terça-feira, 8 de abril de 2014

A escola mandará um beijinho no ombro?

Esta manhã escrevi isto: 

Repercute pela internet afora o caso da prova que citou trecho da canção "Beijinho no ombro", de Valesca Popozuda.


Como sempre, o caso tem sido tratado com reducionismos propositais e tolos. Somente hoje, por meio desta reportagem, fiquei sabendo que a questão é verdadeira (sempre temos que duvidar do que divulgam na internet); e que foi aplicada em uma prova de Filosofia de uma escola de ensino médio do Distrito Federal (supus, apressadamente, que tivesse sido em um concurso público).

Considero a questão um erro. Por causa da Valesca Popozuda? Não. Por uma razão didática muito clara: até onde percebo, o questionamento se resume ao próprio teor do texto, mais ou menos como ocorre em provas de literatura, quando se cobra do aluno que reconheça o texto em si. Mas não há, ali, nenhum pedido de interpretação, apenas de memória. Quem não conhecesse o hit, não teria como responder.

Disse a escola que o professor se justificou afirmando que a questão tem a ver com um conteúdo trabalhado em sala de aula. Se assim for, ela se torna viável, embora não saibamos, pelo motivo elementar de que não assistimos à dita aula. Mas mesmo assim, penso, a questão não se salva. Porque o tal conteúdo trabalhado em sala não deve ter sido mera leitura do texto; o professor certamente o aplicou a algum contexto. Ele poderia perguntar, p. ex., qual o sentido da expressão "é só tiro, porrada e bomba".

Além disso, o professor exagerou ao chamar a cantora de "grande pensadora contemporânea". Menos. Estar em evidência na imprensa não a torna um parâmetro cultural contemporâneo, muito menos uma pensadora. Com essa atitude, o professor se expôs à ridicularização. Até porque a canção talvez nem tenha sido composta por ela.

O que me parece sintomático é que alunos tenham considerado a questão "estranha" e procurado a direção para se queixar. "Estranha" por quê? Se o professor citasse Chico Buarque teria havido a mesma estranheza? Ou é natural e até louvável citar Buarque, porque todo mundo acha lindo e ninguém discute? Mas se cito um cantor popular, surge toda essa celeuma, a ponto de a escola dizer que não haverá represálias contra o professor. Jesus, represália?! Por que ele mereceria punição?!

Se formos por esse rumo, terei que concluir que o problema é mesmo preconceito, puro e simples. E aí o que está em jogo não é a competência do professor, sua prática docente, nem mesmo a questão, e sim o hábito de meter o dedo na cara dos outros impondo as referências que elas deveriam seguir.

Inevitavelmente, ponho-me a pensar sobre mim mesmo, como professor de direito penal, podendo citar em alguma prova um sem número de canções, das mais variadas origens, que tratam sobre crime, violência, exclusão social. Não posso escolher pela mensagem, e sim pelo pedigree do artista. Legião Urbana pode, porque é cult. Mas se eu citar um cantorzinho da periferia, vou ser enquadrado?

Santo Deus, que mundo é este?

À tarde, deparei-me com esta matéria sobre a manifestação do professor, que agora ganhou nome: Antônio Kubitschek: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/professor-mantem-versao-de-que-valesca-e-grande-pensadora/

Lida a manifestação do professor, sustento o meu ponto de vista: a questão continua não sendo boa, porque não parece induzir nenhuma reflexão por parte do aluno. Por outras palavras: simplesmente não dá para saber qual foi o conteúdo trabalhado em sala de aula, pela simples leitura da questão. Eu realmente que ficou uma simples provocação à memória. Se ele diz que o aluno não precisava conhecer a letra da canção, então digo que o aluno só acertaria a questão se recordasse o que foi especificamente dito em sala de aula. Não muda muita coisa: memória, portanto.

No mais, a hipótese de preconceito foi formulada não apenas de modo muito parecido ao que escrevi como citando o mesmo compositor.

Sobre qualquer pessoa que cria um "conceito" se tornar um pensador, pareceu-me uma concessão larga demais. E o filósofo que conheço mais de perto, André Coelho, deve pensar de modo análogo, pois sua manifestação no Facebook foi esta:

Sobre a Valesca Popozuda ser uma grande pensadora contemporânea, entendo todo o buzz pró-feminismo e pró-cultura popular, só não concordo, pois acho que o título não se aplica. A meu ver, o título de grande pensador contemporâneo não se aplica nem a Chico Buarque, nem a Johnny Cash, nem a Bob Dylan, nem a John Lennon. Aliás, tenho dúvidas se se aplica a Francis Fukuyama, a Peter Sloterdijk, a Edgar Morin e a Zygmunt Bauman. Sem falar de inúmeros outros cuja maior contribuição parece ter sido apenas a criação de um vocabulário diferente para expressar os lugares-comum da cultura hegemônica ou propor os absurdos mais gritantes travestidos de reflexão profunda. Aliás, que dificuldade e raridade que é hoje pensar (divergir com fundamento, provocar para o novo que amedronta, mas seduz, dar voz às lacunas silenciosas da cultura) numa era em que as próprias condições do pensar parecem constantemente bloqueadas. OK, revendo aqui comigo, vou chegando à conclusão de que talvez eu não seja a melhor pessoa para discutir esse assunto nos termos que querem aqueles que o propuseram.

Em suma, ratifico minhas impressões.

Acréscimo em 14.5.2014: 

Aqui, uma explicação mais detalhada sobre as razões do professor para elaborar a questão: ele realmente queria chamar a atenção.

Um comentário:

Ramon Bentes disse...

Professor Yúdice e Amigo Kenneth, imaginem se fosse a interpretação de uma letra de um grande pensador do axè:
Complete a letra Ae Ae Ae Ae:
a)ê ê ê ê
b)ô ô ô ô
c) u u u u
d) todas as alternativas