Há menos de um mês, circulou pela internet uma foto (à esquerda) tirada por uma adolescente, na qual se podia ver o premiê britânico, David Cameron, viajando na classe econômica de um voo da companhia de baixo custo Easyjet. A menina fez um vídeo e um registro fotográfico, no qual o homem que comanda a Inglaterra desde 2010 aparece comendo batatinhas Pringles. Gente como a gente.
Outro assunto que volta e meia aparece nas redes sociais é a austeridade dos governantes e parlamentares da Suécia. Veja-se o começo de uma reportagem sobre o tema: "Os vereadores e deputados regionais (estaduais) não recebem salários, nem possuem carros com motoristas e devem usar os seus próprios celulares. Mais: eles não têm secretárias particulares e muito menos uma multidão de assessores parlamentares. O prefeito da Capital anda de ônibus. Primeiro-ministro? Esse circula de metrô ou de bicicleta. Ah, os deputados federais? Moram em apartamentos funcionais de 16 metros a 46 metros quadrados, lavam e passam as suas próprias roupas."
A matéria segue afirmando que os políticos suecos ganham pouco, preparam a própria comida e são tratados por "você". Nada de excelentíssimos. E por que isso acontece? Quem decidiu isso? Provavelmente, ninguém decidiu isso, simplesmente porque é inerente à cultura daquele povo a compreensão de igualdade. Assim, para eles é natural que um titular de função pública, por mais importante que seja, não goze de privilégios.
Em vários países do dito primeiro mundo, carro oficial é uma prerrogativa de presidente da República ou do parlamento. Na Noruega, Holanda e na já citada Inglaterra, outros expoentes políticos andam mesmo de bicicleta ou usam o transporte público ― o que faz bastante sentido, pois nesses países existem ótimas ciclovias, que todos respeitam, e o transporte público é excelente. Em Londres, ao tomar posse, todo político recebe vale-transporte, que pode usar em ônibus, trem e metrô, além de ser avisado de que possui o compromisso de utilizar o transporte público.
Não faz muito tempo, li em algum lugar uma reportagem sobre o estarrecimento de políticos estrangeiros acerca dos privilégios concedidos aos seus congêneres brasileiros. Infelizmente, não consegui encontrar a matéria.
Enquanto isso, no Brasil, experimente não chamar de "doutor" para um bacharel que ocupe uma função judicial ou ministerial para ver o que acontece. Não chamar um parlamentar de "excelência" é quebra de decoro (embora falsear prestações de contas não seja). E tudo, absolutamente tudo, é motivo para conceder um penduricalho sobre a remuneração. Começa pela roupa, o tal do auxílio-paletó. Pago no Congresso Nacional e em 16 Estados brasileiros, segundo o Congresso em Foco, ele custou ao contribuinte 252 milhões de reais em apenas quatro anos, o tempo de um mandato.
Outra patifaria notória é a verba de gabinete. Novamente o Congresso em Foco aponta que um parlamentar federal estava nos custando quase 150 mil reais por mês. Isso graças a contas inacreditáveis. Consulte no link abaixo, para ficar em apenas um exemplo, a quantidade de impressões, fotocópias e material de expediente que um parlamentar pode consumir por mês. A papelaria do shopping perde fácil.
Mas soltar os cachorros sobre os políticos é trivial. Todo mundo faz isso e eles dão todos os motivos. Existem, contudo, instituições compostas por pessoas que não dependem de voto e, por isso, escapam ao controle social periódico. Silenciosamente, esses servidores públicos desviam de qualquer padrão de moralidade pública e se investem em prerrogativas verdadeiramente nobiliárquicas, que no entanto, curiosamente, são implementadas em plena república, especialmente quando acobertados pela autonomia financeira. Eles têm carro oficial com motorista, ajudantes de ordens, celulares de última geração, notebooks, refeição no serviço e, mais recentemente, auxílio-moradia mensal, mesmo morando na mesma cidade em que trabalham. Tudo sob as bênçãos de quem deveria zelar pela moralidade com a coisa pública.
