemente até pensa em suicídio.

Diferentemente, Elisa não se socorre nos argumentos técnico-legais da legítima defesa ou do domínio de violenta emoção logo após injusta provocação do ofendido. No plano ético, ela recebeu uma resposta estatal, porém não se conformou com sua intensidade. Teve tempo de buscar ajuda para reconstruir a própria vida, mas acalentou lentamente um projeto de vingança, com longa e detalhada preparação. Para mim, ela é pior. Tenho horror a justiceiros. Isso não diminui o risco que Vicente representa. Também tenho horror a gente impulsiva, pois coloca a todos em perigo, já que não oferece segurança acerca de suas reações. O potencial de risco pode ser maior, mas o troféu de imoralidade fica mesmo com os justiceiros. É o que penso.

Ao final do capítulo, hora de executar o plano, hora de matar. Vicente está na mira da arma de Elisa, que praticou tiro e desenvolveu excelente pontaria. Distância curta, o tiro é certo. Aí descobrimos que o rapaz tem uma companheira e uma filha, cujo nome é Isabela (voltamos à culpa do passional). A justiceira hesita, mas ainda não sabemos se o tiro será dado.

Aguardemos as cenas do próximo capítulo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A "Justiça" chega ao mainstream

"Depois que a justiça morde o seu quinhão, o que é que sobra da vida das pessoas?"

Manuela Dias, autora

Como atualmente é raro eu assistir à TV aberta, tomei conhecimento da nova aposta teledramatúrgica da Rede Globo, Justiça, curiosamente com vários dias de antecedência, porque pessoas que me conhecem deduziram que seria do meu interesse. Primeiro meu irmão, depois vários alunos, sendo que estes já começaram a me questionar sobre o conteúdo exibido. Coloquei para gravar e pretendia assistir no final de semana, mas estão me fazendo perguntas que me instigam a acompanhar a série tão prontamente quanto possível.

Clicando no link que se segue, você pode assistir a um vídeo do canal Gshow explicando a proposta: http://gshow.globo.com/series/justica/playlists/0/gshow-apresenta-justica.html



Justiça é uma minissérie de ficção que adota um tom narrativo documental, a fim de assumir uma natureza tão realista quanto possível. É o que explicam a autora, Manuela Dias (39 anos, 20 na Globo, com experiência como roteirista colaboradora em seriados, tais como "A grande família" e "Faça sua história", e nas novelas de Thelma Guedes e Duca Rachid, tornou-se autora principal com "Ligações perigosas", exibida este ano, além de ter roteirizado, para o cinema, filmes não comerciais, porém elogiados e premiados) e o diretor artístico José Luiz Villamarim (20 novelas e minisséries no currículo).

Eles falam em uma linguagem inovadora, mas me permitam dizer que seria inovadora no Brasil, já que a fórmula é bem conhecida na teledramaturgia estadunidense, que adota o formato de seriados. São tramas policiais, no caso enfatizando aspectos predominantemente humanos, com o recurso das estórias paralelas que se cruzam ocasionalmente, o que funcionou bem em filmes de razoável sucesso, tais como Magnólia e Crash: no limite.

O objetivo é discutir temas éticos complexos, tendo como pano de fundo a "Justiça", não como princípio, mas como aparelhamento estatal. Aliás, para mim, chamar o poder judiciário de "justiça" sempre me soou curioso e, hoje, altamente irônico (não apenas o judiciário, mas as agências punitivas como um todo). A produção parece preocupada com o funcionamento do sistema de justiça criminal, tanto sob o aspecto das leis quanto de sua realidade operacional. Assim, se por um lado temos personagens que realmente cometeram crimes, por outro temos gente injustiçada. Em comum, todos foram presos na mesma noite e ficaram sete anos presos. Como serão suas vidas depois disso, é o que será explorado, sob uma perspectiva que a autora resume na frase que usei como epígrafe. Essa frase resume o meu interesse pela série e sintetiza o meu esforço, como professor de direito penal e de criminologia.

Bem construída e contando com interpretações cativantes, Justiça chega para ser o meu mais novo material didático. Os questionamentos vão se avolumando, então trataremos deles em postagens posteriores. Afinal, quem não se interessa por uma boa estória? E quando essa estória nos permite refletir sobre a realidade, melhor ainda.
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Fontes:

  • http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/manuela-dias-aborda-relacao-entre-etica-as-leis-em-nova-serie-na-tv-globo-19444508
  • http://www.filmeb.com.br/quem-e-quem/montador-produtor-roteirista/manuela-dias

sábado, 20 de agosto de 2016

As luzes sempre se apagam

David F. Sandberg é um cineasta sueco de 35 anos, que buscava um lugar ao sol fazendo filmes de curtametragem. Em 2013, uma época difícil por causa das muitas dívidas que acumulara, postou no YouTube o seu curta Lights out (veja em: https://www.youtube.com/watch?v=DIbx3zPWij4). Era uma estória de terror, que explorava um elemento presente na vida de um sem número de pessoas: o medo do escuro. Em apenas dois minutos e meio, Sandberg conseguiu assustar muita gente, o vídeo fez sucesso e o rapaz começou a ser procurado por gente da indústria cinematográfica, interessada em saber se havia material para um longa.

O curta de 2013, ainda sem dinheiro.

Sandberg não estava convicto de que poderia explorar o mote em um longa até ser procurado por James Wan. Se você não está ligando o nome à pessoa, Wan é o grande nome do cinema de terror da atualidade, com o sucesso dos filmes que dirigiu ou produziu: Invocação do mal, Anabelle e Invocação do mal 2, criando uma nova e bem-sucedida franquia que não para de gerar frutos. E bons frutos.

Sob a produção executiva de Wan, Sandberg roteirizou (em parceria com Eric Heisserer) e dirigiu o longa Lights out, no Brasil Quando as luzes se apagam, atualmente em exibição. E o resultado foi... excelente.
O longa de 2016: agora é pra valer.

O gênero terror é extremamente propenso a favorecer porcarias de todo tipo. Poucos conseguem contar uma estória com dignidade. E o risco de sucumbir aos clichês é elevadíssimo. Por isso, é normal vermos um filme desse estilo antecipando o que vai acontecer. Quando mais acertamos, pior é o filme. E aí está um dos méritos de Quando as luzes se apagam: você supõe que acontecerá isso e aquilo, mas a trama segue um rumo diferente. Não é que ele seja ultra-original, mas o enredo é bem amarrado e bem desenvolvido.

Você acha que ela está lá? Ela está mesmo!

Sandberg acerta a mão justamente porque não tenta revolucionar. A partir de uma ideia relativamente simples, explica tudo o que o espectador precisa saber logo no começo do filme e depois nos proporciona apenas o esforço dos protagonistas para vencer um mal imenso que não suporta a luz. A técnica do sustinho súbito não é empregada: você sabe que Diana está lá e só precisa da escuridão para fazer suas maldades. E ela vem de todos os lados, respeitando as premissas, sem deixar pontas soltas.

Quando as luzes se apagam foi muito bem recebido pela crítica e denuncia que a parceria Wan-Sandberg evoluiu rapidamente para um nível amizade-quase-amor. Sandberg já está filmando Anabelle 2 e Lights out 2 já foi anunciado, ambos com lançamento previsto para 2017. Se mantiverem o padrão de qualidade, esses caras estão fazendo história.

James Wan, um australiano com ascendência chinesa de 39 anos, que chegou antes ao mainstream (dirigiu o primeiro Jogos mortais e foi produtor executivo de toda a série), tem vários trabalhos anunciados ou em pré-produção. Um dos rumores aponta para um filme chamado The nun (A freira), aproveitando o pânico que a entidade maligna de Invocação do mal 2 provocou no público. Reunindo todos os que citei nesta postagem, serão sete filmes de terror capazes de fazer a diferença. O rapaz também dirigirá Aquaman, ou seja, mais um capítulo na interminável e já cansativa lista de filmes de super-herois que hoje dominam as telas. Ou seja, já se deu bem.

Agora vamos torcer por Sandberg. Ele merece. Vá se assustar.

sábado, 13 de agosto de 2016

O sucesso do Renan

O poder replicador da internet é impressionante.

Este blog nunca foi um sucesso de público. Sempre foi, apenas, uma modesta iniciativa individual de um rapaz latinoamericano com apenas o dinheiro do salário no banco. Dei-me ao trabalho de consultar e vi que, observadas as últimas mil postagens (o que me fez remontar a setembro de 2012), apenas 7 delas chegaram a mil acessos.

Mas eis que, de repente, a postagem sobre o meu querido Renan Trindade e o racismo persistente no país levou pouco mais de 6 horas para alcançar essa marca. Isso, claro, graças à divulgação da publicação no Facebook, que teve, até o momento, 8 compartilhamentos. Ela foi postada, no blog, às 12h05. Seis horas e cinco minutos depois, já tínhamos alcançado 1.011 acessos!

Para um blog que raramente é atualizado, chegar ao melhor desempenho de todos os tempos, é algo que precisa ser comemorado por este modesto editor.

Valeu, Renan. Até esta fico te devendo.

Sobre Renan e as resistências necessárias

Na noite da última quinta-feira ocorreu a cerimônia de colação de grau das turmas de meio de ano do CESUPA. Estando em sala de aula, não pude comparecer. Na verdade, não cheguei a lecionar para as turmas que se formaram (o que foi uma pena para mim, a julgar pelo que dizem meus colegas). No entanto, eu tinha ao menos um grande motivo para estar lá. Começarei com a postagem dele no Facebook:


Vários anos atrás, em uma cerimônia de colação de grau, vi o desfile dos alunos indo receber o diploma junto à mesa condutora dos trabalhos, e de repente me deu um insight: não temos alunos negros no curso! Senti-me mal, porque passei a vida cercado por pessoas com diferentes condições de vulnerabilidade e eu sabia que lhes faltavam oportunidades de crescimento, por mais que o desejassem.

Estando às vésperas de completar 17 anos de docência, posso lhes afiançar que, com o tempo, mormente na última década, vi o perfil do curso mudar ― ainda que não tão amplamente quanto deveria, como o depoimento de Renan desvela. O número de alunos negros, pobres (na verdade, neste país, uma coisa leva à outra), trabalhadores, bolsistas e congêneres aumentou. Vocês não têm ideia do tipo de transformação que isso representa.

Você deve estar pensando que mudou apenas a paleta de cores e o nível de renda, com seus óbvios atributos de tipos de vestimenta, bens de consumo e qualidade dos dentes. Mas a mudança é muito mais profunda. São pessoas oriundas das escolas não elitizadas, frequentemente do ensino público, com todas as suas carências. Embora eu faça questão de destacar, em todas as oportunidades que tenho, que em Belém as escolas só são elitizadas por critérios de arrogância, não de qualidade. Em termos de conhecimento acumulado e capacidade de raciocínio lógico e crítico, os alunos não se distinguem de um modo que eu possa identificá-los se, por exemplo, apenas lesse as suas provas.

A mudança é mais sensível, porque as experiências de vida, as aspirações e as irresignações que chegam à sala de aula são diferentes. Sendo eu professor de direito penal, o campo jurídico em que mais explodem as consequências das desigualdades sociais, a chegada de uma compreensão menos gourmetizada do mundo é um alívio e uma necessidade. Em que pese, aqui também, as diferenças serem incipientes. Ainda estamos apenas no começo, mas já começamos.

Neste momento, tenho turmas novas, de direito penal I, justamente o período mais delicado, em que preciso orientá-los sobre como a orquestra realmente toca, enquanto, em redor, os comensais pensam que todos foram convidados a compartilhar a mesma mesa, a mesma música. E há os animadores, repetindo isso à exaustão, para que todos acreditem. Contudo, se olharmos em volta, os que bailam e os que servem são claramente distinguíveis e isso não ocorre por acaso. Por saber disso, por viver isso, por sentir isso na pele, Renan teve a ousadia de escolher, como tema de monografia, o racismo entranhado nas instituições brasileiras. O mesmo racismo que, para a criminologia, é a causa de mortes e de infinitas outras violências, desde o berço.

E foi assim que Renan, que não foi meu aluno, chegou a mim, para orientação da monografia, permitindo-me uma experiência inédita e profundamente recompensadora, a começar por sua enorme autonomia: ele já sabia exatamente o que precisava dizer. Eu só ajudei na forma acadêmica.


Banca do Renan (março de 2016): em discussão, o racismo institucional no Brasil.
Na foto, eu, Renan e o Prof. Adrian Silva

Renan, recebe meu abraço apertado pela tua formatura. Tu és um exemplo, pelo salto dado sobre todos os eventuais prognósticos desfavoráveis de tua vida; pela consciência crítica do que é o mundo; pelo desejo sincero de transformá-lo (em vez de, simplesmente, ascender socialmente e gozar a experiência de estar do outro lado, esquecendo as origens e quem está atrás, como muitos escolhem fazer); pela honra que conferes a tua mãe (aquela mulher de sorriso maravilhoso), que batalhou para te criar e que saiu chorando na foto, como um dia minha mãe também chorou e por razões bem parecidas; e por fazer isso com tanto estilo e confiança, mandando um beijinho no ombro para azinimigas.

Pessoalmente, muitíssimo obrigado por compartilhar a tua conquista pessoal comigo.

O resto tu já sabes: resistência, sim. Resistência sempre.

domingo, 31 de julho de 2016

Para onde pode ir o abuso de autoridade no direito penal brasileiro

Em sua célebre obra Outsiders, referência obrigatória para todos que se ocupam do tema do comportamento desviante (e, na sequência, criminoso), Howard Becker já ensinava, na distante década de 1960, que as autoridades se ocupam muito mais de impor as regras (e leis) existentes do que em elaborar regras adequadas ao momento vivido pela sociedade; e que nessa tarefa de imposição acabam tão obcecadas pela obediência que chegam a se esquecer das finalidades que levaram à criação da regra. Por outras palavras, você deve obedecer não porque existe alguma razão útil para esta ou aquela conduta, e sim porque eu mandei. Ainda é Becker, na mesma obra histórica, quem aponta que muitos policiais entrevistados consideravam normal usar a violência para impor a obediência.

O problema do excesso de poder é inerente à simples existência do poder. Não diz respeito ao Brasil nem a contextos de democracia suspensa ou combalida. É um problema global e permanente, que se exprime com maior ou menor gravidade, sendo que, em nosso país, com extrema gravidade, por diversos fatores, que se originam na formação do povo brasileiro. Não somos uma sociedade de castas, mas nos comportamos como se fôssemos, com brutal convicção. Como ensina Jessé Souza (A construção social da subcidadania e A ralé brasileira), o Brasil ingressou na modernidade sem assimilar os valores próprios da modernidade, entre os quais a noção liberal de que todo ser humano tem valor simplesmente por ser gente.

Saímos da monarquia para a república, mas mantivemos os mesmos hábitos execráveis. No lugar da nobreza e da aristocracia, colocamos a autoridade pública, instituímos a cultura bacharelesca (os bachareis que até hoje se sentem à vontade para usurpar o título de doutor), perpetuamos o menosprezo pelo trabalho e os estereótipos de dignidade, ou falta dela, baseados na fortuna, na aparência física (especialmente na cor), no sobrenome, dentre outros. Convictos que somos de que a sociedade se divide em cidadãos de primeira categoria, cidadãos de segunda categoria e párias, chegamos ao século XXI ignorando que as revoluções liberais do século XVIII tiveram como um de seus principais ingredientes a colocação do indivíduo a salvo do poder desmesurado do Estado.

Esta longa introdução talvez fosse dispensável, diante da minha convicção de que todos concordarão se eu afirmar que vivemos em um país em que as autoridades violam, dolosa e cotidianamente, os direitos individuais, perpetrando toda sorte de abusos. Supostamente para contê-los, veio a lume a Lei n. 4.898, de 1965, que "regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade", ainda em vigor, com pouquíssimas modificações.

A aparente ironia de uma lei sobre abuso de autoridade produzida pouco mais de um ano após a eclosão de uma ditadura civil-militar é minimizada quando se percebe que a pena privativa de liberdade cominada a esses crimes seria de no máximo 6 meses de detenção. Mais digna de nota era a pena de perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos. Era mais ou menos um regulamentar para não punir, na prática. E assim tem sido. Ao longo do tempo, não foram poucas as vozes que se ergueram para denunciar a desproporcionalidade entre o crime (grave) e a pena (inócua), pugnando por um incremento da punição. Matéria naturalmente inconveniente para os aboletados no poder, os reclamos nunca chegaram a um lugar efetivo.

A matéria foi discutida por ocasião da elaboração do Projeto de Lei do Senado (PLS) n. 236, de 2012, que institui o novo código penal. Mas o trabalho ali sofreu inúmeras críticas da comunidade penalista, inconformada que a preocupação com uma reserva de código (toda a matéria penal deve estar contida no código respectivo) tenha conduzido basicamente a um "copiar + colar": várias leis foram simplesmente compiladas no projeto, sem uma discussão aprofundada sobre o seu conteúdo.

A ainda vigente Lei 4.898 considera abuso de autoridade qualquer atentado às liberdades de locomoção, de consciência e de crença, de exercício do culto religioso e de associação; à inviolabilidade do domicílio; ao sigilo da correspondência; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade física do indivíduo; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional (art. 3º).

Também são previstas as condutas de: "a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa; h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade" (art. 4º).

A lei ainda prevê (art. 6º) que o abuso de autoridade admite três sanções cumulativas, nas esferas administrativa, civil (indenização) e penal. No primeiro caso, vamos da advertência à suspensão do cargo, função ou posto por até 180, com prejuízo da remuneração, e à demissão, inclusive a bem do serviço público.

As sanções penais previstas são de multa e de detenção por 10 dias a 6 meses, além da perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por até 3 anos.

No projeto de novo código penal, a justificativa afirma que "os crimes de abuso de autoridade ganharam sistematização mais moderna, passando a abarcar situações não previstas pela Lei de
Abuso de Autoridade da década de 1960". O tipo é o primeiro do Título XI, que define os crimes contra a Administração Pública. Lembremos que o Código Penal dispõe os tipos penais de forma hierarquizada, de modo que o tema que comparece em primeiro lugar é considerado mais importante. Assim, nos injustos contra a Administração Pública, o peculato perde a primazia para o abuso de autoridade, o que não deixa de ser um sintoma interessante.

A lei projetada tem a seguinte redação:

Art. 281. Constituem abuso de autoridade as seguintes condutas de servidor público, se não forem elemento de crime mais grave: [nota-se que o delito foi tratado como subsidiário, facilitando a aplicação de norma mais grave, se for o caso]
I – ordenar ou executar prisão, fora das hipóteses legais; [hipótese já prevista na lei atual, com a redação simplificada]
II – constranger qualquer pessoa, sob ameaça de prisão ou outro ato administrativo ou judicial, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe; [inovação interessante, que institui uma forma peculiar de constrangimento ilegal por ato de autoridade, tendo por meio executivo algo semelhante ao metus publicae potestatis, que conhecemos do crime de excesso de exação]
III – retardar ou deixar de praticar ato, previsto em lei ou fixado em decisão judicial, relacionado à prisão de qualquer pessoa; [esta hipótese melhora e atualiza previsões existentes na lei atual]
IV – deixar de conceder ao preso qualquer direito se atendidas as condições legais para sua concessão; [avançamos aqui, em termos de assegurar direitos dos presos, não se restringindo ao campo das cobranças indevidas]
V – exceder-se, mediante violência ou grave ameaça, sem justa causa, no cumprimento de qualquer diligência; [previsão que, se cumprida, pode evitar os habituais excessos na ação da autoridade, sobretudo a policial, p. ex. a utilização injustificada de força]
VI – submeter qualquer pessoa sob sua custódia ou não, durante diligência ou não, a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; [não basta prevenir a violência: precisamos evitar outras formas de excessos, tais como a exposição à execração pública]
VII – submeter preso ou investigado ao uso de algemas quando ele não oferecer resistência à prisão e não expuser a perigo a integridade física de outrem; [uma previsão específica da hipótese do inciso V, porque o uso abusivo de algemas é recorrente na atividade policial, mesmo após a Súmula Vinculante n. 11]
VIII – invadir, entrar ou permanecer em casa ou estabelecimento alheio, ou em suas dependências, contra a vontade de quem de direito, sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais; [o tipo de violação de domicílio deixaria de ter existência autônoma, passando a hipótese de alguns outros delitos, tais como este, o que é uma solução adequada, evitando a criminalização de bagatela; no abuso de autoridade, a violação de domicílio, protegida em nível constitucional, é grave o bastante para autorizar a tipificação]
IX – proceder à obtenção de provas ou fontes de provas destinadas a processo judicial ou administrativo por meios não autorizados em lei; [é a criminalização da obtenção de prova ilícita, outra prática recorrente]
X – expor a intimidade ou a vida privada de qualquer pessoa sem justa causa ou fora das hipóteses legais; [outro abuso recorrente na atividade policial, sobretudo, hoje facilitado pelas tecnologias de informação e de comunicação]
XI – exceder-se sem justa causa no cumprimento de qualquer diligência; [quase a mesma previsão do inciso V, só que agora sem violência; trata-se de tipificação muito aberta, o que é sempre um problema]
XII – coibir, dificultar ou impedir reunião, associação ou agrupamento pacífico de pessoas, injustificadamente, para fim não proibido por lei: [os juristas que projetaram o novo Código Penal se preocuparam em não criminalizar os movimentos sociais e os protestos e aqui encontramos uma indicação disto]
Pena – prisão, de dois a cinco anos. [por princípio, sou contra o punitivismo, mas a pena do abuso de autoridade é inócua, de modo que este incremento é necessário; com a definição deste patamar, o legislador afasta a aplicação de qualquer medida da Lei n. 9.099, de 1995]

A lei projetada também prevê, como efeito da condenação, "a perda do cargo, mandato ou função, quando declarada motivadamente na sentença, independentemente da pena aplicada" (art. 282).

Como não há sinais de que o PLS 236 terá movimento na própria casa legislativa que mandou elaborá-lo, o senador Renan Calheiros protocolou, em 6.7.2016, um projeto versando exclusivamente sobre abuso de autoridade. A primeira reserva que precisamos ter diz respeito às intenções de um homem como Calheiros, multicitado em negociatas várias, inclusive na onipresente "Operação Lava Jato", aquela que divide os brasileiros em homens de bem (você) e corruptos (todos os que discordam de você).

Boa parte do projeto constitui mera repetição de normas que já existem nos códigos penal e de processo penal, tais como direito de representação, retratação, decadência, ação de iniciativa privada subsidiária e efeitos da condenação, exceto no que tange à perda do cargo, mandato ou função, que somente seria possível em caso de reincidência (art. 4º). Aqui a norma se torna muito benéfica para os abusadores. Também há repetição desnecessária no que tange à relativa independência das responsabilidades administrativa, cível e penal, inclusive no que tange à impossibilidade de punição, nos âmbitos cível e administrativo, em caso de sentença penal que tenha reconhecido a prática da conduta sob as circunstâncias que o Código Penal classifica como excludentes da ilicitude (arts. 7º e 8º).

