quarta-feira, 28 de março de 2012

O curioso crime sem criminoso

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503, de 1997), em sua redação original, previa como crime a ação de "conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem" (art. 306). O tipo penal foi considerado ruim, na medida em que exigia a comprovação de que o condutor ameaçava a integridade física e a vida de terceiros, mas interpretado a contrario sensu se percebia que o agente, mesmo embriagado, não incorreria em crime se dirigisse em aparente situação de respeito às normas de circulação. Ruim que fosse a tipicidade, ao menos se estava diante de um crime de perigo concreto, embora trouxesse dificuldades no que tange à prova da materialidade.

Aí veio a Lei n. 11.705, de 2008, tolamente chamada de "lei seca". Já expliquei aqui no blog que esta nomenclatura é estúpida porque a lei em apreço não proíbe ninguém de consumir álcool, e sim de conduzir veículos automotores após esse consumo. Por isso, sempre me referi a ela como "lei da alcoolemia zero". Pensando que fazia grande coisa, o legislador modificou a redação do tipo para isto: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". A pena foi mantida em 6 meses a 3 anos de detenção, cumulada com multa e suspensão da habilitação ou proibição de obtê-la.

A nova redação não foi tão inteligente quanto se pensava. De um lado, não eliminou a imprecisão da prova de incapacidade do condutor, quando sob o efeito de outras substâncias psicoativas que determinem dependência. De outro, ao fixar um padrão mínimo de álcool na corrente sanguínea, introduziu uma exigência que, como qualquer neófito em Direito Penal sabe, precisaria ser atendida: demonstrar-se a efetiva concentração de álcool no sangue do suspeito, no momento da conduta. Afinal, caso estivesse com 5,5 decigramas da substância, incorreria numa infração administrativa (arts. 165 e 276), mas não em crime.

Cresceu, assim, a importância da dosagem de alcoolemia, que pode ser feita através de equipamentos específicos (os etilômetros, mais conhecidos como bafômetros) ou através de exame clínico. O legislador, nem tão alesado assim, percebeu ao menos isso e tentou uma saída pela tangente: inseriu, no art. 277, duas previsões matreiras:  "A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor" (§ 2º) e "Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo" (§ 3º).

Valeu a tentativa, mas no meio do caminho havia um Poder Judiciário e uma regra constitucional segundo a qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, o famoso princípio nemo tenetur se detegere. Os advogados criminalistas foram rápidos em, muito pundonorosamente, demonstrar a inconstitucionalidade das novas regras do código e em recomendar aos condutores flagrados que se recusem a se submeter ao teste de alcoolemia por qualquer de suas formas.

E assim chegamos a 2012 com um impasse longe de solução. De um lado, o Supremo Tribunal Federal ratifica que o crime do art. 306 do CTB é de perigo abstrato, ou seja, existe crime mesmo sem a demonstração de que, no momento da conduta, o agente expunha a segurança de terceiros a algum perigo(1). De outro, o Superior Tribunal de Justiça insiste que a comprovação da materialidade delitiva exige confirmação por meio de teste clínico ou de etilômetro, não se admitindo outro meio de prova(2). Simplificando um pouco o juridiquês: existe o crime, mas na esmagadora maioria dos casos simplesmente não teremos como prová-lo, já que, na prática, tudo depende da colaboração do próprio suspeito.

A aplicação do princípio constitucional conduz a situações ainda mais delicadas. Suponha que o condutor estava tão absurdamente embriagado que mal compreenda o que lhe é dito. Assim, ele não se recusa a usar o bafômetro e suponha até que efetivamente use. Mas sua vontade estava comprometida pelo álcool e não se pode presumir que ele desejasse se incriminar. A defesa pode sustentar a ilicitude da prova.

Outra: suponha que o condutor embriagado se envolveu num acidente e se feriu. Atendido por paramédicos, foi possível colher uma amostra de sangue idônea para verificação da alcoolemia. A meu ver, trata-se de prova absolutamente perfeita. No entanto, meus caros colegas criminalistas discordam. Há quem afirme taxativamente que a prova somente seria válida se o indivíduo concordasse em ceder a amostra, ciente das implicações. Em suma, para onde se corra, é preciso que o delinquente queira ser punido. Do contrário, teremos uma nulidade. Tudo em nome da Constituição.

Sim, eu respeito a Constituição de 1988 e entendo a importância desses pruridos. Mas me pergunto até onde vamos na difícil equação de superestimar valores, por vezes abstratos, frente a necessidades concretas do cotidiano. Em outros países, a recusa ao teste de alcoolemia faz o condutor perder a habilitação na hora. Aqui, nem a medida administrativa pode ser imposta, por causa do contraditório e da ampla defesa.

Os leitores habituais do blog podem estranhar minhas palavras agora. Então esclareço, porque não quero ser nem parecer incoerente e muito menos estúpido quanto ao valor da Constituição. Sou contra o endurecimento das leis penais, como estratégia de combate à criminalidade. Mas sou a favor do endurecimento da legislação de trânsito, inclusive em seus aspectos criminais. E sempre uso este exemplo para mostrar o cinismo do brasileiro, que quer sanções absurdas e até a morte do ladrão, do homicida, etc. Porque não tem empatia com estes. Mas protesta com fúria incontrolável contra medidas moralizadoras do trânsito porque, afinal, qualquer um poderia ser atendido. É a eterna lógica de só pensar no próprio umbigo.
Aguardemos para saber quanto tempo mais levará até que esta celeuma se resolva.

(1) "HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas. II - Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente. III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime. IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal. V – Ordem denegada." (STF, 2ª Turma - HC 109269/MG - rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - j. 27/9/2011 - DJe-195 DIVULG 10-10-2011 PUBLIC 11-10-2011)

3 comentários:

Anônimo disse...

No decorrer de uma ação de reconhecimento de paternidade, a recusa por parte do pretenso pai, resulta uma presunção de verdade, sendo ele considerado o pai. Por que não pode haver isso nesse caso específico da embriaguez?
Me parece deveras injusto que o transgressor das regras fique impune, também não sou favorável à violação de garantias fundamentais, tampouco que se deixe a punição de um cidadão embasada tão somente na palavra de um policial ou outro agente público, mas assim como a negação em contribuir para a solução da questão da paternidade gera uma presunção de "culpa no cartório", que outra razão teria alguém para se negar a cumprir um teste que não provaria nada além de seu estrito cumprimento das regras?

Anônimo disse...

Apenas para complementar: deve se proteger alguém que está virtualmente pondo em risco a vida de qualquer transeunte e mesmo a de outros motoristas e passageiros?
Penso que a questão da segurança dos cidadão em vias públicas é tão importante quanto a questão da paternidade, quiçá mais, uma vez que envolve risco a todos os cidadãos que estejam no caminho de quem dirige sob o o efeito de álcool ou outras substância psicoativa que determine dependência.

Yúdice Andrade disse...

Caro anônimo, sem dúvida que não se pode comparar uma ação cível a uma penal, por razões essenciais. Mas entendo a sua preocupação e admito que o exemplo foi bem escolhido, porque as consequências de uma paternidade são gravíssimas, para toda a vida e depois dela, inclusive.
Seja como for, não há como aplicar os mesmos preceitos do processo civil a uma ação penal ou a uma investigação criminal. O meu ponto não é instituir uma presunção, o que não me agrada, mas conceber mecanismos eficientes de investigação - o que, sabidamente, sempre comprometerá as liberdades individuais.