Posso parar por aqui, pois acho que você já entendeu. Se cavarmos mais, acabaremos enlouquecendo ante a constatação do que sabemos, mas que abstraímos durante a maior parte do tempo. Por toda a parte, as pessoas se locupletam dolosamente e isso é considerado liturgia do cargo, uma imposição da qual você não deve furtar-se, mesmo que queira, pois assim impõem misteriosos cânones de respeitabilidade, que ninguém sabe de onde saíram. Outro argumento de superlativa indecência é o célebre "pode ser imoral, mas não é ilegal". Engraçado: no mundo em que eu vivo desde as primeiras aulas de direito administrativo, em se tratando de Administração Pública, se é imoral, é ipso facto ilegal.
E por que, afinal, isto acontece no Brasil? Aceite: o problema não são os políticos, os executivos, os legislativos, os judiciários e outros que tais. O problema é você, que deixa isso acontecer todo santo dia e, lá no fundo do seu coração, acalenta o desejo de fazer o mesmo. Somos nós. Somos um povo construído sobre a desigualdade, a exploração massiva, a predação de recursos naturais, o genocídio dos indígenas, a desumanização dos vulneráveis, a subserviência ao estrangeiro, a aversão ao trabalho e uma crescente inclinação ao hedonismo e ao individualismo. Já recomendei antes e volto a recomendar que estude a obra do sociólogo Jessé Souza, que em livros como A construção social da subcidadania e A ralé brasileira: quem é e como vive explica sobre a nossa formação enquanto povo, desvelando uma fantástica convicção de que a desigualdade deve ser cultivada, porque todo mundo tem o seu lugar e o meu, provavelmente, é acima de você.
Isto pode explicar muita coisa, desde as tachinhas que furam os pneus das bicicletas nas novas ciclovias da capital paulista até a perplexidade dos alemães, ao assistirem à exibição do filme brasileiro Que horas ela volta?, por sinal muito bem recebido pela crítica. Os europeus não conseguem acreditar que pessoas comuns, de classe média, são servidos por criados nas mínimas coisas. Para eles, que lavam as próprias cuecas e calcinhas, isso é impensável. Para nós, é tão rotineiro que até surpreende alguém se importar com isso.
Então volto à questão: que conclusão podemos tirar do fato de que idolatramos tanto a superioridade cultural e intelectual dos estadunidenses e europeus, mas não somos capazes de imitá-los quando cultivam a modéstia, a urbanidade, a igualdade e a solidariedade?
Fontes:
- O voo baratinho de Cameron: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/08/primeiro-ministro-britanico-e-visto-comendo-batatinhas-na-classe-economica.html
- A modéstia dos suecos: http://www.dm.com.br/geral/2015/07/sem-excelencias-nem-mordomias.html e https://www.youtube.com/watch?v=Toh3OJkI3fg
- A farra de carros oficiais na capital paulista: http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/node/47253
- O uso de transporte público em Londres: https://razoesparaacreditar.com/criar/politicos-de-londres-nao-tem-direito-a-carro-oficial-e-devem-utilizar-transporte-publico/
- A indumentária da realeza na república: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/manchetes-anteriores/auxilio-paleto-custa-r-252-milhoes-em-quatro-anos/
- Meu parlamentar todo mês: http://congressoemfoco.uol.com.br/upload/congresso/arquivo/CustoParlamentar.pdf
- Um puxadinho para chamar de meu: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/10/cnj-aprova-auxilio-moradia-de-r-43-mil-para-juizes.html
- Bicicleta é brega: http://noticias.band.uol.com.br/cafe-com-jornal/sp/video/15552867/ciclistas-encontram-tachinhas-em-ciclovias-de-sp.html
- A vassalagem nossa de todo dia: http://revistatpm.uol.com.br/blogs/berlimmandaavisar/2015/09/15/assistir-a-que-horas-ela-volta-na-europa-passar-vergonha-pelo-brasil.html
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