domingo, 6 de setembro de 2015

Minha oferta final

Belém, 6 de setembro de 2015

Deus
(em outras épocas, eu endereçaria a "querido Deus", mas já faz tempo que perdeste o merecimento para o adjetivo e para as letras maiúsculas também)

Como provavelmente sabes  já que, reza a lenda, tu sabes tudo , a semana que passou foi terrível. A inexorável progressão da doença de minha mãe tem feito com o que ela se sinta permanentemente mal, além de não conseguir dormir noite nenhuma. À medida que minguam suas forças físicas, seu espírito que um dia julguei inquebrantável também desmorona, um processo nada agradável de se ver.

Hoje, mais uma vez, ela não conseguiu almoçar. Pouco depois, pediu um mingau, que tem sido quase a base de sua dieta. Hoje foi mingau de aveia. Eu gosto. O cheiro bom me fez lembrar que faz incontáveis anos que não tomo. E me abriu, também, a lembrança para eventos de muitos anos atrás.

Talvez te lembres que fui uma criança triste. Volta e meia, surgiam-me umas febres psicossomáticas e, quando doente, às vezes eu ganhava um mingau noturno. Anos mais tarde, eu já era um jovem adulto e, mesmo assim, se adoecia, fazia beicinho e pedia um mingau, que minha mãe me dava na boca. Sim, era uma piada interna, um jogo familiar de carinho: mamãe dando mingauzinho na boquinha do filhinho adulto, ambos falando com voz de criança. Nós ríamos daquilo.

Hoje, eu me peguei dando mingau na boca de minha mãe. Mas não era uma brincadeira. Ela está fraca demais até para se alimentar. Quando suspendi a colher, a lembrança eclodiu em minha mente e não consegui conter-me. Faço muito esforço para não chorar na frente dela, mas hoje simplesmente não consegui, até porque a minha alma também está quebrantada demais. O acumulado da semana não foi nada fácil. Então as lágrimas começaram a rolar, enquanto eu tentava garantir, ao menos, que não houvesse soluços.

Daí o que aconteceu? Minha mãe voltou a ser ela: afastou-se de seus problemas e começou a me consolar. Ela estava me consolando! Tocou em mim, fazendo um carinho, e pediu para eu não chorar, para ser forte porque tenho uma filha para cuidar. Pediu-me para continuar cuidando da família e disse que tinha fé... Nesse momento, ela parou. Em seguida, disse que tinha fé em seu restabelecimento; que esta é apenas uma fase da doença. Mas essa minha mania de psicólogo de araque me leva a especular sobre o momento exato em que ela engatou. Será que ela realmente ainda tem fé ou já terá percebido as tuas artimanhas?

Tomou o quanto conseguiu do mingau e depois um pouquinho de água. E a cada movimento que fazia, eu tentava não explodir em choro. Consegui isso até chegar na sala. Ali desabei, perdendo o fôlego, de um jeito sem dúvida menos grave do que a falta de ar que a acomete, diária e progressivamente. Mas me faltava o ar, assim como me faltava o chão. Felizmente, ainda me restavam braços para mostrar que, ao menos, não estou só. Meu irmão, minha esposa e minha filha foram até mim, suportar o meu peso.

Se a tua memória é mesmo boa, deves recordar todos os pedidos que te fiz desde os fins de 2013 e como abri mão de cada um deles. Contudo, existe um do qual não posso abdicar de modo algum. É impossível, porque deve haver algum limite para a crueldade. E isto me leva à razão desta carta. Hesitei, como imagino que qualquer um hesitaria numa situação dessas, mas o fato é que vim propor um novo acordo.

Eis minha proposta: ofereço um ano de minha vida em troca de um ano da vida de minha mãe. Não ousarei ir além do bom senso; um ano me parece razoável. Tu nos concedes esse ano e podes levar o tempo correspondente de minha vida, embora eu mesmo admita que não seja lá mercadoria assim tão especial. Dada a existência de Júlia, no entanto, penso que vale o suficiente para negociar. Além disso, nada mais tenho para oferecer.

Mas tem que ser um ano nos meus termos; não nos teus. Tem que ser um ano sem dor, náusea, fraqueza, tontura, inapetência, acessos de tosse, cólica, constipação intestinal e esses outros sintomas que se acumulam sem trégua. Um ano sem internações nem sustos. Um ano de consciência da doença, de cuidados diários, sim, mas também de dignidade. Um ano sem terror. E com noites completas de sono. Daí podes fechar o teu ciclo, cumprindo os tais desígnios que só tu compreendes e teus asseclas vivem dizendo que devemos aceitar, embora eu duvide que eles mesmos saibam o por quê.

Esta é a minha oferta derradeira e, dado o acúmulo dos teus débitos conosco, acho que posso usar da tua própria técnica e me fechar a flexibilizações. A oferta é essa e não abro mão de mais nada. É pegar ou largar. Até porque nada te obriga a aceitar, nem eu posso fazer absolutamente nada em caso de recusa. Na verdade, vim aqui falar contigo como o homem agarrado à beira do precipício fala para o vazio que está prestes a tragá-lo. Tecnicamente, não é um acordo, mas um protesto. Um brado de indignação. Tu aceitas se quiseres, como um gesto de boa vontade. Para tentares convencer acerca dessa tua tão decantada misericórdia infinita.

Não precisas responder para mim. Só precisas fazer minha mãe abrir os olhos de volta em sua cama, mas agora sem qualquer pesadelo. Mesmo que doente, mesmo que essa doença seja a sua ponte para o fim desta existência, mas que possa completar a sua trajetória em paz.

É isso. Nada mais.


Y

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro amigo Yúdice
Permaneço tão somente na esfera terrena, e sei que o momento pelo qual passas é quase que indescritível. Quem já o viveu, como eu, o sabe. As mazelas passadas por aqueles que amamos se amplificam em nós, nem sempre prontos ou preparados à absorvê-las, a conviver com elas e a enfrenta-las. Por mais letrados que sejamos(soa pedante, não?), por mais filosóficos que sejamos, nunca estamos preparados para aquele momento de dar a moeda a Caronte, esteja ele próximo ou distante.
Assim, com resposta ou sem resposta do teu deus, com aceitação ou não ao teu pedido, tenha a certeza de que a tua mãe sente e sabe de todo o teu carinho, te todo o amor que lhe é dedicado, o de agora e o do passado.
A racionalidade é amiga querida nesses momentos. Que você consiga superar tuas dores e angústias, e , ao lado das dores próximas, vislumbrar a parte melhor, o filé, o doce gostoso, que são aqueles momentos alegres, bons, de convivência com a tua mãe. Isto é o mais importante. Esqueça aquelas chineladas e esculhambações que ela certamente te dava. Foram benéficas, não?
As boas lembranças embalarão teus sonhos. Sempre.
Abração do amigo
Kenneth

Anônimo disse...

:(

(torcendo para que a proposta seja aceita)