Com a minha, já são 977 subscrições ao manifesto dos criminalistas brasileiros contra o PLS 236, sobre o novo Código Penal, criticado desde a origem e muito prejudicado pelas alterações feitas no Senado. Eis o teor da petição pública:
Os Professores, Magistrados, Advogados, Defensores, membros do Ministério Público e Juristas que abaixo subscrevem, na ocasião da homenagem à vida e obra do eminente Doutor e Juiz da Corte Constitucional Alemã Winfried Hassemer, em Congresso realizado na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, nos dias 20 e 21 de março de 2014, manifestam seu veemente e inequívoco repúdio ao texto revisado do Projeto de Lei 236, objeto de Parecer de autoria do Senador Pedro Taques, cujo conteúdo é absolutamente incompatível com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
O texto que precedia a revisão, produto dos esforços da chamada "Comissão Sarney", foi, desde cedo e merecidamente, criticado por criminalistas de todo o país, especialmente por suas grosseiras deficiências técnicas, em boa medida determinadas pelo Programa de Política Penal que tem por base, tão conhecido quanto atrasado.
Na tentativa de salvar um Projeto de Lei além de qualquer possibilidade de salvação e após sucessivos encontros com especialistas em Direito Penal, o trabalho de revisão coordenado pelo mencionado Senador vem agora a público e surpreende ao manter inalterado ou mesmo promover e incrementar seus vícios primitivos mais evidentes. Neste sentido, ao contrário do que afirma, o texto não constitui a síntese das críticas e colaborações científicas que lhe foram dirigidas.
Nele se descobre, infelizmente e mais uma vez, que a classe política brasileira é carente da mínima informação científica em matéria criminal, impedindo qualquer elogio dogmático ao texto. Alguns pontos são graves: no que se refere à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, o texto adota a ultrapassada "teoria da indiferença", superada há mais de 100 anos e historicamente resgatada pelos juristas nazistas para facilitar a imputação dolosa contra os "inimigos" da "comunidade do povo", tragédia que agora corre o risco de se repetir como farsa. Mas a filiação a categorias privilegiadas por fascistas - justificada porque "mais precisa", segundo os termos do Parecer - está longe de esgotar seu conteúdo antidemocrático. De fato, o mesmo se pode dizer em relação à definição de autoria, onde se pretende incorporar a chamada "teoria do domínio do fato" para ampliar o alcance da lei penal e estender aos crimes comuns a figura duvidosa dos aparelhos organizados de poder, que só poderia caber nos regimes políticos autoritários. Temos, aqui, aliás, possível caso de erro legislativo inescusável, pois bastaria ler a obra do autor que desenvolveu a teoria - o celebrado Professor alemão Claus Roxin - para perceber que seu objetivo fundamental é restringir, ao invés de estender, o chamado conceito unitário, previsto no artigo 29 do atual Código Penal.
Mas não é só: preso à obtusa e reacionária ideia de pena como "vingança social", o Parecer também pretende justificar a criação de novas hipóteses qualificadoras do homicídio de natureza puramente subjetiva, ataca o princípio da legalidade ao admitir expressões elusivas como "grave lesão à sociedade" para agravar punições e propõe a criminalização temerária do terrorismo e pormenorizada da eutanásia.
Para piorar, em relação ao mais importante ponto do sistema de justiça criminal contemporâneo, distancia-se da pesquisa criminológica das últimas décadas e aumenta a pena cominada ao tráfico para até 21 anos, ao mesmo tempo em que "descriminaliza" o consumo não ostensivo, perpetuando com isso uma Política Criminal de Drogas contraditória, classista, fracassada e perigosamente suscetível a oportunistas oscilações interpretativas.
Esse é, a propósito, o traço distintivo do Projeto, com ou sem revisão: todo e qualquer aparente avanço é imediatamente anulado por uma medida draconiana - por todas, o aumento do tempo necessário para progressão de regime na execução da pena privativa de liberdade, que passa de um sexto para um quarto da pena, mesmo para réus primários em crime doloso.
Da mesma forma, se, por um lado, o Projeto propõe abolir a lei de contravenções, por outro, transforma em crimes a "exploração de jogos de azar" e a "perturbação do sossego", o que é simplesmente irracional.
O caráter meramente retórico da tentativa de democratização do sistema penal, anunciada como propósito do Projeto de Lei, é igualmente visível na ampliação do rol dos crimes hediondos, no irresponsável desrespeito à proporcionalidade entre penas, bens jurídicos e graus de lesão descritos nos tipos legais; no retrocesso quanto aos casos de descriminalização do aborto; no aumento da pena de quase todos os crimes; na eliminação da prescrição pela pena em concreto depois de transitada em julgado a sentença para a acusação; na exclusão da circunstância atenuante especial (hoje prevista no art. 66 do Código Penal); ao impedir a combinação de leis mais favoráveis; ao eliminar a diminuição de pena para fato dolosamente distinto; ao restaurar a antiga categoria da multa temerária, que é tipicamente de direito civil; ao adotar no tocante ao erro a teoria extrema da culpabilidade, já abandonada pela doutrina jurídica universal desde 1975; ao aumentar o valor do dia-multa, considerando que para isso o valor máximo de referência será de 720 dias e não 360; ao abolir a distinção entre reclusão e detenção e de institutos democráticos como o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, teses defendidas sem qualquer prognóstico realista sobre suas consequências humanas e financeiras.
