sábado, 26 de dezembro de 2015

A vida não é How to get away with murder


O seriado How to get away with murder (no Brasil, por alguma razão, não se traduz mais o título das séries, então para os desavisados seria "como se safar de um homicídio") foi bem recebido pelo público e pela crítica, quando de seu lançamento em setembro de 2014, já estando na segunda temporada. De lá para cá, recebeu 16 indicações a prêmios, tendo recebido 8, metade dos quais graças à elogiadíssima atuação da protagonista, vivida por Viola Davis (que já contabiliza 8 indicações)1. Aliás, o belíssimo discurso de Davis, ao ser laureada com o Emmy, correu o mundo e sempre merece ser conhecido (aqui, no YouTube).


A trama conta a estória de Annalise Keating, advogada estilo arrasa-quarteirão que leciona direito penal na fictícia Universidade de Middleton, que seria uma das mais importantes escolas de direito dos Estados Unidos. Mas como ela brada logo ao entrar na sala no primeiro dia (no episódio piloto), ela não está interessada em se debruçar sobre as leis ou em aprofundar teorias: ela quer a prática. Daí começa a exibir informações sobre um caso encaminhado aos alunos por e-mail, que eles ignoram tratar-se de um caso em andamento, para o qual a advogada quer que cada aluno engendre uma tese defensória, a qual será exposta à turma em apenas um minuto. O prêmio: um emprego em sua invejada banca advocatícia.

Com isso, a sala de aula se mistura com a carreira imediata e deslancha algo que repudio, mas que é central para a "cultura" americana: a competição. Você não pode ser um perdedor, nem que para isso precise chutar umas bundas. Você precisa ser o famoso self made man e apresentar resultados concretos e rápidos, mesmo que para isso precise renunciar à ética e até à humanidade. Mas quem se importa?

Neste momento, suponho que muitos estudantes de direito estão com os olhinhos cintilando em rostinhos fofos como os desenhados nos mangás da Turma da Mônica Jovem. Eles se perguntam: "por que as minhas aulas de penal não são assim?" E é exatamente isso que me preocupa: como professor de direito penal no mundo real, não na espetaculosa ficção estadunidense, preciso que entendam que o cenário retratado na TV não teria como ser repetido aqui fora.

E por que não? De saída, esqueça a resposta sumária da cabeça colonizada ("porque as universidades americanas são melhores do que as brasileiras"). Não se trata disso nem tampouco de que as universidades A ou B são melhores do que a sua (se é que são). Trata-se, na verdade, de uma questão muito mais ampla. Vamos falar de modelos.

Modelo n. 1: ensino do direito

Não é razoável comparar a sua aula com aquela proferida pela Profa. Keating. Isto porque os estilos estão assentados sobre modelos educacionais gritantemente distintos.

No Brasil, do ensino fundamental ao superior, somos acostumados ao método catedrático, em que um professor, supostamente legitimado por seu conhecimento e experiência, deve ensinar a uma plateia sem esse conhecimento e inexperiente o que ela deve aprender. Trata-se de um método que privilegia a repetição e a memorização e que normalmente se materializa por uma sucessão de comandos gerais (conceitos, classificações, regras, etc.) alternados com exemplos. Se aplicado em sua forma mais seca, esse método desconsidera a contribuição que cada aluno pode oferecer com os conhecimentos que possua, quaisquer que sejam, além de suas vivências. O ensino-aprendizagem se concentra em um fluxo professor " aprendente e depende quase que exclusivamente das escolhas do primeiro. Por isso, é bem fácil encontrar professores questionando esse modelo, sobretudo no ensino superior.

No ensino jurídico americano, as aulas não têm essa natureza de palestras (ou "aulas expositivas dialogadas", quando permitimos a livre intervenção dos alunos). A classe é demandada a participar ativamente, inclusive apresentando o resultado de estudos prévios. Pode ser critério de avaliação o aluno demonstrar que está fazendo suas leituras extraclasse. Daí logo se pode inferir que o método americano é superior, mas precisamos evitar as simplificações descontextualizadas. Ambos os modelos têm suas virtudes e seus problemas.