O PLS 280 tenta ser original quando deixa claro que o crime de abuso de autoridade pode ser perpetrado por agentes da Administração Pública, servidores públicos ou a eles equiparados e por membros dos poderes legislativo e judiciário, além do Ministério Público (art. 2º). Fora do Executivo, há quem insista em se considerar "agente político", tanto para satisfazer o próprio ego quanto para escapar à aplicação de certas regras (embora aceitem ser tratados como servidores públicos quando isso implique a percepção de vantagens financeiras ou de outras ordens, como licenças). Com este projeto, essa discussão seria sepultada.

O crime passaria a ser submetido a ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça (art. 3º).

Há previsão de penas restritivas de direitos (art. 5º), sendo prestação de serviços à comunidade (já existe); suspensão do exercício do cargo, função ou mandato pelo prazo de 1 a 6 meses, com perda dos vencimentos e vantagens (nada de novo); e proibição de exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, pelo prazo de 1 a 3 anos. Aqui, pela limitação a funções policiais ou militares, a norma também é restritiva. Outro ponto para os abusadores.

No que tange à tipificação, o projeto desmembra as hipóteses de abuso de autoridade, diferenciando as penas e, com isso, voltando a permitir a aplicação, em tese, de institutos despenalizadores da Lei n. 9.099, inclusive mantendo algumas condutas na condição de infrações de menor potencial ofensivo.

Dispenso-me de transcrever as modalidades do crime, porque o projeto é preciosista e cria um elenco desnecessariamente grande de hipóteses. São basicamente as mesmas previsões do PLS 236, porém divididas em muitos mais incisos, que apenas esmiúçam particularidades. Sabemos que leis prolixas e muito específicas podem se tornar uma armadilha para o intérprete. Aos interessados, a íntegra do PLS 280 pode ser acessada neste endereço: http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=196675&tp=1.

De interessante, destaco a previsão do art. 13 do projeto, que tipifica a conduta de "constranger alguém, sob ameaça de prisão, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo", equiparando as condutas de "quem constrange a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo" Também me chamou a atenção a tipificação de condutas que retardem a comunicação, ao magistrado, da prisão ou condições da custódia, bem como da omissão do magistrado (art. 17).

Também destaco a tipificação da conduta de manter presos no mesmo espaço homens e mulheres, ou adultos e menores de idade (art. 20).

Algumas previsões parecem, à primeira vista, inconvenientes, como o constrangimento com finalidade sexual (art. 19) e de interceptação de comunicações (art. 22), que podem gerar problemas interpretativos. O velho problema de legislar sobre o que já existe (inflação e superposição legislativa).

O terceiro crime mais grave previsto no PLS 280, com pena de 1 a 5 anos de reclusão, além de multa, consiste em "dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada" (art. 30), algo meio diáfano, que pode ser explorado por advogados competentes, ou seja, uma boa norma para resguardar aqueles que são habitualmente invulneráveis à persecução criminal. Legislando em causa própria? Algo a se pensar, considerando que o tipo mais grave, com pena de 3 a 6 anos, e multa, consiste em "deixar de corrigir, de ofício, erro que sabe existir em processo ou procedimento, quando provocado e tendo competência para fazê-lo". Honestamente, esta conduta me parece menos grave do que várias outras do projeto, mas ganhou a mão mais pesada do legislador. Pense: o juiz pode ser punido por não corrigir, de ofício, erros nos processos que presida. Sintomático.

O segundo crime mais grave, com pena de 2 a 6 anos, e multa, é uma nova previsão de excesso de exação, ou seja, proteção ao dinheiro, não ao ser humano (art. 34). O Brasil não muda, mesmo.

O projeto é tão longo e minudente que precisaríamos passar um pente fino nele, em cotejo com o PLS 236, para definir quais seriam as condutas que realmente deveriam ser mantidas. Minha primeira impressão, passível de convencimento em sentido contrário, não é de receptividade. Sempre me preocupa o complicar para não aplicar. Acho que o PLS 236, ganhando mais um ou dois incisos, poderia dar conta do recado.

Por fim, a justificativa do projeto contém apenas aquelas frases de efeito, típicas de políticos, invocando inclusive a mais conhecida panaceia jurídica (dignidade da pessoa humana). Por enquanto, mantenho os meus pés atrás. Trata-se de um projeto que merece ser amplamente debatido pela sociedade civil, para auxiliar o processo legislativo. Se a lei for debatida apenas no âmbito dos poderes constituídos, não me inspira confiança.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Uma verdade para Isabela

Você conhece o filme Philomena? Lançado em 2013, sob a direção do respeitável cineasta Stephen Frears (de Ligações perigosas), baseia-se na história real de Philomena Lee que, quando adolescente, engravidou e foi, por isso, demonizada pela família. Sua punição foi a internação em uma instituição católica onde a madre superiora, provavelmente imbuída das melhores intenções, vendia os filhos das internas, inclusive para casais de outros países. O filho de Philomena foi vendido para americanos. O filme retrata o seu esforço, cinco décadas mais tarde, para encontrá-lo. Quem a auxilia é um jornalista meio decadente e bastante mal humorado, que aceita a missão a contragosto e quer uma história para a BBC.

Embora definido como "comédia dramática", classificação que não me cai muito bem, Philomena trata de temas difíceis e revoltantes. Qualquer pessoa com sangue nas veias sentirá raiva. E o jornalista Martin Sixsmith sente muita raiva quando a verdade vem à tona. Furioso, quer que as freiras sejam entregues à justiça, a que se opõe Philomena. Ele brada: "As pessoas precisam saber o que aconteceu aqui!" E Philomena, com firmeza e doçura, redargue: "Aconteceu comigo!"

