segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Bicicletando de salto alto

O imbróglio começou assim: pretendendo criar um verdadeiro sistema municipal de corredores específicos para o tráfego de bicicletas, a prefeitura de São Paulo implantou uma ciclofaixa ao longo de uma importante rua de Moema, bairro nobre daquela capital. Em meio à eterna luta entre os amantes do automóvel e aqueles que defendem a democratização da cidade, surgiu a dona de uma loja, com a mentalidade típica do empresariado e da classe média brasileiros. Objurgou a ciclofaixa dizendo que suas "clientes milionárias, que usam salto alto", jamais iriam a sua loja de bicicleta e reclamariam de ter que estacionar seus carros importados mais longe. O mais longe, diga-se de passagem, são apenas alguns centímetros, como você pode ver na imagem abaixo.

Foto: Nelson Antoine,
obtida no Portal G1
 Como o brasileiro é um grande pândego, a reclamação da empresária-perua gerou uma engraçada resposta dos ciclistas e moradores que defendem a ciclofaixa. Ontem, uma manifestação batizada de "milionárias de bike" ocorreu no bairro, reunindo homens e mulheres (e homens vestidos de mulheres) que pedalavam, usavam salto e tomavam alguma coisa que diziam ser champanhe.
Está em jogo, nessa situação, uma antiga e intensa luta por espaços nas grandes cidades, embate que, como é previsível, tem sido vencido por quem dispõe de maior poder econômico. As cidades têm sido pensadas, cada vez mais, em favor da circulação de automóveis particulares. Não se privilegia o transporte público e se menosprezam pedestres e ciclistas.
Aliás, a má educação e a síndrome de realeza que assolam o brasileiro provocam uma absurda discriminação com base em sinais exteriores de riqueza. Você já era mal visto se entrasse numa loja com roupas simples; agora você também precisa possuir um carro. Em caso contrário, do dono da loja ao mais humilde vendedor faltará condescendência com o pobrinho.

Essa parente do Ozzy Osbourne é provável
moradora do bairro e mostra a sua desculpa
esfarrapada para defender a própria conveniência
(Foto: Lucas Lima/UOL)
 O engraçado, para não dizer trágico, é que antigamente o brasileiro achava chique copiar os hábitos europeus; hoje, ignora-os (ao menos os bons). Na Europa, é cada vez mais comum o uso de bicicletas e já existem em várias cidades o serviço de aluguel de carros. Imagine se um brasileiro alugaria um serviço desses! Seria logo tachado de coisa de pobre. Mas para não dizer isso, inventariam desculpas esfarrapadas, como razões de higiene ("não sei quem andou no carro antes de mim"). E enquanto os estadunidenses abandonam sua paixão por carros enormes e beberrões, rendendo-se aos pequenos veículos, mais econômicos e fáceis de estacionar, o crescimento econômico do Brasil leva ao caminho oposto.
Mas embora eu queira ser a favor da ciclofaixa e louve a iniciativa da prefeitura paulistana, não se pode negar que a simplória linha vermelha foi implantada de qualquer jeito. Note que é muito estreita, suficiente para apenas uma bicicleta de cada vez. O estacionamento continua permitido, não mais junto ao meio-fio e sim junto à ciclofaixa. Com isso, os carros param numa posição estranha, literalmente no meio da rua. Segundo moradores, em uma reportagem que vi ontem, motoristas desavisados param atrás, pensando que o carro da frente está apenas parado e não estacionado. Ficam estressados e começam a buzinar, acabando com a antiga tranquilidade do bairro.

Foto: Lucas Lima/UOL
 Sem dúvida, há risco de acidentes, tanto envolvendo os carros parados quanto envolvendo os ciclistas. Basta uma porta aberta de repente para o pior acontecer. Em suma, a ideia é ótima, mas a execução, bisonha.
Seja como for, o episódio está rendendo uma leva de discussões sobre a cidade que os paulistanos querem. E com isso vem à tona o egocentrismo característico dos mais abastados, que pode ser percebido nesse cartaz ao lado. Para o morador, uma política urbana deve ser elaborada com base em simples conveniências, inclusive as meramente hipotéticas e transitórias, como reformar a casa. Então não podemos intervir na rua por causa da caçamba de entulho? Ê povinho sub-desenvolvido!

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