segunda-feira, 17 de março de 2014

Mea maxima culpa

Terminei de assistir ontem, após o hiato provocado pela viagem, ao excelente documentário produzido pela HBO Mea maxima culpa: silêncio na casa de Deus, de Alex Gibney (2012). O longa investiga os casos de pedofilia dentro da Igreja Católica, a partir do escândalo ocorrido na escola para surdos de St. John's (Milwaukee, Wisconsin, EUA).

O ponto de partida do filme remete à década de 1950, quando o padre Lawrence Murphy estava recém-ordenado e foi designado para cuidar das crianças do St. John's. Essas crianças eram extremamente vulneráveis, porque até a década de 1970 os surdos foram considerados doentes mentais (!!!), incapazes de comunicar as próprias necessidades. Muitas famílias desconheciam a linguagem de sinais e por isso não havia meios de interagir eficientemente com os meninos. Estes dependiam da St. John's para tudo, em suma, e aí entra a figura sombria de Murphy, que mentia aos garotos, dizendo que não eram amados pelos pais. Assim, ele se tornava a principal, quando não a única, figura de apoio.

Lawrence Murphy em foto real, exibida no documentário.
Murphy, com total desenvoltura, entrava à noite no dormitório, escolhia a sua vítima e fazia o que bem queria. Alguns ele selecionava e levava para a sua casa de campo, onde passavam alguns dias. Muitos meninos sequer compreendiam o que estava acontecendo. Outros sentiam medo, raiva, mas ninguém fazia nada. A descrição do temor reverencial frente a um homem que, na verdade, seria um representante legítimo de Deus, é impressionante. Mais impressionante ainda foram as explicações que ele forneceu, anos mais tarde, durante investigações internas da Igreja. Disse que a promiscuidade (homossexual, já que o alojamento era só de meninos) grassava entre os internos e que ele os curara disso. Fora educação sexual.

Inútil nos concentrarmos no que pensa e diz um predador sexual. O grande impacto do documentário está na demonstração de que o Vaticano sempre soube do problema e, de caso pensado, nunca tomou providências concretas. Chegou a criar uma ordem especial para "tratar" o transtorno dos clérigos, internando-os numa ilha do Caribe. Lá, os abusos continuaram. O dever era esconder tudo, a qualquer custo. E assim chegamos ao cardeal Joseph Ratzinger, que por 25 anos comandou a Congregação para a Doutrina da Fé (substituta da Inquisição). Em 2001, Ratzinger estabeleceu uma resolução segundo a qual todos os casos de abuso sexual contra menores, por religiosos católicos, deveriam ser-lhe comunicados. Ele se tornou, assim, o maior conhecedor do assunto no mundo. O documentário até destaca que ele tomou medidas importantes de investigação, mas punição que é bom, nada. Ele foi um dos maiores responsáveis pela impunidade.

Indignados com a omissão do Vaticano, algumas vítimas,
anos depois, começaram a espalhar cartazes de
"procurado" na cidade. Depois disso vieram os processos.
Se você reverencia João Paulo II, saiba que as coisas não ficam boas para o lado dele, também. Um de seus mais idolatrados cardeais era Marcial Maciel, fundador de uma instituição que arrecadava milhões de dólares em doações. Maciel despejava dinheiro no Vaticano e por isso foi blindado. Mesmo quando já havia uma investigação em curso, recebeu uma bênção do próprio papa, devidamente registrada em vídeo. O homem forte do papa, na época, cardeal Angelo Sodano, foi um dos maiores protetores de Maciel. Em troca de alguns milhões de dólares.

Quando os escândalos começaram a se multiplicar, o Vaticano afirmou que aquele era um problema dos Estados Unidos. Uma tentativa de desqualificar os acusadores. Aí surgiram os escândalos da Irlanda, país de população católica praticante (95%), cujos fieis se ajoelhavam na rua à simples passagem de um padre. O pouco caso do Vaticano em um país de alto nível educacional provocou uma debandada de fieis, o que motivou algumas medidas tomadas por Ratzinger, já papa Bento XVI. Entregou alguns aneis, para conservar os dedos.

Eclodiram escândalos também em outros países europeus e, por fim, surgiram casos em diversos países do Terceiro Mundo, mas o documentário sugere que ainda vai demorar para que sejam tomadas providências nestes países, devido à maior influência da Igreja, justamente o temor reverencial.

O filme se concentra nas ações judiciais propostas contra os pedófilos e a Igreja, que custaram milhões de dólares em indenizações e acordos. Padres foram condenados, mas nem assim o Vaticano admitiu seus erros. Registrou-se um caso de dispensa do serviço sacerdotal, mas apenas depois de uma condenação rumorosa. A ordem sempre foi ocultar tudo, inclusive os criminosos, se necessário. Quando o caso se tornava inocultável, a Santa Sé pedia clemência para esses pecadores. Por mais de cinco décadas, a Igreja não mencionou a existência de vítimas. Mesmo quando reconhecia um caso de pedofilia, tratava isso como violação a deveres sagrados. Esta a fúria das vítimas: a verdade histórica ainda não apareceu.

Recomendo enfaticamente a todos os interessados pelo tema que assistam ao documentário. Destaco que todos os que se envolveram com a causa foram acusados de anticlericalismo, como se tudo não passasse de perseguição à Igreja de Roma. Mas vale a pena lembrar que, segundo foi divulgado pela imprensa comum, Bento XVI teria renunciado por não se sentir em condições de lidar com escândalos sexuais embaixo do próprio nariz. E o papa Francisco teria começado seu pontificado assumindo mais verdades do que seus antecessores. Então é melhor buscar um argumento mais convincente do que caça às bruxas. Até porque, nessa seara, ninguém tem mais know how que o Vaticano.

Em tempo:

Vi o documentário pela TV a cabo, mas você pode encontrá-lo no YouTube, na íntegra ou fracionado em capítulos.

Website oficial: http://www.hbo.com/documentaries/mea-maxima-culpa#/

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