Incrível como essa cena me causou um profundo impacto. Naquele instante, vendo um filme em casa, surgiu em mim uma memória-base (agora estamos em Divertida mente). Aprendi que não devemos usurpar o protagonismo de outras pessoas, nem mesmo em nome de um suposto senso de justiça. Aquilo que, no popular, definimos como "ser mais realista do que o rei". Precisamos respeitar as emoções daqueles que efetivamente viveram os dramas. Por isso, hoje me incomoda profundamente que o monopólio da jurisdição, característica do Estado moderno, implique o confisco do conflito, como muito bem explica, dentre outros, Gabriel Ignacio Anitua em seu excelente História dos pensamentos criminológicos.

Mas se devemos nos esforçar para que os conflitos sejam mantidos sob as rédeas de seus próprios personagens, qual deve ser o nosso papel enquanto observadores externos? Será que, em nome da justiça, devemos intervir no que não é da nossa conta? Para mostrar, talvez, que somos nobres? Isso não seria basicamente o mesmo que fizeram as freiras irlandesas traficantes de crianças, convencidas de que uma criança seria mais feliz com pais adotivos clandestinos do que com a mãe verdadeira, sendo ela uma decaída? Ou não seria a mesma coisa porque, enfim, nós estamos certos?

Toda esta reflexão surgiu de um acontecimento aparentemente prosaico, do qual tomei conhecimento pelo Facebook: a moça que usou aquela rede social para dar uma dica, para uma mulher desconhecida, sobre um possível adultério.


A postagem viralizou. De repente, mulheres na minha linha do tempo passaram a repercutir o alerta em nome, veja só, da necessidade que as mulheres têm de se ajudar, algo que está no discurso do empoderamento feminino contra a violência de gênero, a cultura do estupro, etc. Ou seja, uma agenda importante do feminismo foi suscitada para justificar algo que soa a uma simples delação. Daí eu me pergunto: combater a "traição" se equipara àquelas outras lutas?

Pessoalmente, acho que todo mundo tem direito à verdade. Contudo, não entendo que seja meu o papel de porta-voz. Claro, já escutei que penso assim porque sou homem e, no fundo, minimizo a traição masculina; que estou sendo omisso por empatia com o traidor; que se fosse o contrário eu estaria criticando a mulher, etc. Todo um conjunto de julgamentos baseados em nada de concreto, apenas porque eu havia dito que, se tomasse conhecimento do adultério praticado por um amigo, não o revelaria à parte prejudicada. Motivo alegado na época: se o casal se reconciliar, eu serei o único vilão da história. Um tribunal de exceção julgou todo o meu caráter a partir de uma única alegação.

A bem da autora da postagem, destaco que ela não pediu repercussão de seu texto. Não pediu que a ajudassem na divulgação. Apenas deu o recado e concluiu com um "de nada", denunciando que ela acredita mesmo ter feito algo de valor. Mas o ambiente da Internet se encarregou do resto. Aparentemente, muita gente assumiu a bandeira de chegar à moça que está sendo traída, para que ela possa ser iluminada com a verdade e exercer a sua justiça, que só pode ser a punição do adúltero.

O interessante é que ninguém sabe se existe mesmo um adultério. Quem sabe o fulano não estava apenas contando vantagem para um amigo, a fim de parecer mais macho do que é? Ou se tratou como realidade algo que é mera fantasia? Aqui, cabe todo tipo de especulação. E se ele mantém um relacionamento aberto com a tal Isabela? O fato é que, qualquer hora dessas, alguma Isabela por aí pode enquadrar o namorado, haja ou não motivo para isso. E mesmo que haja, qual é o nosso papel nessa história? O meu? O seu? Nós realmente precisamos fazer essa campanha? Viramos os guardiões da monogamia? Uma versão cibernética das carolas de igreja que defendiam a moral e os bons costumes? No entanto, em nome de nossa honra, não somos as múmias da moral e dos bons costumes e sim os paladinos do empoderamento feminino, então isso justifica tudo. Será?

Pode me acusar de machismo, mas realmente acho que essa atitude é uma variação do punitivismo de esquerda, ou seja, uma deturpação da ideia de que as minorias devem ser auxiliadas a assumir o protagonismo de suas existências. Sempre voltaremos ao mesmo dilema ético: quem nos salva da bondade dos bons? Você quer ser salvo?

De minha parte, só revelaria um adultério mediante três condições: se tivesse plena certeza de sua materialidade, preferencialmente com meios de prova; se tivesse uma relação muito próxima com os dois envolvidos (abstraindo o outro ou outra); e após dar ao "traidor" a oportunidade de resolver a questão pessoalmente, para não confiscar alguma parcela do conflito. Do contrário, estaria interferindo em aspectos de um relacionamento que não posso conhecer, simplesmente porque não faço parte dele. Estaria afetando a vida privada de alguém em nome de sentimentos que, talvez, escavando bem fundo, possam ser descobertos como uma necessidade egoísta de autovalorização e não como um suposto desejo de ajudar alguém.

Enfim, não há respostas simples. Concluo com Renato Russo, na canção "L'avventura":

Nada é fácil
Nada é certo
Não façamos do amor
Algo desonesto

____________________________
Saiba mais: http://g1.globo.com/pop-arte/oscar/2014/noticia/2014/02/mulher-que-inspirou-filme-philomena-e-recebida-pelo-papa-francisco.html

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Chegando aos 41

Ainda me soa estranho, mas cheguei aos 41 anos. E, parafraseando Zeca Baleiro, considerando que já tenho uma filha e uma cachorra, reúno motivos para ser "tão feliz quanto os felizes". Embora eu realmente não estivesse em clima de comercial de margarina.

