terça-feira, 29 de abril de 2014

Reforma do Código Penal XLVIII: incongruência quanto às penas restritivas de direitos

Não são poucas as propostas que a comissão de senadores fez, em relação ao novo Código Penal, que merecem profunda reflexão. Vejamos como foi encaminhada a questão da substituição da pena de prisão por restritivas de direitos, tema de enorme interesse porque estas são o principal instrumento descarcerizador constante da legislação. Afinal, outras alternativas penais incluem penas restritivas em seu bojo.

Interessa, aqui, a disciplina proposta para a substituição, que apresento em duas versões:

Proposta original da comissão de notáveis
PLS 236/2012 após relatório
da comissão de senadores
Art. 61. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem a pena de prisão
quando:
I – aplicada pena de prisão não superior a quatro anos ou se o crime for culposo;
II – o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, salvo:
a) se for infração de menor potencial ofensivo; ou
b) se aplicada pena de prisão igual ou inferior a dois anos.
III – a culpabilidade e demais circunstâncias judiciais constantes do art. 75 indicarem
que  a  substituição  seja  necessária  e  suficiente  para  a  reprovação  e  prevenção  do crime;
IV – nos  crimes  contra  a  administração  pública,  houver,  antes  da  sentença,  a
reparação do dano que causou, ou a devolução do produto do ilícito praticado, salvo comprovada impossibilidade a que não deu causa;
V – o réu não for reincidente em crime doloso, salvo se a medida for suficiente para
reprovação e prevenção do crime.
Art. 55. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem a pena de prisão quando:
I – aplicada pena de prisão não superior a quatro anos ou se o crime for culposo, salvo se gravíssima a culpa;
II – o crime não for cometido com qualquer forma dolosa de violência, salvo:
a) se for infração de menor potencial ofensivo; ou
b) se aplicada pena de prisão igual ou inferior a dois anos.
III – a culpabilidade e demais circunstâncias judiciais constantes do art. 73, sendo todas favoráveis, indicarem que a substituição seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime;
IV – o réu não for reincidente em crime doloso.

A disciplina proposta pelos senadores manteve o cabimento da substituição para condenações de até 4 anos, em se tratando de delitos dolosos, ou independentemente da pena, nos culposos (exceto na hipótese de culpa gravíssima, criada pela comissão de notáveis, porém não para esta finalidade). E acolheu posição consolidada na doutrina, tornando mais clara a possibilidade de substituição, em delitos cometidos com violência contra pessoa, desde que de menor potencial ofensivo. Foi até generosa, ao instituir essa possibilidade para penas aplicadas de até 2 anos.

Por outro lado, foi mais rigorosa ao implantar, no que tange aos crimes contra a Administração Pública, exigência hoje prevista para progressão de regime (reparação do dano, se possível). E principalmente por, em deliberação claramente politiqueira, supervalorizar a reincidência, que é um dos mecanismos repressivos favoritos dos movimentos de lei e ordem. Para os juristas, reincidentes em crime doloso ainda poderiam receber a substituição, mediante prognose de suficiência, o que implica em valorizar o princípio constitucional da individualização da pena. Para os senadores, basta haver a reincidência em crime doloso e a substituição não é mais possível, independentemente do caso concreto.

Tola a deliberação senatorial, porque institui as vedações abstratas. Se o projeto for aprovado como se encontra, já se pode esperar que aconteça o mesmo que houve com a genérica proibição de progressão de regime quanto aos crimes hediondos: uma enxurrada de questionamentos judiciais de inconstitucionalidade, levando a debates muito inconvenientes e à sobrecarga do judiciário. Pior mesmo será se o Supremo Tribunal Federal decidir sustentar essa norma, como tem feito em relação às restrições constantes da Lei Maria da Penha.

A pior parte, contudo, é o novo tratamento dado à prognose de suficiência. A proposta dos juristas não destoa da disciplina atual e permite que o juiz, analisando as circunstâncias judiciais concretamente aferidas no processo, tome a sua decisão: uma pena não prisional seria suficiente? Mas a redação infeliz proposta pelos senadores prevê que todas as circunstâncias judiciais sejam favoráveis. Interpretando o dispositivo literalmente, basta um quesito negativo e a substituição restará inviabilizada. Com isso, o Código Penal projetado se torna a lei mais rigorosa sobre a matéria.

Os senadores parecem desconhecer que dificilmente um réu sofre condenação sem ter nenhuma circunstância judicial desvalorada. Uma ou outra, sempre acontece. Mesmo que isso não implique em aumento de pena, a consequência será um revés gravíssimo, colocando-o sob a necessidade de cumprir pena de prisão. E com isso, mais uma vez, estabelecendo uma vedação abstrata, fulminando o princípio da individualização.

Péssima decisão dos senadores. Péssima. Espero que tenha sido falta de reflexão, mas estou achando que foi de propósito. Para um projeto que se ufana de ser altamente descarcerizador, esta medida é de um contrassenso alucinante.

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