Mas, esforçando-se para soar suficientemente "contemporâneo" e fugir de seu paradoxal anacronismo, o Parecer defende adiante a criação de "novos crimes", tão desnecessários quanto caricatos, em mais uma demonstração de vulgar adesão ao populismo penal. Assim, diante dos delitos de "stalking", "bullying", "corrupção entre particulares" e "crimes cibernéticos" não parece desarrazoado supor o predomínio da vontade de atrair atenção midiática em detrimento do propósito real de efetivamente atualizar o ordenamento jurídico-penal. Nem isso se conseguiu.
Em conclusão, considerando que nenhum avanço eventualmente trazido pelo texto justifica os gravíssimos erros e retrocessos que endossa, aqueles que insistirem em sua tramitação e eventual aprovação prestarão um verdadeiro desserviço à democracia e à ciência jurídico-penal.
Logo, este manifesto, abaixo assinado e abraçado pelo sempre combativo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, não se resume à declaração de inconformismo com um projeto de lei autoritário por parte de juristas politicamente comprometidos com democracia, reunidos para homenagear um dos maiores expoentes na defesa de um Direito Penal submetido à razão e coerente com a promoção dos direitos fundamentais. À sombra dos 50 anos do golpe militar, esta declaração pública de repúdio ao absurdo codificado também estende um convite a todos os criminalistas brasileiros, para que resistam intransigentes à escatológica possibilidade de ceder a mais essa tentação punitiva que se gesta no Congresso Nacional: este Código não é digno do povo brasileiro.
Rio de Janeiro, 21 de março de 2014
Juarez Tavares (UERJ)
Juarez Cirino dos Santos (ICPC)
Nilo Batista (UERJ)
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)
Geraldo Prado (UFRJ)
Maurício Dieter (USP)
Sergio Verani (UERJ/Diretor Geral da EMERJ)
Jacson Zilio (MPPR)
Antonio Martins (Uni-Frankfurt)
Ulfrid Neumann (Uni-Frankfurt)
Dirk Fabricius (Uni-Frankfurt)
Sebastian Scheerer (Uni-Hamburg)
Rubens Casara (TJRJ/IBMEC)
Marcelo Semer (TJSP)
Alexandre Morais da Rosa (TJSC)
Ana Elisa Bechara (USP)
Cezar Roberto Bitencourt (Advogado)
Leonardo Yarochewsky (PUCMG)
Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC)
Salo de Carvalho (UFSM)
Marcio Sotelo Felippe (Ex-Procurador Geral do Estado de São Paulo)
Pedro Estevam Serrano (PUC-SP)
Amilton Bueno de Carvalho (TJRS)
Katie Arguello (UFPR)
Ademar Borges (UNB)
Alexandre Mendes (UERJ)
Patrick Cacicedo (DPSP)
Fauzi Hassan Choukr (MPSP)
Isabel Coelho (TJRJ)
Fernanda Tortima (OABRJ)
Reinaldo Santos de Almeida Júnior (UFRJ)
Luis Greco (Uni-München)
Alaor Leite (Uni-München)
Patrícia Kettermann (DPRS)
Tiago Joffily (MPRJ)
Marcos Peixoto (TJRJ)
Felipe Caldeira (Advogado)
Antônio José Pêcego (TJMG)
Maria Lucia Karam (LEAP)
Denis Sampaio (DPRJ)
Carol Proner (UFRJ)
Bartira Macedo de Miranda Santos (UFG)
Christiano Fragoso (UERJ)
Heloisa Estellita (FGV)
Bruno Cava (UERJ)
Alexandre Leite (TJRJ/EMERJ)
Leonardo Costa de Paula (UCAM)
Antônio Pedro Melchior (IBMEC)
Kenarik Boujikian (AJD- presidente)
José Henrique Torres (AJD-PUCCAMP)
Alexandre Mallet (UCAM)
Davi Tangerino (UERJ)
Mariana Sousa Pereira (Advogada)
Antonio Sergio Altieri de Moraes Pitombo (Advogado)
Luciano Cirino dos Santos (Advogado)
Soraya Vieira Gomide (Advogada)
Simone Dalila Lopes (TJRJ)
Julia Thomaz Sandroni (Advogada)
Wadih Damous (Advogado)
Maria Gabriela Peixoto (Advogada)
Gisela Baer (Advogada)
Janine Fernanda Fanucchi de Almeida Melo (Advogada)
Nathalia de Paula Moreira Frattezi (UFMG)
André Lozano Andrade (Advogado)
Gabrielle Stricker do Valle (UFPR)
Jair Cirino dos Santos (MPPR)
Denise Maldonado Gama (PUCMG)
André Vaz (TJRJ)
André B. do Nascimento (Advogado)
June Cirino dos Santos (UFPR)
Ellen Rodrigues (UFJF)
Caio Patricio de Almeida (UNICURITIBA)
Ricardo Krug (UNICURITIBA)
Elisa Blasi (PUCPR)
Wanisy Roncone Ribeiro (Advogada)
Leomar Wittig (Advogada)
Carlos Eduardo Machado (Advogado)
Luiza Labatut (MPPR)
Carla Viana (DPRJ)
Fernando Augusto Fernandes (Advogado)
Vitor Barra Veiga (Advogado)
Marcia Dinis (Advogada)
Lourinelson Vladmir (Advogado)
Priscila Pedrosa (Advogada)
Mayra Cotta de Souza (UNB)
Ana Carolina Andrade Carneiro (DPU)
Michel Asseff (Advogado)
Ana Cláudia Pinho (MPPA)
Patrick Mariano Gomes (RENAP)
Giane Ambrósio Álvares (RENAP)
Thiago Araujo (Advogado)
Lucas Sada (Advogado)
Frederico Figueiredo (UFRJ)
Para conhecer o texto original e votar, clique aqui.
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