Nunca me importei com o meu aniversário. Mas, ano após ano, escutei que o dia do nosso nascimento é o mais importante do ano. Ela realmente acreditava nisso e repetia esse mantra, na esperança de um dia me convencer. Este ano ela não repetiu, não disse nada, não me acordou cedo, não desejou que eu continuasse sendo "esse bom filho", não lamentou o fato de eu estar a 3.600 Km de casa, etc.

Não acordei triste. Fiquei triste quando me lembraram de sua ausência, agora há 9 meses. Mas toquei adiante, porque, enfim, não temos muita alternativa.

Horas mais tarde, em um lugar de beleza estonteante, em meio a vegetação nativa, encontrei um oratório. Minto: na verdade, eu sabia que ele estava lá e fui até ele. E ali precisei ficar uns minutos. Há muito tempo que não faço mais orações. Não vejo mais sentido nisso. No entanto, naquele momento, fiz o que de mais perto posso chegar de uma oração. É a segunda vez que o faço. Não penso em deuses, santos, anjos ou em qualquer força transcendental. Penso simplesmente nela. Converso com ela: diretamente com minha mãe. Se há mesmo alguém por aí ouvindo, deve ser ela.

Espero que meus pensamentos a tenham alcançado. E que, de algum modo, eu possa receber o seu beijo de boa noite. E seguir meu caminho, trilhado não mais como filho, mas como pai. Que eu possa ser um bom pai.

De permeio, recebi muitas e muitas bênçãos, sendo elas as manifestações carinhosas de diversos amigos, que tornaram meu dia mais alegre. Por tantas coisas belas ditas, o meu agradecimento comovido. Não há como negar que sou privilegiado.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Diário de férias ― Viajar no Brasil

Quando decidimos visitar novamente a nossa querida cidade de Florianópolis, gastei algum tempo escolhendo o melhor voo, ou seja, aquele que durasse menos tempo e que tivesse no máximo uma conexão breve. Assim, escolhi o voo da Gol identificado como G3 6720, que partia de Belém às 6h com destino ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, onde deveria chegar às 9h35. Dali, pegaríamos o voo G3 6751, às 10h10, com chegada à capital catarinense às 11h13.

Decolamos em Belém com uma ligeira antecedência, tanto que às 6h estávamos contemplando nossa cidade das alturas. Partida suave, céu claro, tudo ótimo. Tudo daria certo se a grande quantidade de voos em Guarulhos não tivesse gerado uma fila de aeronaves para pousos e decolagens. Não conseguir dar adequada vazão à demanda é um velho problema do maior aeroporto do país, que se orgulha de suas obras e de ser novo todo dia.

Devido a esse problema, nosso pouso foi adiado em 15 minutos, depois mais 10, e mais um tanto, até que nos assustamos. Chamei a comissária de bordo e expliquei o nosso problema. Ela me garantiu que havia outros passageiros na mesma situação e que o problema já era conhecido, de modo que poderiam aguardar um pouco. Garantiu também que a equipe de solo nos ajudaria.


Conseguimos desembarcar às 9h45. Corri até um funcionário da Gol, que me encaminhou para o portão 202, previsto originalmente para a nossa conexão. Mas esse é outro problema de Guarulhos: os portões de embarque mudam o tempo inteiro e o nosso havia mudado para o 218. A distância entre eles é maior do que os números sugerem. Corremos e, quando conseguimos chegar, descobrimos que havia uns poucos passageiros na mesma situação nossa e nenhum deles poderia embarcar. Motivo: impossibilidade de migrar a bagagem.


Fomos orientados a recolher nossa bagagem na esteira, o que nos obrigou a fazer todo o trajeto de volta, eventualmente errando o caminho, o que seria minorado se realmente houvesse algum funcionário da companhia nos auxiliando. Mas a bagagem não aparecia. Acionei um funcionário e ele descobriu que os volumes estavam por ali pelo pátio. Conseguimos recuperar tudo. Aí descobrimos que havíamos sido remanejados para um voo às 16h30. Teríamos que esperar 5 horas. Queixei-me e mencionei que estávamos com uma criança. O funcionário então me disse ― destacando que era em off e que poderia sofrer algum prejuízo se soubessem que ele havia comentado ― que havia um voo às 14h50.


Dali fomos a um tal de check in 36, onde uma jovem conversadora e lenta pelo menos acolheu nossa reivindicação e nos acomodou no voo das 14h50. Detalhe: lado a lado. Ou seja, havia uma fileira inteira livre. Ora, diabos, então por que não nos puseram desde logo nela? Por que em um voo que nos afetaria muito mais? Enfim, conseguimos o voo e recebemos o nosso voucher para almoço, tão minguadinho que nem usamos.


Após a espera, embarcamos. E aí sofremos novo atraso. Motivo: um fulano fez o check in mas não embarcou. Como ele não apareceu, a companhia decidiu retirar a mala dele do avião. Mas era necessário procurá-la no bagageiro. Que tal? Não quiseram atrasar um voo por alguns minutos, em favor de cerca de seis ou sete passageiros, por atraso provocado pelo sistema aéreo. Mas atrasaram outro voo, por causa de um único passageiro, que talvez tenha provocado o incômodo. 


Depois de tudo isso, chegamos ao nosso destino, mais cansados e estressados do que o necessário, mas chegamos. As férias começaram. Espero que agora venham as alegrias. 


Brasileiro sofre.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A vida do pobre

A diarista que nos ajuda aqui em casa tem andado preocupada. Sua nora, moça muito jovem e também sem grandes níveis de instrução, estava em fase final de gestação. Na semana passada, começou a se sentir mal, com alguns sinais sugestivos de que a criança talvez estivesse pedindo para nascer, como diz a gente simples que conheci ao longo da vida. Mas como já havia uma cesariana marcada (claro!) para a última segunda-feira, dia 9, a médica que a atendeu em hospital público seguiu o protocolo clandestino (atendimento de pobre regra n. 1) e decidiu que o quadro era normal, provavelmente consequência de o bebê estar se reposicionando no útero. Disse isso no primeiro atendimento e, de novo, à noite, quando a gestante retornou após uma piora.

