Admito que, às vezes, eu mesmo me canso de bater sempre na mesma tecla e de repetir até os mesmos argumentos. Mas se a sociedade permanece estagnada no mesmo lugar, talvez não reste alternativa senão bater na mesma tecla e repisar os mesmos argumentos.
Em fevereiro deste ano, um rapaz foi preso sob acusação de roubo, mas por ter feito trabalhos como ator na TV Globo, seu caso chamou a atenção da imprensa e houve mobilização para provar sua inocência e liberá-lo da prisão, onde permaneceu por mais de duas semanas. Tratei do caso na postagem "Uma questão de cor e mídia", de 26 de fevereiro.
Sábado passado (5 de abril), um rapaz de 18 anos foi preso e um adolescente, apreendido, também sob a acusação de roubo. E mais uma vez o reconhecimento por parte das vítimas se deu sobre aspectos altamente circunstanciais (a roupa). Mas isso bastou para que a liberdade lhes fosse cerceada, sem maiores ponderações. Se houve reconhecimento, então a segregação está justificada. Sem querer, o sistema se trai e deixa claro que, ao contrário do que manda a Constituição de 1988, a prisão continua a ser a regra e não a exceção, como deveria.
Esta distorção se torna ainda mais evidente quando a juíza responsável pelo caso indefere pedido de liberdade alegando que a informação constante dos autos é de que houve o reconhecimento. Assim, sem analisar primariedade, circunstâncias do delito, credibilidade dos indícios e, sobretudo, a necessidade da prisão no presente momento, ela manteve a custódia, embora deferindo pedido de diligência. Pedido do Ministério Público, claro. Em suma, a questão é prender imediatamente, a menos que haja razões veementes para "legitimar" a liberdade, em total menosprezo aos direitos fundamentais. Mas essa é a rotina.
Ao final, o adolescente foi liberado e, hoje, o rapaz mais velho foi solto porque as duas famílias se mobilizaram para provar-lhes a inocência. E aqui está outra distorção absurda do sistema: a acusação é que deveria ter o trabalho de mostrar a plausibilidade da imputação penal. Em vez disso, a acusação apenas aponta o dedo e sua pretensão é desde logo aceita, impondo ao acusado um ônus probatório que foi retirado de suas costas desde o século XVIII, pelo menos.
Os dois suspeitos somente foram liberados, contudo, porque as famílias tiveram a sorte de encontrar imagens de câmeras de segurança mostrando que os dois estavam, com uma diferença de dois minutos, em local diferente da cidade, não havendo tempo hábil de participarem do assalto e ali chegarem. Sua defesa foi centrada na Física, vejam só (esta reportagem explica detalhadamente o caso; vale a pena ver o vídeo). Mas e se não existissem tais imagens ou se elas não tivessem sido cedidas aos familiares? Onde estariam os dois garotos agora? Claro que você sabe. Afinal, somos regidos pela presunção de culpa. Se você apelar para o latinório e disser "in dubio pro societate", tudo está resolvido.
Embora canalha aos extremos, esse tal de in dubio pro societate é o zumbi mais difícil de matar de vez. Quando escuto uma autoridade do sistema de justiça criminal usando esse argumento, preciso conter o meu ímpeto de esfolá-la. Mas o sistema é assim: vive com um delay de dois séculos, pelo menos.
Sou forçado a destacar outro argumento repetitivo que, obviamente, não é casual: você reparou na cor dos jovens acusados? Viu seus familiares? Deu para entender por que acusá-los foi tão fácil e espontâneo? O país é racista, parceiro. E movido por estereótipos. Você ainda insiste em negar isso?
Por fim, os dois episódios aqui relatados mostram por que um sistema de justiça criminal fundado em garantias individuais é imprescindível; é uma questão de civilização. E é o que determina a Constituição de 1988. Mas a tchurma insiste em que direitos humanos é (assim mesmo, com erro de concordância verbal) só para humanos direitos. Idiota, vagabundo e comunista sou eu, que tenho pena dessa raça. E por isso, claro, mereço ser estuprado e assassinado. De preferência, pelo bandido que eu trouxe para morar em minha casa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário