O que vou dizer pode ser algo óbvio e repetitivo, mas também é verdade e também é uma percepção restrita: há uma gigantesca diferença na importância mundialmente dada ao ataque terrorista contra o jornal francês Charlie Hebdo e o massacre perpetrado pelo grupo terrorista Boko Haram, no norte da Nigéria.
Vidas são vidas e toda crueldade deve ser repudiada, mas é impossível escapar dos números para pensar na gravidade de certas situações. No atentado à sede do jornalístico, no último dia 7, houve 12 mortes e o ingrediente especial a entornar o caldo dos debates é a liberdade de expressão. Na Nigéria, ao longo de apenas cinco dias deste mesmo mês de janeiro, mais de 2 mil pessoas foram mortas, na cidade de Baga, além de ataques em cidades vizinhas. Note-se que estamos falando de um recorte temporal, pois o Boko Haram existe desde 2002, segundo consta, e é alarmante o número de vítimas feitas nesse período.
Naturalmente injustificável, o motivo do ataque ao Charlie Hebdo foi uma retaliação às constantes publicações satirizando o islamismo. Um grupo específico de pessoas, certamente ligado a uma organização fundamentalista, levou a cabo a missão isolada em nome da verdade. Mas o Boko Haram, igualmente em nome de sua verdade, age sistematicamente com o objetivo de instalar uma ditadura teocrática que pretende combater toda e qualquer educação e cultura não islâmica, pois o ocidente, e particularmente o catolicismo, são considerados como causas de todos os males do mundo. O entorno do caldo dos debates é o tratamento conferido às mulheres, que devem ser servas castas, ou seja, são totalmente dessubjetivadas. Além disso, os métodos do grupo são tão terríveis que custa crer que alguém chegue a esse ponto.
Não quero falar de religião e muito menos das conotações de direita-esquerda que têm permeado o noticiário e as redes sociais. Quero apenas destacar que nossas sociedades ocidentais não conseguem disfarçar o seu interesse focalizado em quem reconhece como parte da tribo. Franceses de boa condição financeira geram comoção mundial; africanos pobres não. O ataque à liberdade de expressão é tratado como a maior violência possível, mas o que dizer de sequestrar meninas e submetê-las a estupros coletivos até que "aceitem" a fé islâmica, o que implica em abdicar de todo e qualquer direito? O que dizer de mutilações sexuais e homicídios indiscriminados?
Para confirmar o que digo, basta acessar os noticiários da internet: compare a quantidade de notícias sobre os temas. Compare o destaque dado a elas. Pense no que significa todo santo dia haver a renovação de notícias sobre os franceses e já não haver novidades sobre os nigerianos. Para me inteirar melhor do ocorrido, hoje, busquei a página da Organização das Nações Unidas (aqui) e Anistia Internacional (aqui). Sintomático, não?
Angustiam-me sobremaneira a solidariedade seletiva, a indignação seletiva, as cobranças seletivas. Líderes mundiais fizeram juntos uma caminhada, ao lado do povo francês, clamando por liberdade, mas ninguém caminhou em favor dos nigerianos. Mesmo a ONU promete fazer o quê? Nada. Apenas insta as autoridades nigerianas a restaurar a ordem e a proteger as pessoas. Dê seu jeito. Nós mesmos nada faremos. Deve ser por causa da soberania nacional, não é?
Olhando de perto, as grandes tragédias conseguem ficar ainda maiores.
Um comentário:
Se as autoridades mundiais interferirem, as mesmas pessoas que as acusam de omissão, acusarão de imperialismo...
Postar um comentário