No começo do último semestre letivo, o CESUPA recebeu a visita do Prof. Spencer Sydow, apesar do nome um brasileiro, que foi pesquisador e professor visitante na Universidade de Buffalo. Com essa experiência, ele nos permitiu perceber que, no Brasil, pecamos pelo excesso e, nos Estados Unidos, pela falta. Segundo ele, nas aulas os professores suscitam questões e pedem que os alunos se manifestem sobre elas. Não ensinam nenhum conceito: pressupõem que você já os conhece, porque era seu dever estudar todo e qualquer conceito, classificação ou regra previamente. Para a aula vão as suas conclusões. O coitado que tentasse lecionar desse jeito aqui seria acusado de não querer dar aula. Pode anotar.

De minha parte,  penso que uma metodologia híbrida, combinando algumas aulas conceituais e outras, mais de cunho prático, seria um caminho interessante para o curso de direito. Então até podemos ter aulas como as da Profa. Keating, mas elas provavelmente seriam exceção. E só poderiam acontecer se todos os alunos assumissem de verdade o compromisso de se preparar para essas aulas. Se o dever de casa não é feito, as boas iniciativas se perdem.

Modelo n. 2: processo penal

O que vemos no seriado é uma sucessão de chicanas que vão acontecendo de acordo com as necessidades dos julgamentos. Temos a estudante contratada que descobre o daltonismo de uma testemunha apenas porque, ao ver uma foto dela no Facebook usando óculos, decidiu caçar todos os oftalmologistas da cidade para ver se encontrava uma informação importante. Não me perguntem por que revelaram a condição de uma paciente para ela: isso é falha de roteiro. Outro estudante se envolve sexualmente com um nerd frustrado para usar seus serviços de hacker, ou seja, estímulo ao mau caratismo profissional, especialmente porque se trataria de prova ilícita. Tudo depende do último lance do julgamento, em uma sucessão de surpresas.

Aqui vai a sua decepção: o processo penal brasileiro, amarrado em fórmulas quase ritualísticas constantes da legislação, não permite tamanhas surpresas. Não existe testemunha desconhecida, documentos de última hora, vídeos cujo conteúdo somente será conhecimento em pleno julgamento, etc. Aqui, as provas devem ser apresentadas com antecedência, para sofrer o contraditório, que é uma garantia constitucional do acusado. Sobretudo em se tratando de tribunal do júri, o desrespeito ao prazo impede a apresentação da prova no julgamento. Se ela for considerada indispensável, o julgamento deve ser adiado.

Portanto, não espere ver um julgamento quase naufragado para um dos lados em que, inesperadamente, aparece uma testemunha dizendo "Luke, eu sou seu pai!" e provocando uma reviravolta. Ou qualquer tipo de documento. Embora, como tudo na vida, haja a margem do imponderável, não é assim que funciona, portanto as chances de um tumulto emocional para quem está apenas assistindo são bem menos prováveis. Chato? Não diria. Há razões plausíveis para esse esforço por controle.

***

No que diz respeito ao seriado em si, trata-se de um bom programa, embora o pequeno contestador que existe em mim tenha algumas ressalvas. A trama é ágil, em ritmo de suspense e de reviravoltas, que é exatamente a formulazinha padrão do cinema e da TV para ganhar público porque... funciona. Aqueles que buscam apenas entretenimento precisam de uma linguagem dramatúrgica simplificada, o que pode incomodar paladares mais exigentes. A mim, pessoalmente, incomodaram muito as cenas em flashback para não perdermos nenhum detalhe (prefiro que a estória seja bem contada; quem não percebeu os detalhes, azar) e o tom novelesco, dado pela dramaticidade dos problemas pessoais da protagonista e de outros personagens, além de uma certa infantilidade em algumas soluções dos roteiristas ― como o caso do daltonismo, antes citado. Aliás, no segundo episódio, a absolvição do réu com base em seus conhecimentos de anatomia, por ser caçador, me soou ridícula: nada impede que o perito, em um momento de fúria, mate a vítima de maneira brutal e descuidada. São essas coisas que aborrecem.

Nada que, no entanto, mate o charme do programa. Vamos assistindo para ver no que dá. Mas nada de comparações insensatas. Como já dizia o grande Herbert Viana, "a vida não é filme, você não entendeu". Sua aula não é sobre como se safar de um assassinato. E isso não é algo ruim.

1 Informações da Wikipedia, mesmo: https://pt.wikipedia.org/wiki/How_to_Get_Away_with_Murder

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