domingo, 1 de novembro de 2015

Necessárias tintas vermelhas ― Sugestão de leituras críticas


Preocupadas com a necessidade de suscitar debates sobre temas pouco explorados e, em geral, dominados pela ignorância e pelo preconceito, a Boitempo Editorial e a Carta Maior lançaram, em 2012, a coleção Tinta Vermelha, autodefinida como um conjunto de "obras de intervenção e teorização sobre acontecimentos atuais". Bem na linha crítica segundo a qual mais importante do que explicar a realidade é transformá-la, ou seja, nós estudamos e teorizamos sempre com a intenção de modificar o que precisa ser mudado na sociedade.

A editora explica que o título da coleção alude ao discurso do filósofo esloveno Slavoj Žižek, aos participantes do Occupy Wall Street, ocorrido na Liberty Plaza, Nova Iorque, em 9.10.2011, que se tornou um marco porque originou um novo modo de fazer protesto popular, tendo como foco as políticas neoliberais que regem o mundo. Disse ele: "Temos toda a liberdade que desejamos ― a única coisa que falta é a 'tinta vermelha': nos 'sentimos  livres' porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade".

A proposta de esquerda fica clara no próprio modo de produzir a obra coletiva: a partir da seleção do tema, alguns autores são convidados a produzir seus artigos, mas os direitos autorais são cedidos (assim como sobre fotografias) e o responsável pela arte gráfica também abre mão de remuneração, tudo para baratear o preço de venda ao público, permitindo maior difusão das ideias. Nem por isso a qualidade cai.

A obra de lançamento (2012) teve como tema Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que me foi apresentada por minha querida monitora Vitória Monteiro e por ela utilizada em sua excelente monografia de conclusão de curso, assim como o título seguinte, Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (2013). Depois vieram Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? (2014) e, finalmente, Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (2015).

Acabei de ler Bala perdida, uma interessante compilação sobre violência policial, a violência que tanto é legitimada pelo Estado por meio de mentiras sobre fatos (os autos de resistência são a expressão formal mais extrema disso) e ideologias ligadas ao tema da segurança pública quanto, sobretudo, pela própria sociedade, tendo em vista um fenômeno que considero da maior importância em nosso tempo: a legitimação social da barbárie pela progressiva perda dos vínculos comunitários, o que repercute na produção de normas jurídicas crescentemente negadoras de direitos fundamentais.

Bala perdida reúne 17 ensaios breves, que dão voz não apenas a estudiosos, profissionais e acadêmicos, mas também aos familiares das vítimas da violência policial e a um oficial da própria Polícia Militar. As abordagens versam sobre a falência do modelo organizacional adotado no Brasil, herança dos desvarios dos militares que comandavam o país sob a forma de um Estado de exceção: foi em 1970 que surgiu a Polícia Militar, como força auxiliar do Exército, treinada para a solução de conflitos pela lógica do enfrentamento bélico ― algo completamente incompatível com um Estado democrático de Direito.

Além disso, a obra também versa sobre a violência inerente às práticas policiais, a guerra às drogas, a militarização do cotidiano e a exploração midiática, terminando com uma comovente narrativa sobre mais uma das vítimas do que, não à toa, Zaffaroni chama de genocídio ― que, em nosso país, assume a feição de extermínio institucionalizado de jovens pobres e negros (ou, como diriam Caetano e Gil, "quase pretos de tão pobres").

De modo mais pontual, esta leitura fornece importantes informações para entendermos a importância da desmilitarização da polícia, proposta com a qual mais de 74% dos membros da própria PM concordam (exceto, como é previsível, entre os oficiais de mais alta patente, sequiosos de conservar seus privilégios). Esse é o conteúdo da Proposta de Emenda à Constituição n. 51, de 2013, que teve como última movimentação uma audiência pública em 21 de outubro passado. Trata-se da mais completa proposta disponível sobre unificação das carreiras das polícias civil e militar, que hoje estão organizadas de modo a competir e a atrapalhar uma à outra, sendo essa uma das causas dos números pífios de elucidação policial de crimes no Brasil, abaixo de 10%.

A quem se interessa pelos temas e pelo tipo de abordagem, vale muito a pena ler.

Em tempo:

Justamente hoje, o Empório do Direito publicou artigo contendo uma crítica feroz aos principais aspectos da PEC acima referida: a desmilitarização e a unificação das polícias, estabelecendo o chamado "ciclo completo", por meio do qual a mesma corporação exerceria as atividades de policiamento ostensivo, prevenção e investigação criminal (leia aqui). Invocando fundamentos da criminologia crítica, o autor sugere deslumbramento e ingenuidade por parte de quem defende essas propostas, desde a premissa de que seriam meras importações acríticas de modelos estrangeiros, algumas oriundas de países subdesenvolvidos.

Como acadêmico, entendo ser da maior importância debater os diferentes enfoques que um tema permite, ainda mais em se tratando de questão assaz delicada e polêmica. São oportunos os senões suscitados no artigo, mas devo admitir o meu saco cheio com essa mania de criticar o status quo, criticar a crítica e depois criticar a crítica da crítica, que nos mergulha em uma regressão infinita que somente poderia interessar a quem não tem um problema a resolver.

Parece-me bastante óbvio que qualquer assunto sempre pode ser aprofundado em um nível mais sutil do que o da discussão atual. Contudo, as grandes mudanças que o país reclama exigem tempo para virarem leis e, depois, para serem implementadas. Precisamos começar em algum momento. Não podemos permitir que vidas continuem sendo perdidas a rodo enquanto não atingimos o nível de satisfação plena dos teóricos (nível que, provavelmente, não existe). Estamos cientes de que mudanças estruturais nas polícias são insuficientes para resolver o descalabro que vivemos, mas entendo que são medidas importantes e urgentes. No mesmo livro Bala perdida, Maria Lúcia Karam é enfática em asseverar que, sem o fim da política de guerra às drogas, a desmilitarização seria inútil. Mas ela não menospreza a desmilitarização por causa disso.

Então este é o meu ponto: precisamos fazer alguma coisa já. Muito ajudaria, ao menos, que os críticos das propostas existentes fizessem algo mais do que criticar e oferecessem alternativas concretas, viáveis, ao quanto está posto.

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