Ao ser informado, recomendei que a família tentasse um contato direto com o médico que fez o pré-natal e pedisse providências. Até onde sei, não conseguiram falar com ele (atendimento de pobre regra n. 2). A moça passou todo o final de semana se sentindo mal e, na manhã de segunda-feira, como agendado, foi ao hospital para o parto. Lá, foi surpreendida com a notícia de que seria internada, mas o parto somente seria feito à tarde. Na verdade, o médico tinha 20 partos para fazer e iniciaria o que chamo de linha de produção às 14 horas (atendimento de pobre regra n. 3). Ela deveria esperar. E esperou.

Em algum momento da tarde de segunda, o parto foi feito. A criança nasceu cianótica e pouco responsiva. Mamou uma única vez e passou toda a noite quieta, emitindo um gemido baixo. Com a troca de plantão, apareceu por lá um auxiliar de enfermagem que prestou atenção ao bebê e constatou que ele não estava bem (atendimento de pobre regra n. 4, também conhecida como "cláusula da sorte"). Acionou a enfermeira e o bebê foi levado para a UTI, ou seja, o quadro era grave! E aqui identificamos mais um lance de sorte: havia UTI neonatal, disponível.

Eis que, então, a família descobre que o parto não fora realizado pelo médico que acompanhava a gestação, mas pelo irmão dele. Juro que, nessa hora, perguntei: "Mas o irmão dele pelo menos era médico?" Parece que era. E aí temos atendimento de pobre regra n. 4: ser atendido pelo profissional que conhece o seu caso e em quem você talvez confie é muita pretensão sua.

O médico que deveria estar à frente de tudo se interessou pelo caso, enfim, e prestou as primeiras informações à família. Disse que a criança passou do momento certo de nascer. Isso eu, como leigo porém não ignorante, havia considerado na sexta-feira passada, mas a médica que atendeu a paciente por duas vezes, não. O grave comprometimento pulmonar do bebê era consequência da aspiração de líquido amniótico (esta eu também acertaria). Agora está marcada uma reunião com a equipe médica, para discutir o caso. A família aguarda para saber se a criança ficará bem, se terá sequelas, etc. O pai já avisou: se acontecer algo, vai processar. De minha parte, afirmo que "algo" já aconteceu.

E assim passou mais uma semana na vida do pobre: enfrentando dramas perfeitamente evitáveis e não sabendo como será o futuro.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Mais coincidência que ironia

A imprensa noticiou (com a sua habitual falta de precisão e inclinação ao escândalo) e as redes sociais começaram a repercutir (com seu permanente menosprezo por contextos), como se fosse notícia do Sensacionalista: Suzane von Richthofen saiu da prisão por causa do dia das mães. Alguns sítios, ainda mais cínicos, falam que ela saiu para "comemorar o dia das mães". Como Suzane está condenada pelo homicídio do pai e da mãe, está feito o mote para a ironia.

Até compreendo a estranheza que a situação provoca, mas se olharmos pelo aspecto estritamente legal, veremos que não há motivo para o barulho.

Suzane está condenada a 39 anos de reclusão e se encontra presa desde 2002. Em outubro do ano passado, obteve progressão para o regime semiaberto e, com isso, passou a uma situação disciplinar mais flexível, até porque sempre foi considerada presa de ótimo comportamento carcerário. Entre os benefícios de que passou a gozar figura a saída temporária da prisão, sem vigilância direta, admissível todavia o uso de monitoramento eletrônico.

Nos termos da Lei de Execução Penal, a saída temporária se destina a favorecer, ao condenado, "visita à família", "frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução" e "participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social" (art. 122). Trata-se de importante medida relacionada à lógica de castigos e recompensas que instrui a execução penal, como forma de induzir o apenado a manter-se dócil ao programa punitivo estatal, vendido como programa ressocializador.

O art. 123 da LEP condiciona o deferimento do benefício, pelo juiz da execução, à oitiva da administração penitenciária e do Ministério Público, ao bom comportamento carcerário, ao cumprimento de uma fração da pena (um sexto para primários e um quarto para os reincidentes) e à "compatibilidade do benefício com os objetivos da pena".

Além disso, a autorização "será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano" e, salvo hipótese de frequência a estudos, o gozo de cada saída exige um intervalo mínimo de 45 dias (art. 124, caput e § 3º). O juiz também deve estabelecer as condições a serem observadas pelo beneficiário no período, além de fixar a data para reapresentação espontânea.

É da tradição brasileira conceder a saída temporária em datas comemorativas, pois isso permitiria que o apenado estivesse com a família em momentos especiais, de maior congraçamento familiar ou comunitário. É o caso do dia das mães. Portanto, Suzane não saiu da prisão para comemorar o dia das mães, e sim porque o juízo da execução facultou a ela o gozo do benefício nesse momento. Se eu estivesse preso, agarraria qualquer chance de liberdade, mesmo que o juiz me liberasse para ver a final do campeonato de futebol. Talvez eu até visse a porcaria do jogo, de tão satisfeito.

Desde que progrediu para o regime semiaberto, Suzane já gozou da saída temporária uma vez, na páscoa. Saiu e voltou um dia antes do prazo. A imprensa noticiou o assunto, mas sem piadinhas. Até podia fazê-lo, já que páscoa representa renascimento. Agora, faz estardalhaço. Aguardem a repetição da bobagem no dia dos pais. Mas, no final das contas, a questão é bem menos instigante quando olhada pelas lentes da legalidade estrita. Saiu no dia das mães, mas podia ser em qualquer outro momento. 

O que há na notícia para nos impressionar? Pois é: nada.