quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Privilégio supostamente inconstitucional

Em uma sentença em ação penal por crime de tráfico de drogas, a juíza me surpreendeu com esta:

Consigno que a causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas é obviamente inconstitucional, pois previu um benefício indevido para o tráfico de entorpecentes e não o fez para outros delitos hediondos ou equiparados. Tal norma atentou contra mandado de criminalização prevista na nossa Constituição. Ainda que fosse constitucional, tal causa não seria de aplicação automática ou obrigatória. Seria facultativa e ao prudente critério do Juiz e entendo que o réu não faz jus a tal benesse, no presente caso.

Para prosseguirmos, necessário informar aos leigos que a norma atacada no excerto acima corresponde ao que se convencionou chamar de tráfico privilegiado, externado por uma norma deste teor:

Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integra organização criminosa.

Em direito penal, chamamos de privilégio a uma norma que tenha o poder de reduzir a gravidade de um delito. Mas essas previsões são aleatórias; podem existir ou não, a depender da discricionariedade do legislador. Elas existem, enfim, para alguns delitos tão somente, o tráfico de drogas incluso.
Que uma pessoa  pode ser um juiz  tenha raiva do privilégio do tráfico, porque é movida por intenso sentimento punitivista, eu entendo. Mas o problema é ela ter poder em mãos e utilizá-lo para dar vazão a suas miopias. Vejamos.
A magistrada assevera que a norma questionada é "obviamente inconstitucional". Devido a minhas duas atividades profissionais, estou acostumado a ver todo tipo de falácia e abuso argumentativo. Um deles consiste em inventar uma premissa de autoridade, que todos supostamente conheceriam. Eis um exemplo. Só tem um detalhe: os diversos autores que se dedicam a escrever sobre a Lei de Drogas não costumam apontar a tal inconstitucionalidade. Juízes e tribunais têm aplicado essa norma rotineiramente, de modo que a praxe forense e a jurisprudência também não parecem tão convencidas assim de que seja inconstitucional.
Arrisco-me a pensar que, se houvesse mesmo a tal inconstitucionalidade e ela fosse tão óbvia, alguém já teria proposto uma ação perante o Supremo Tribunal Federal para obter essa declaração. Que me conste, isso não ocorreu.
Falácia n. 1 derrubada.
O argumento invocado pela juíza para justificar a óbvia inconstitucionalidade é que não existe privilégio semelhante para outros delitos hediondos ou equiparados. Ela inventou uma espécie de controle de constitucionalidade por comparação! Se delitos semelhantes não podem ser minorados, então este também não pode. Criativo, não?
Se entendi direito o estranhíssimo raciocínio, o privilégio do tráfico só seria admissível se os demais tipos hediondos ou equiparados possuíssem benefício semelhante. Então pensemos: são crimes hediondos genocídio, o homicídio qualificado ou o praticado por grupos de extermínio, o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante sequestro simples ou qualificada, o estupro, o estupro de vulnerável, a epidemia com resultado morte e a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto terapêutico ou medicinal. São tipos equiparados, além do tráfico de drogas, a tortura e o terrorismo (este, ainda sem tipificação).
Seria sensato ou mesmo materialmente possível instituir privilégios para esses crimes? Como seria isso? O cara cometeu um homicídio qualificado, mas foi só um pouquinho qualificado, ou talvez a vítima tenha morrido só um pouquinho. Dá para ser? Nas hipóteses de extorsão e epidemia, em que a hediondez também deriva da morte, a situação seria análoga.
Numa tortura, talvez o privilégio fosse cabível se a cabeça da vítima fosse mergulhada apenas duas ou três vezes na privada. Se fossem mais vezes ou se a privada estivesse suja, o benefício seria afastado! E quantos choques elétricos poderiam ser aplicados e em que local do corpo? Perguntemos a opinião da presidente Dilma Rousseff.
Grotesco e grosseiro seria cogitar do privilégio em estupro. Teríamos que baixar o nível de verdade. Estupro privilegiado seria algo do tipo botar só a cabecinha?
Dá para perceber que a sugestão da magistrada está inviabilizada, não? Logo, a falácia n. 2 foi estuprada.
Mas a moça continua me assustando ao tirar da cartola um tal de "mandado de criminalização prevista na Constituição" (!!!), que estou me esforçando por entender. Com efeito, o art. 5º, XLIII, da Constituição de 1988, prevê que "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos".
Como a Constituição realmente mandou criar uma lei definindo crimes hediondos, posso ver aí o tal mandado de criminalização, mas ele se encerra nas vedações ali mencionadas, não havendo nada que impeça a instituição de um privilégio. Se a juíza entendeu que estão vedados privilégios para crimes hediondos pelo simples fato de serem hediondos, a conclusão é exclusivamente dela.
Por último, a juíza ainda repudia a aplicação automática do privilégio, mas ele não é automático, já que sujeito à apreciação de características com certa carga de subjetividade.
É interessante, contudo, ver a juíza reclamando que a aplicação da medida deveria ser subordinada ao seu "prudente critério" (medo!). Na verdade, eu concordo com isso. Trata-se de implementar o princípio da individualização da pena: as medidas legais, sejam benéficas ou gravosas, devem ser decididas em cada caso concreto, mediante deliberação fundamentada, e não resolvidas genericamente por uma norma abstrata. concordo mesmo. Só acho engraçado que o argumento seja defendido para prejudicar, pois quando se trata de beneficiar, aí está valendo. Basta lembrar a própria Lei de Crimes Hediondos, quando proibiu a progressão de regime e, sob a batuta do STF, foram necessários 17 anos para a coisa mudar.

Dedico esta postagem a minha querida Ana Cláudia Pinho, estudiosa da hermenêutica e que adora analisar os fundamentos de decisões judiciais. Com meus cumprimentos.

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