Um homem foi condenado por crimes de estupro, sendo um de vulnerável, tendo como vítimas seus três enteados, duas garotas e um menino, à época dos fatos com 12, 17 e 15 anos, respectivamente. A sentença condenatória reconheceu a figura do crime continuado. Mas a fundamentação incorreu em diversos erros. Vou-me concentrar estritamente no que tange ao estupro de vulnerável, transcrevendo literalmente os trechos da sentença, seguidos de comentários.
“Em
atenção ao que dispõe o art. 59 do Código Penal, passa-se à dosimetria da
pena. Não se vislumbra, em relação ao denunciado, qualquer excludente de
culpabilidade, por ser ele imputável, ter, certamente, consciência da
ilicitude do fato e ser-lhe, no caso em tela, exigida conduta diversa, vez
que não agiu sob coação irresistível ou em obediência hierárquica. Culpabilidade
exacerbada, portanto.”
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O
juiz incorre no erro habitual de analisar a circunstância judicial culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime
e não como elemento mensurador da pena.
Para ele, a culpabilidade é “exacerbada” simplesmente porque não concorre ao
caso nenhuma dirimente, as quais tenta descrever “didaticamente”. Se aplicarmos
este raciocínio, só teríamos duas hipóteses: ou a conduta é dirimida, devendo
resultar em absolvição, ou não existe dirimente e a circunstância judicial deve
ser automaticamente desvalorada, justificando aumento da pena-base. Então não
existem crimes com culpabilidade comum? O raciocínio, obviamente, está
errado. Não bastasse isso, o procedimento implica em bis in idem, pois aumenta a pena sob os mesmos argumentos que
levaram à condenação.
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“O
acusado é primário.”
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Outro
erro primário e frequente: confundir antecedentes
criminais com reincidência. Se o réu não registra condenações penais definitivas,
o juiz deve dizer que ele não possui antecedentes.
Ser primário é aspecto que diz respeito à segunda etapa do cálculo.
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“Não
há elementos sobre a conduta social do acusado. Não há elementos sobre a
personalidade do acusado.”
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Agiu
bem o juiz ao se isentar de especulações e arroubos de moralidade, deixando
de se pronunciar sobre a conduta
social e a personalidade. Sem
informações nos autos, não há que inventar nada. Isto, claro, abstraindo a
questão muito mais relevante de serem estes quesitos expressões do direito
penal de autor.
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“Os
motivos do crime são naturais do tipo.”
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Acertou
novamente o juiz, pois não havia nos autos, considerando tão somente os
termos na sentença, informações sobre motivos
que extrapolassem a óbvia intenção de satisfação sexual.
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“As
circunstâncias da prática do crime são graves, já que a vítima veio a
engravidar em decorrência do fato.”
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Eventual
gravidez é uma consequência do crime, não uma circunstância ligada à sua execução. Portanto, fosse o caso de
ponderá-la nesta fase, deveria ser no quesito seguinte, não neste. Houve um
erro formal, cuja consequência seria um aumento da pena-base realmente
justificável, apenas com fundamento diverso.
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“As
consequências do delito são naturais ao tipo.”
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A
gravidez da vítima é prevista como majorante (CP, art. 234-A). Mas existe uma
segunda majorante: crime cometido contra enteada (art. 226, II). Havendo duas
majorantes da Parte Especial, aplica-se o art. 68, parágrafo único: deve ser
feito apenas um aumento, pelo maior valor. No caso, ambas têm o mesmo valor
(metade), então qualquer uma delas pode ser empregada na terceira etapa. O resultado
gravidez não é previsto como agravante, mas o art. 61 alude a crime cometido “com
abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei
específica”. Assim, o juiz deveria ter majorado a pena com base na gravidez e
usado a relação entre autor e vítima como agravante. Nesta hipótese, não
restaria nada a desvalorar como consequência
do crime. No caso, ele usou a relação entre os envolvidos como majorante, por
isso a gravidez poderia ser usada como circunstância judicial negativa.
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“O
comportamento da vítima em nada influiu para a consumação do delito.”
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Conclusão
correta, sobretudo em se tratando de menina de 12 anos, que nitidamente
sofreu um abuso.
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“As
circunstâncias judiciais são moderadas.”
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O
juiz negativou os quesitos culpabilidade, circunstâncias e comportamento da
vítima. Como visto, não foi apresentada justificativa plausível para a
culpabilidade, então não poderia ser desvalorada. Em vez de circunstâncias, o
correto seria desvalorar as consequências do crime. Quanto ao comportamento
da vítima, análise correta. Restariam duas circunstâncias judiciais negativas.
Ou três, se aparecesse um motivo concreto para repudiar a culpabilidade.
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“Portanto,
fixo a pena-base em 12 (doze) anos de reclusão.”
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Para
o tipo de estupro de vulnerável, a pena foi cominada em 8 a 15 anos de
reclusão. O juiz fixou a pena-base acima do grau médio, que seria de 11 anos
e 6 meses. Embora não se possa afirmar categoricamente que o valor esteja errado, é fora de dúvida que o juiz
foi muito rigoroso, mormente se houver apenas duas circunstâncias judiciais
desfavoráveis. Aparentemente, a pena destoa da fundamentação. Não deveria ser
necessário mas, por cautela, lembro que esta é uma análise estritamente
técnica, que não passa pelo merecimento ético da punição.
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“Não
existem atenuantes ou agravantes genéricas a serem consideradas.”
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No
contexto, não existem, de fato. Tivesse o juiz procedido como sugeri, em
relação às majorantes, haveria uma agravante subjetiva.
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“Presente
a causa de aumento da pena prevista no art. 71 do Código Penal — continuidade
delitiva —, pelo que aumento a pena em 1/6 (um sexto), passando a 14
(quatorze) anos de reclusão.”
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Concorrem
ao caso duas majorantes, sendo uma da Parte Especial e esta, da Parte Geral. Esta
deveria ser calculada por último, ainda mais porque diz respeito a concurso
de crimes. O procedimento está errado. A par disso, o art. 71 determina um
aumento de pena de 1/6 a 2/3. Estranhamente, o juiz, antes tão rigoroso,
agora aumentou a pena no importe mínimo, sem qualquer explicação. Mas isto
não constitui erro, apenas uma aparente falta de critério ou a habitual mania
de aplicar os extremos, embora a lei permita qualquer valor, dentro do
intervalo.
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“Presente
a causa de aumento da pena prevista no art. 226, inc. II do Código Penal,
pelo que aumento a pena pela 1/2 (metade), passando a 21 (vinte e um) anos de
reclusão, a qual torno definitiva por não haver outras causas de aumento ou
diminuição a serem consideradas.” (sic)
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O
cálculo das duas majorantes está correto, mas a ordem de aplicação está
errada. O que o juiz fez foi isto:
12 anos + 1/6 (2 anos) = 14 anos + 1/2 (7
anos) = 21 anos
Adotando
os mesmos valores da sentença, o que deveria ter feito:
12 anos + 1/2 (6 anos) = 18 anos + 1/6 (3
anos) = 21 anos
Havendo
apenas duas majorantes, não houve alteração do resultado. Teríamos, aqui,
apenas uma correção formal do procedimento. Mas se houvesse outra causa a
ponderar, de aumento ou de diminuição, o valor final seria afetado,
beneficiando ou prejudicando o réu indevidamente.
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Espero que esta abordagem ajude os aprendizes.
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