quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A última semana

Somente hoje tive acesso ao prontuário da última internação hospitalar de minha mãe, que corresponde a sua última semana de vida. Preciso desse documento para empreender uma jornada ao fundo do ego e decidir se vale a pena uma ação judicial contra o plano de saúde ou se não. Uma decisão a ser compartilhada com meu irmão, naturalmente.

Ler o documento me transportou de novo para aqueles tempos sombrios, que no fundo não são tão diferentes dos atuais. A maior diferença era que, antes, eu tinha certeza de estar imerso na vida real e agora... eu não sei. É como se eu assistisse às cenas mais desinteressantes de um filme em que nada acontece que seja digno de nota.

Uma anotação do prontuário, contudo, martela a minha cabeça de modo incessante. "Ao exame físico: consciente e orientada".

Minha mãe ficou indignada por ser levada ao hospital. Se era para morrer, que fosse em casa. Mas nós iniciamos a segunda-feira, 28 de setembro, levando-a para o hospital, mentindo descaradamente que ela talvez não fosse internada. Nossa intenção era melhorar a sua capacidade respiratória, porque ela não dormia mais. Nas conversas com a médica paliativista, a intenção era clara: melhorar sua condição geral e devolvê-la para o conforto de seu lar, pelo tempo que fosse possível.

No setor de triagem, à espera de um leito, recebeu o meu beijo e a minha despedida, pois eu precisava trabalhar. Felizmente, eu disse que a amava. Deitada de lado, na posição que suportava, ela não me respondeu. Ela nunca mais falou comigo. Exceto, talvez, o "não" quando tentei lhe fazer uma higiene, à noite. Dormi no hospital naquela noite, mas a despeito de minhas tentativas, ela não se comunicou. No entanto, estava consciente e orientada.

Dia 29, 12h04. Paciente consciente e orientada. Fui vê-la à tardinha. Estava completamente ausente. Emitia sons que não sabíamos se ainda eram algum arremedo de resposta ou apenas o sofrimento pulmonar. A médica anota: "Progressão de doença?".

Dia 30, 9h06, na companhia de meu irmão. "Paciente não quer conversar, fecha os olhos durante visita. Fala pouco, humor deprimido." Às 10h41: "Deprimida, não está querendo falar com a equipe". Vou vê-la depois e sua condição é de quem já foi levado pela doença. Não posso acreditar que ela se recusa a falar com os filhos, embora a médica nos tenha avisado disso.

Dia 1º.10, 11h13. Fui chamado por meu irmão para tomar decisões que ele não podia nem queria tomar sozinho. "Paciente gravíssima, rebaixada quanto ao nível de consciência... em progressão de doença". Decidimos não a mandar para a UTI, onde ficaria isolada; receberia apenas uma sedação, para alívio (?) de seu sofrimento. Começa a macronebulização. Daí por diante, só vejo minha mãe por trás de uma máscara. Lembro, mas queria apagar da memória, a expressão de seu rosto.

Dia 2.10, 11h59, na companhia de minha esposa, o quadro é de pneumonia hospitalar com piora da infecção respiratória devido à progressão da doença. Às 12h31, ainda a anotação "não quer conversar". Na deliberação sobre quem passará a noite, chegamos à conclusão de que ela queria morrer, mas não podia desligar-se na presença dos filhos. Era demais para ela. Damos a incumbência para a irmã, Jose.

Dia 3 de outubro, às 8h33, uma anotação objetiva: "Evoluiu com PCR. Óbito constatado às 7:30". É assim que termina.

Recebi instruções ao longo daquela semana sobre o que podia estar acontecendo com minha mãe. Instruções sobre ela ter mergulhado para dentro de si mesma, a fim de revisitar a própria vida, resolver suas pendências, buscar o autoperdão. Coisas que você não escuta dos médicos comuns, mas escuta dos paliativistas. E dos enfermeiros paliativistas, como meu amigo Renato, que de longe me ofertou palavras de apoio. As únicas que realmente me ajudaram, enquanto ao meu redor as pessoas só sabiam falar sobre a tal vontade de Deus.

Conheço minha mãe bem o bastante para saber que, se ela preferiu não falar mais conosco, embora pudesse fazê-lo, um sofrimento indescritível gritava dentro dela. Para isso, não tenho respostas. Ainda acordo de madrugada me perguntando: "Por que a senhora não se despediu de mim? Por que não apertou a minha mão?"

Por que tudo isso aconteceu? Qual a utilidade? Qual a finalidade? Agora me calo. Digito as últimas palavras para retornar à correção de provas, recurso para esquecer. Recurso inútil, mas é o que tenho.

Há decisões a tomar. E a vida segue, do seu jeito.

Da minha sacada, é o que vejo neste momento.

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