quinta-feira, 8 de maio de 2014

Analisando a dosimetria

O caso é real e por isso mesmo deixo de indicar o órgão jurisdicional sentenciante, o local e a época de sua ocorrência, bastando que se diga ter sido já na vigência da Lei n. 12.015, de 2009. Atenho-me estritamente aos fatos. É que estou, neste momento, ministrando aulas sobre dosimetria da pena para minhas turmas, então julguei oportuno analisar alguns casos verídicos. A sentença em apreço me pareceu interessante, por servir de exemplo para um aspecto que analisei nas aulas de ontem.

Um homem foi condenado por crimes de estupro, sendo um de vulnerável, tendo como vítimas seus três enteados, duas garotas e um menino, à época dos fatos com 12, 17 e 15 anos, respectivamente. A sentença condenatória reconheceu a figura do crime continuado. Mas a fundamentação incorreu em diversos erros. Vou-me concentrar estritamente no que tange ao estupro de vulnerável, transcrevendo literalmente os trechos da sentença, seguidos de comentários.

“Em atenção ao que dispõe o art. 59 do Código Penal, passa-se à dosimetria da pena. Não se vislumbra, em relação ao denunciado, qualquer excludente de culpabilidade, por ser ele imputável, ter, certamente, consciência da ilicitude do fato e ser-lhe, no caso em tela, exigida conduta diversa, vez que não agiu sob coação irresistível ou em obediência hierárquica. Culpabilidade exacerbada, portanto.”
O juiz incorre no erro habitual de analisar a circunstância judicial culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime e não como elemento mensurador da pena. Para ele, a culpabilidade é “exacerbada” simplesmente porque não concorre ao caso nenhuma dirimente, as quais tenta descrever “didaticamente”. Se aplicarmos este raciocínio, só teríamos duas hipóteses: ou a conduta é dirimida, devendo resultar em absolvição, ou não existe dirimente e a circunstância judicial deve ser automaticamente desvalorada, justificando aumento da pena-base. Então não existem crimes com culpabilidade comum? O raciocínio, obviamente, está errado. Não bastasse isso, o procedimento implica em bis in idem, pois aumenta a pena sob os mesmos argumentos que levaram à condenação.
“O acusado é primário.”
Outro erro primário e frequente: confundir antecedentes criminais com reincidência. Se o réu não registra condenações penais definitivas, o juiz deve dizer que ele não possui antecedentes. Ser primário é aspecto que diz respeito à segunda etapa do cálculo.
“Não há elementos sobre a conduta social do acusado. Não há elementos sobre a personalidade do acusado.”
Agiu bem o juiz ao se isentar de especulações e arroubos de moralidade, deixando de se pronunciar sobre a conduta social e a personalidade. Sem informações nos autos, não há que inventar nada. Isto, claro, abstraindo a questão muito mais relevante de serem estes quesitos expressões do direito penal de autor.
“Os motivos do crime são naturais do tipo.”
Acertou novamente o juiz, pois não havia nos autos, considerando tão somente os termos na sentença, informações sobre motivos que extrapolassem a óbvia intenção de satisfação sexual.
“As circunstâncias da prática do crime são graves, já que a vítima veio a engravidar em decorrência do fato.”
Eventual gravidez é uma consequência do crime, não uma circunstância ligada à sua execução. Portanto, fosse o caso de ponderá-la nesta fase, deveria ser no quesito seguinte, não neste. Houve um erro formal, cuja consequência seria um aumento da pena-base realmente justificável, apenas com fundamento diverso.
“As consequências do delito são naturais ao tipo.”
