domingo, 27 de dezembro de 2015

Sessão de psicanálise IV: Se amor e sexo se resumem a isso

Preciso tirar o chapéu para o sexto episódio da segunda temporada de Psi, originalmente exibido em 8 de novembro último. Não se trata de simples entretenimento, mas daquele tipo de programa que, ao terminar, inspira naturalmente uma reflexão pessoal, que por sua vez conduz a uma necessidade de instruir outras pessoas. Por isso, peço aos interessados que leiam esta postagem até o final. Mas fiquem desde logo cientes de que toda ela é um grande spoiler. Para me fazer entender, preciso destacar detalhes que revelam o roteiro totalmente. Ao final, creio que entenderão meus motivos.

"O que aconteceu com você?" foi dirigido pela premiada cineasta Laís Bodanzky, que tem em seu currículo filmes como Bicho de 7 cabeças e Chega de saudade. Na trama, vemos uma jovem de 23 anos muito machucada dizer a um policial que fora violentada. Mais tarde, no hospital, ela sussurra as mesmas palavras ao protagonista, Carlo Antonini: "fui violentada". É assim que o obstinado psicanalista entra em seu caminho e começa a investigar o que ocorreu.

A primeira coisa que me chamou a atenção no episódio foi a explicação sobre o motivo que levou à morte da moça. Por ter dito ao policial que fora estuprada, ele repassou essa informação aos médicos e então a garota acabou em uma maca, no corredor, aguardando atendimento para vítimas de estupro. Nenhuma investigação clínica foi feita, mesmo a paciente estando fraquíssima e quase inconsciente (ou seja, não podia prestar esclarecimentos). É Antonini, com sua fiel escudeira Valentina, ambos médicos também, que identifica uma hemorragia interna. A garota é levada para uma cirurgia de emergência, porém morre. Ao final, Antonini comenta o absurdo: se a moça chegasse inconsciente e ninguém explicasse nada, talvez fizessem uma ressonância e a morte poderia ser evitada! Coisas de hospital público, acrescento.

O legista explica a Antonini que não há nenhum sinal de estupro. A morte fora provocada por uma hemorragia interna devido à lesão de órgãos, p. ex. um baço rompido. Houve uma tremenda ação contundente, porém não um espancamento. Não há sinais de agressão tampouco de defesa. Em off, o legista aponta sua conclusão: suicídio. Nosso inquieto psicanalista fica ainda mais agitado e chega ao jovem psicólogo que vinha tratando Lara, a suicida, de sua depressão. O rapaz fica arrasado ao saber que sua primeira paciente se matou.

Juntos, Carlo Antonini, Valentina e o jovem psicólogo mergulham na vida de Lara e percebem que, para ela, o abuso sexual era uma "narrativa fundamental", ou seja, a garota se definia pelos abusos sofridos. Fora a primeira informação dada ao terapeuta: abuso sexual aos 7 anos. A essa altura, qualquer pessoa minimamente informada já pode formular hipóteses razoáveis. Afinal, todo mundo sabe que a esmagadora maioria dos casos de abusos sexual contra crianças ocorre dentro de casa. Os algozes, quando não são parentes, figuram entre as pessoas mais próximas e supostamente de confiança.

Meu palpite se confirma: o abusador era o pai. Não um padrasto, primo ou aparentado, mas o próprio pai. Sem surpresa, vemos que a mãe sabia de tudo e, por omissão, permitiu que os abusos se repetissem. A cena em que ela explica o ocorrido a Antonini, que a recebera achando que poderia ajudá-la a enfrentar o luto, é perturbadora. O marido bebia e, ao chegar em casa, ébrio e fedido, queria sexo. A mulher sentia nojo e, para se livrar disso, passou a colocar a filha na cama do casal. Por algum tempo, funcionou, mas depois o homem começou a molestar a criança.

Como toda pessoa que pratica ou concorre para abusos sexuais, as justificativas logo vêm à tona. Era rápido. Ele logo dormia. Acho que só se esfregava nela, mas nunca virei para olhar. Ela nem entendia. Eu achava que ela nem se lembraria, porque eu não me lembro de nada de minha vida com aquela idade. Uma frase, porém, é reveladora: "eu ficava aliviada, porque não era comigo". Nesse momento, você, telespectador, sente raiva, mas não é fácil definir o contexto. Existe má-fé e uma colossal covardia ali, mas também burrice, o que chega a ser ainda mais desconcertante: será que aquela mulher tinha mesmo capacidade de compreender o que é um abuso sexual? Nós temos? E se não temos, isso não seria ainda mais apavorante?

O fato é que, um dia, sem aviso prévio, Lara se matou. Estava a caminho de uma consulta médica, mas em vez de entrar no consultório, pulou do alto do prédio. Antes, pichou uma parede com os dizeres "Desculpe, mãe, mas não aguento mais". Ela se desculpou com a mãe. Nada sobre o pai, que ainda estava no mesmo lugar.

Aí chegamos ao ponto. Antonini especula que, no dia do suicídio, algo específico aconteceu. Mas não precisava ser nada grandioso. Ele explica que, por ter sido estuprada tão cedo e pelo pai, Lara provavelmente acreditava que amor e sexo se resumiam àquele tipo de relação. Ao abuso. Não havia como confiar em ninguém. E então bastaria que um homem qualquer cruzasse o seu caminho e, por meio de uma cantada, um gesto simples, uma provocação, algo que evocasse o pai, ele a fizesse concluir que, de fato, não havia escapatória. O mundo era aquilo, mesmo. Sem esperança, para que viver?

Foi aí que me pus a refletir. Será possível que eu ou você, peões aleatórios do xadrez da vida, a partir de um único comentário, desses que acreditamos totalmente inócuos, meras brincadeiras, possamos nos tornar a causa pretexto de um suicídio? Ou de outras tragédias? Afinal, nada sabemos acerca de quem passa ao nosso lado na rua. Aquela palavra que para nós é nada pode ser o estopim de uma revolução íntima, de proporções inimagináveis, para aquele desconhecido que nunca vimos nem tornaremos a ver. A perspectiva é assustadora. E nos conclama a pensar em nossa profunda responsabilidade em relação às pessoas em redor, por mais estranhas que nos sejam.

Não sei exatamente como podemos lidar com isso. Obviamente, o objetivo não pode ser criar novas neuroses. Não posso temer minhas palavras e ações a ponto de dosar milimetricamente cada uma delas. É impossível e enlouquecedor. Mas posso agir de boa-fé. Posso tentar não ser leviano. Posso não fazer intervenções desnecessárias. Posso tentar não invadir espaços. Porque nunca saberemos se aquela sombra que vagueia por perto não seria um pote até aqui de mágoa, esperando uma mera desatenção para desaguar, no pior sentido.

Antecedentes no blog:

  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/04/sessao-de-psicanalise.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2014/06/sessao-de-psicanalise-ii-depois-do-fim.html
  • http://yudicerandol.blogspot.com.br/2015/11/sessao-de-psicanalise-iii-segunda.html

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