I
Júlia se interessou pela decoração natalina, uma imensa árvore instalada sobre um iglu. Já estávamos de saída, subindo de escada rolante. A cada lanço de escada, ela parava e olhava mais um pouco, o que estava me atrasando e aborrecendo. De repente, ela soltou uma exclamação irritada e me disse que precisávamos falar com alguém que cuida da decoração do shopping. Eu me aproximei e ela disse:
― Veja! ― Apontou, para baixo, um dedo enérgico.
― De que você está falando? ― Perguntei porque ainda não identificara o motivo da reprovação.
― No Polo Norte não existem pinguins!
Olhei melhor a decoração e vi que, em volta do tal iglu, havia estátuas de pessoas vestidas de esquimós (inuit é o termo adequado), ursinhos polares e pinguins (os ursos, por sinal, bem menores do que os pinguins). Júlia ficou furiosa porque, como você bem sabe, no Polo Norte existem ursos polares, porém não pinguins. E no Polo sul existem pinguins, porém não ursos polares. E Júlia, assim como o pai, não tolera esse tipo de erro, uma clara demonstração de preguiça: montaram a decoração em cima de um clichê, sem nenhuma pesquisa.
Só para constar, Júlia aprendeu essa informação em uma das fontes mais ricas de conhecimento para as crianças brasileiras: um gibi da Turma da Mônica. Na estória, Franjinha explicava noções de geografia para a turminha e Cebolinha ficava zoando Mônica, que errava tudo o que dizia, inclusive comentários sobre os aludidos animais.
Também para constar, eu não procurei o SAC para reclamar da decoração. Mas bem que Júlia queria.
II
Júlia pediu para brincar no malsinado iglu. Olhei para a desgraça, lá embaixo, enquanto estávamos a um lanço do guichê de pagamento do estacionamento. Neguei e disse que, com certeza, alguém estava cobrando ingresso para alguma coisa boba.
― Como você sabe que é pago? ― protestou a pequena.
― Ora, porque tudo custa dinheiro na vida ― respondi.
― Isso não é verdade! Será possível que tudo tem que custar dinheiro?! Isso não é certo!
― Mas, infelizmente, minha filha, é assim.
Júlia me lançou um olhar inconformado e percebi que ela queria desafiar o meu argumento. Começou assim:
― A gente paga para nascer?
― Para nascer em si, não. Mas hoje em dia precisamos de dinheiro para pagar um plano de saúde e, com isso, ter direito a consultas médicas, exames, parto. Também precisamos comprar remédios, etc.
Por não retrucar, percebi que ela não tinha argumentos para aquela questão. Então apelou para o que, provavelmente, seria o seu trunfo:
― A gente paga para morrer?
― Nós precisamos de dinheiro para comprar um caixão e o lugar onde a pessoa será enterrada. E se quisermos algum tipo de cerimônia, isso custa dinheiro também.
Júlia ficou visivelmente amuada. Talvez, aos 7 anos, ela finalmente esteja começando a entender que a vida tem ônus que, até aqui, ela ignorou. E, admito, em geral sou muito seco para lidar com questões práticas. Fui criado por uma mulher que, com a melhor das intenções, deixou pouco espaço para a fantasia. Eu, pelo menos, deixo que minha filha seja simplesmente uma criança, então mudei o rumo da prosa, até porque tinha o meu próprio trunfo: um presentinho, que obviamente, também custou dinheiro para mim. E, para Júlia, a submissão a algumas ordens, tais como dizer que todos os personagens de My little pony são horrorosos. O que uma criança não faz por um presente?!
4 comentários:
Mas os personagens de my litte pony são lindos!!! hahahahahahahahah!!
Júlia foi dominada pelo desejo de ganhar o livro ontem mesmo e disse exatamente o oposto do que pensa! Ahahahahahah!!!
Manda logo o currículo dessa guria para a empresa que monta essas alegorias natalinas. É emprego certo!!!
Kenneth
No meio disso tudo, ainda temos que conviver com a maldita ilusão chamada Papai Noel. EU ODEIO ESSE VELHO FRAUDULENTO!!!!!!!!
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