A gravidez da vítima é prevista como majorante (CP, art. 234-A). Mas existe uma segunda majorante: crime cometido contra enteada (art. 226, II). Havendo duas majorantes da Parte Especial, aplica-se o art. 68, parágrafo único: deve ser feito apenas um aumento, pelo maior valor. No caso, ambas têm o mesmo valor (metade), então qualquer uma delas pode ser empregada na terceira etapa. O resultado gravidez não é previsto como agravante, mas o art. 61 alude a crime cometido “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica”. Assim, o juiz deveria ter majorado a pena com base na gravidez e usado a relação entre autor e vítima como agravante. Nesta hipótese, não restaria nada a desvalorar como consequência do crime. No caso, ele usou a relação entre os envolvidos como majorante, por isso a gravidez poderia ser usada como circunstância judicial negativa.
“O comportamento da vítima em nada influiu para a consumação do delito.”
Conclusão correta, sobretudo em se tratando de menina de 12 anos, que nitidamente sofreu um abuso.
“As circunstâncias judiciais são moderadas.”
O juiz negativou os quesitos culpabilidade, circunstâncias e comportamento da vítima. Como visto, não foi apresentada justificativa plausível para a culpabilidade, então não poderia ser desvalorada. Em vez de circunstâncias, o correto seria desvalorar as consequências do crime. Quanto ao comportamento da vítima, análise correta. Restariam duas circunstâncias judiciais negativas. Ou três, se aparecesse um motivo concreto para repudiar a culpabilidade.
“Portanto, fixo a pena-base em 12 (doze) anos de reclusão.”
Para o tipo de estupro de vulnerável, a pena foi cominada em 8 a 15 anos de reclusão. O juiz fixou a pena-base acima do grau médio, que seria de 11 anos e 6 meses. Embora não se possa afirmar categoricamente que o valor esteja errado, é fora de dúvida que o juiz foi muito rigoroso, mormente se houver apenas duas circunstâncias judiciais desfavoráveis. Aparentemente, a pena destoa da fundamentação. Não deveria ser necessário mas, por cautela, lembro que esta é uma análise estritamente técnica, que não passa pelo merecimento ético da punição.
“Não existem atenuantes ou agravantes genéricas a serem consideradas.”
No contexto, não existem, de fato. Tivesse o juiz procedido como sugeri, em relação às majorantes, haveria uma agravante subjetiva.
“Presente a causa de aumento da pena prevista no art. 71 do Código Penal — continuidade delitiva —, pelo que aumento a pena em 1/6 (um sexto), passando a 14 (quatorze) anos de reclusão.”
Concorrem ao caso duas majorantes, sendo uma da Parte Especial e esta, da Parte Geral. Esta deveria ser calculada por último, ainda mais porque diz respeito a concurso de crimes. O procedimento está errado. A par disso, o art. 71 determina um aumento de pena de 1/6 a 2/3. Estranhamente, o juiz, antes tão rigoroso, agora aumentou a pena no importe mínimo, sem qualquer explicação. Mas isto não constitui erro, apenas uma aparente falta de critério ou a habitual mania de aplicar os extremos, embora a lei permita qualquer valor, dentro do intervalo.
“Presente a causa de aumento da pena prevista no art. 226, inc. II do Código Penal, pelo que aumento a pena pela 1/2 (metade), passando a 21 (vinte e um) anos de reclusão, a qual torno definitiva por não haver outras causas de aumento ou diminuição a serem consideradas.” (sic)
O cálculo das duas majorantes está correto, mas a ordem de aplicação está errada. O que o juiz fez foi isto:

12 anos + 1/6 (2 anos) = 14 anos + 1/2 (7 anos) = 21 anos

Adotando os mesmos valores da sentença, o que deveria ter feito:

12 anos + 1/2 (6 anos) = 18 anos + 1/6 (3 anos) = 21 anos

Havendo apenas duas majorantes, não houve alteração do resultado. Teríamos, aqui, apenas uma correção formal do procedimento. Mas se houvesse outra causa a ponderar, de aumento ou de diminuição, o valor final seria afetado, beneficiando ou prejudicando o réu indevidamente.

Espero que esta abordagem ajude os aprendizes.

Nenhum comentário: