quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A má fé pode virar crime impossível

A prática é bastante comum em qualquer grande cidade: mesmo havendo circuito interno de TV e funcionários destacados somente para fins de vigilância, muitos supermercados deixam o indivíduo subtrair mercadorias e, mais do que isso, deixam-no sair do prédio, para detê-lo já na rua e, com isso, forçar uma acusação de furto consumado. Ou seja, o estabelecimento dispõe de lautos recursos para impedir a conduta, no nascedouro, mas favorece a sua ocorrência para, com isso, perseguir uma punição mais severa.

Sempre considerei esse tipo de postura de um mau caratismo extremo, principalmente porque, na grande maioria dos casos, a subtração envolve valores irrisórios e gente mais desesperada do que convicta.

Eis que, em São Paulo, uma decisão judicial acolheu pretensão da Defensoria Pública, não a tese de absolvição por atipicidade, aplicado o princípio da insignificância. Contudo, o juiz absolveu o réu com base em um raciocínio relacionado ao crime impossível. Afinal, devido à fiscalização eficiente em tempo real, realizada pelo estabelecimento, o furto era desde o começo impossível e só acabou por acontecer devido ao procedimento da própria vítima.

Fiquei feliz com a interpretação do juiz e quis ler a sentença. Em suma, este decisório merece o nosso apreço, mas acabei me deparando com outros aspectos já não tão simpáticos.

Comecemos pelo aspecto formal. Defensor ardoroso da simplificação da linguagem jurídica, várias vezes me pronunciei contra essa tapeação que é a falsa erudição, cuja principal finalidade, na maioria dos casos, é esconder a mediocridade. Quase não acreditei ao me deparar com uma sentença que, prolatada em 22 de setembro de 2014, foi redigida em termos arcaicos, propositalmente obscuros e com abuso de sinônimos, além da abundância de latim, a desvelar sua intencionalidade. E toda essa erudição, no entanto, não se fez acompanhar de correção, porque são vários os erros de português no texto. Veja por si mesmo:

(...) In primo loco, ao esguardo que faz-se merecedora a culta e combativa Defensoria Pública, não é de ser acolitada a bagatela.
Pois sim.
Nestas plagas donde campeia a pobreza e a miséria, quase quinhentos reais, ínfimo não o é. Seria, venia concessa, temerário entender-se por atípica a ação, com empalmo de quase quinhentos reais que, por outra, não redundaria em qualquer resposta no âmbito penal. "Legalizar-se-ia" - e incentivaria - abafos de tal quantia, o que redundaria no caos ou babel.
E, o que é insignificante para uns, para outros não o é.
Vá inquirir aos milhões e milhões de brasileiros, que em liça mensal de sol a sol, observando horário e ordens, percebendo paga mínima, se quase quinhentos reais é insignificante. A resposta, por óbvio e ululante, parafraseando o saudoso dramaturgo, há de ser negativa.
Derriba-se, pois, a insignificância ou bagatela.
Porém a tese outra impressiona.
É de pôr cobro a esse malsão proceder dos estabelecimentos que, bem cientes da pilha em andamento, não impedem-na, reclamando que o gatuno in continenti devolva bens que acomodou em receptáculo ou bolceta, como in casu, sem  o aguardo de este passar pelo caixa e ser contido, após, fora das dependências do estabelecimento.
Tal agir ou atuar é, por vias transversas, vero acicate ao crime.
E, como é dos autos, o fiscal Pablo (f. 06), ajustou que  observou o réu em atitude suspeita e que em momento algum o perdeu de vista.
O exemplo é baço, bem o sei, mas se garção ou latagão apusesse espadete em fauce de caixa, demandado burras, iria o fiscal (amiúde armados com revólveres, gás pimenta ou outros petrechos como dispositivos de choques, etc.) aguardar a consumação do roubo qualificado ou latrocínio? Cremos que não. Homessa!
E, dá-se ensancha, ainda, a barafunda, eis que o réu (que aliás não possui em seu passado jaça de monta, tanto que caucionado pela autoridade policial) meneou a cabeça a assentou subtração de apenas duas peças. E, também, não anuiu ao acosso, contido no interior do estabelecimento (f. 10), o que é razoável, pois bise-se: o fiscal não perdeu-o de vista em momento algum.
Nada obstante e volvendo ao cerne.
Ante a dinâmica, bem clareada nos autos, temos que, nos dizeres de Aníbal Bruno, jurista merecedor de panegíricos com todas as veras da alma, uma autêntica carência de tipo.
A dinâmica, tal qual exsurge, é manifesta injunção de persuasão ou encabeçamento de que seria impossível a consumação do crime.
Desce e fecha a hipótese vertente o que está no artigo 17 do Código Penal.
Não vinga, pois, o anelo acusatório,  pese o respeito que faz-se merecedor o insigne dominus litis et custos legis que, por sua ímpar cultura e labor, goza, não apenas entre seus pares, mas perante todos os operadores de Direito nesta Vara (e em outras), de grande nomeada.
Ex positis:
JULGO IMPROCEDENTE a presente ação penal e o faço para ABSOLVER como de fato absolvo o réu (...), relativamente a acusação que lhe foi assacada, por infração a norma da cabeça do artigo 155 do Código Penal, forte no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal.
Vade in pace.
Dixi!

Interessante é que a sentença é curta. Se com menos floreios, seria mais curta e objetiva ainda, quanto bastaria. Daí que procurei saber quem era o juiz autor desta peça rara, pois o imaginei um magistrado das antigas. Trata-se de um magistrado com mais de 20 anos de atividade, porém ainda jovem, mormente em nossos tempos. Pelo que se vê, é uma questão de estilo, inclusive porque outras decisões dele seguem no mesmo exagero estético.

Mas se você entendeu que o magistrado em apreço é um "garantista", para usar expressão bastante desvirtuada em nossos dias, equivocou-se. Em outra sentença, a cuja leitura me sacrifiquei, já que até mais cansativa e despropositada, o magistrado se permitiu criticar o tal "fetichismo da pena mínima", expressão que nunca vi associada a boas análises. Chamou a Lei de Execução Penal de "vergonhosa", defendeu a retribuição e a prevenção geral como "valia maior da pena" e sobre a ressocialização (na qual também não acredito, mas outros motivos) disse o seguinte:

A ressocialização (e gastaram-se tintas e tintas sobre tal tema), repisando-se o máximo esguardo, em maioria supra summo, entende-se, humildemente, que é vã filosofia de pretensos filósofos. E assim o é, pois esbarra no livre arbítrio! A jaula torna o tigre mais manso? A raposa menos astuta? E, por melhor que fosse o sistema prisional, ainda assim, volve-se ao livre-arbítrio. O criminoso aprecia ser criminoso e, quanto mais perigoso ou embrenhado nos ilícitos, jacta-se de tanto. (...) Não tenhamos a ingenuidade do personagem Pangloss do notável filósofo iluminista Voltaire. A áspide, por sua natureza e sentindo-se ameaçada por mera aproximação, destila sua peçonha na vítima indefesa; porém, se sentir-se excessivamente e desmedidamente ameaçada, por certo, não atacará e empreenderá fuga. Assim, e bisando o máximo respeito, outros fossem os desates nos inúmeros crimes praticados, o réu não os cometeria, face a dura resposta estatal sendo dissuadido, ou, porque custodiado estaria.

Eis aí o juiz perfeito para a mentalidade reinante do brasileiro médio atual: todo crime é uma questão de simples escolha. E se deve punir tudo, porque as pessoas são más e devem ser contidas. Simples assim. Sua longa experiência não o ajudou a enxergar a realidade, com seus matizes.

No que tange à linguagem, um aviso aos meus alunos e, especialmente, aos orientandos de monografia: nunca, jamais, em tempo algum ousem escrever desse jeito! Não vai dar certo. Se for monografia, nem autorizo o depósito. Ou escrevemos para sermos tão claros quanto possível, e acessíveis inclusive aos mais humildes, ou de que serve o conhecimento? Massagem do ego?

"Homessa"!!!

Fonte: 

  • http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-furto-supermercado.pdf
  • http://s.conjur.com.br/dl/juiz-critica-fetichismo-pena-minima.pdf

2 comentários:

Anônimo disse...

A despeito do problema linguístico do juiz, acho que você poderia abrir um supermercado ou ao menos uma loja de conveniência para lidar com "gente mais despreparada do que convicta" que virá a frequentar o estabelecimento e que certamente não possui o "mau caratismo extremo" de quem gerencia o negócio.

Yúdice Andrade disse...

Ai, a patrulha da lei e ordem não dorme! Não sei para quê, mas respondo:
1. Não tenho o menor tino comercial, não gosto e não sei atuar nesse ramo, então não abriria um supermercado por motivo algum, muito menos para realizar experimentos sociais sem sentido.
2. Como os patrulheiros não entendem a Língua Portuguesa, esclareço que a expressão "mau caratismo extremo" não dizia respeito ao gerenciamento de comércios, e sim ao fato de deixar o furto se consumar para punir o ladrão com mais rigor, quando o esperado seria impedir o cometimento do delito. Aliás, essa prática foi condenada duramente pelo juiz da sentença comentada - e ele também é lei e ordem, como você. Por conseguinte, a crítica que me faz está muito deslocada. No mínimo.