segunda-feira, 28 de abril de 2014

Reforma do Código Penal XLVII: a ironia do Senado

Somente nestes últimos dias pude dar uma olhada no substitutivo do Senado ao PLS 236/2012, que pode se converter no novo Código Penal. Como sabemos, o anteprojeto elaborado pela comissão de juristas sofreu uma saraivada de críticas, algumas contundentes, atacando alguns aspectos técnicos mas, sobretudo, por persistir em uma orientação altamente punitivista.

Consoante escrevi anteriormente aqui no blog, todavia, o meu maior medo eram as emendas dos senadores, porque, sendo políticos profissionais, estariam mais de olho nos dividendos eleitorais de suas ações do que nas consequências de se produzir uma lei ruim. Logo de cara, os religiosos rasgaram novamente a página da Constituição que alude ao Estado laico e começaram a impor suas pautas classistas. Mas além disso, vieram as previsíveis propostas de maior endurecimento da proposta.

Àquela altura, já cientes do teor das críticas que vinham sendo feitas em foros dos mais respeitáveis, a comissão de senadores criada para examinar o anteprojeto redigiu suas considerações finais assumindo uma sintomática postura defensiva. Veja o que eles dizem:

Por fim, alguns dados sobre o Substitutivo final apresentado são importantes: 
a) Há, no Substitutivo, 355 figuras típicas, sem contar causas de aumento ou diminuição ou tipos privilegiados ou qualificados integrantes do mesmo artigo; 
b) Desse total, existem 81 tipos penais cuja pena não excede dois anos, sendo, portanto, de menor potencial ofensivo. Em 7 deles há dispositivos de aumento ou qualificação que elevam a pena para a faixa seguinte; 
c) São 185 crimes os que, na figura básica, admitem o regime inicial aberto e a substituição por pena restritiva de direitos. 24 deles trazem dispositivos de qualificação ou de causa de aumento impeditivos desses benefícios; 
d) Há 126 crimes cuja pena máxima excede quatro anos, obstando o regime inicial aberto e a substituição por pena restritiva de direitos. Em 26 crimes desse grupo, há causas de aumento ou dispositivos de qualificação que elevam a pena para a faixa seguinte (igual ou maior do que oito anos); 
e) Há 45 figuras típicas cuja pena excede oito anos, sem contar tipos dos grupos anteriores que, em razão de causa de aumento ou qualificação, podem alcançar esse patamar.  
Portanto, não se trata de um texto encarcerador. Muito pelo contrário. 52% dos crimes admitem regime aberto e substituição da prisão por pena alternativa. 

O simples número de 355 tipos penais diversos já dá o que pensar, porque é muita coisa, diga-se o que se quiser dizer. E sendo muita coisa, resta comprometida de fato a capacidade operacional do sistema de justiça criminal de dar conta de tudo isso. Mas aí vem o detalhe curioso, provado por estatísticas: muitos dentre os tipos penais existentes não geram ocorrências policiais ou ações judiciais, tornando duvidosa a necessidade de sua existência. E a imensa maioria dos feitos em andamento gira em torno de um bem delimitado e bastante conhecido elenco de delitos (homicídio, estupro, crimes patrimoniais e tráfico de drogas).

Com base nessa realidade, os parlamentares deveriam acolher a advertência de Zaffaroni e considerar a hipótese de uma corajosa descriminalização, suprimindo não apenas tipos penais obsoletos ou claramente insignificantes, mas assumindo estratégias de enfrentamento claramente abolicionistas ou, ao menos, descarcerizadoras. Não foi o que ocorreu, entretanto. Além da manutenção de figuras altamente inconvenientes, como crimes contra a honra e violação de domicílio. Além disso, promoveu intenso aumento das penas originalmente propostas(*).

Consintamos que 355 tipos penais seja um número plausível, diante da reserva de código, que levará à revogação de grande quantidade de leis esparsas. Admitamos isso para poder argumentar. Deles, 81 possuem penas de até 2 anos de prisão, configurando em tese crimes de menor potencial ofensivo. E um total de 185 tipos admitem o regime inicial aberto ou penas alternativas.

A aparente brandura da pena faz os senadores se atreverem a dizer que seu projeto não é "encarcerador". "Muito pelo contrário"! O argumento é que 52% deles admitem pena prisional em regime aberto ou alternativa, além de outras medidas descarcerizadoras, como as previstas na Lei n. 9.099, de 1995.

A provocação cabível é: qual o sentido de se manter um modelo de código penal no qual mais da metade dos tipos configura, desde logo, crimes que admitem penas não prisionais? Não seria mais lógico reconhecer, de uma vez, a inconveniência desse excesso de criminalização e partir para formas alternativas não de apenamento do crime, mas de tratamento do fato? Qual o sentido de manter como crime a mera entrada não autorizada em propriedade alheia, se do fato não redundar em ação danosa concreta? Até porque, se resultar, a consunção fará esse delito ser absorvido por outro, de modo que a violação de domicílio, subsidiariamente, remanesce apenas para situações sem dano efetivo!(**)

No caso dos crimes contra a honra, não poderíamos deslocar o dano para a esfera cível e resolvê-lo por meio de multas ou obrigações de fazer ou de não fazer?

Devemos lembrar, mais uma vez, na esperança de que um dia alguém escute, que se o tratamento penal não for o mais adequado para reagir a certos fenômenos sociais (e como poderia ser?), para usar uma analogia médica bem ao gosto dos movimentos de lei e ordem, mas em sentido contrário, a doença continuaria sem tratamento, de modo que não poderíamos esperar melhora no organismo social. Doente, o corpo continuaria a padecer, enquanto os médicos o submetem a penosos, invasivos e dispendiosos tratamentos inúteis.

Em suma, se o anteprojeto não era bom, o PLS 236 está bem pior, o que explica o esforço de penalistas em tentar salvar a oportunidade de construir uma lei útil para o país, inclusive um apelo ao Congresso Nacional. Mas o problema é que a Câmara dos Deputados é um local ainda menos propício a reflexões sérias. A começar pelo fato de que senadores são 81, porém deputados federais são 513, cada um voltado ao próprio umbigo, tornando mais difícil conquistar a atenção e o respeito do número necessários de adeptos a uma dada causa. Para piorar, o mandato de 4 anos (o de senadores é de 8) torna os deputados mais sensíveis aos custos eleitorais de sua atuação. E este é um ano eleitoral.

Eu não estou nada otimista, lamento dizer.

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(*) Conforme eu dissera desde o começo, a proposta de redução das penas do furto e do roubo não passaria pelo Senado. Mas os senadores se animaram a promover intenso incremento de penas, admitindo tê-lo feito de modo generalizado em matérias como trânsito e meio ambiente.

(**) Na violação de domicílio qualificada (três hipóteses também sem dano concreto), a pena de 6 meses a 2 anos deve ser cumulada com a de eventual violência ou ameaça praticada, o que elimina a consunção, impõe o concurso de crimes e, com isso, confirma a orientação punitivista.

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