segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Abandono intelectual: direito à educação através da criminalização

O crime de abandono intelectual está previsto no artigo 246 do Código Penal e ocorre quando o pai, mãe ou responsável deixa de garantir a educação primária de seu filho. De acordo com o o juiz Leandro Cunha Bernardes Silveira, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a criminalização da conduta tem como principal objetivo coibir a prática e garantir que toda criança tenha direito à educação.
Durante audiência com pais e mães de jovens que abandonaram a escola, o juiz afirmou que, quando é constatada a ausência de autoridade dos adultos sobre os filhos, é promovido um trabalho para reafirmação da autoridade familiar. Nos casos em que não há qualquer explicação, continuou ele, os pais são informados sobre a possibilidade de criminalização da conduta e da aplicação de penas como a prestação de serviços à comunidade.
Leandro Cunha Silveira disse que três são as causas mais comuns de evasão escolar: a falta de controle dos pais, a contratação do jovem por alguma empresa e a influência do tráfico de drogas. Um exemplo prático registrado na audiência envolveu uma mãe que classificou o filho como boa pessoa, mas lamentou que más companhias o tenham desestimulado a estudar. O juiz determinou que ele seja matriculado em outro colégio e garantiu ajuda de órgão público à família.
A audiência faz parte do Programa Justiça na Escola, que desde janeiro promove o contato dos estudantes com o Judiciário. O objetivo é levar noções de cidadania para os alunos e permitir a discussão de temas como bullying, violência nas escolas e tráfico de drogas. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-ES.  
Sobre o programa "Justiça na Escola" (cf. site do Tribunal de Justiça do Espírito Santo):

O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo em conjunto com o Governo do Estado e a Secretaria de Educação (SEDU) instituíram em Janeiro de 2013 o Programa Justiça na Escola com o objetivo de promover um contato direto dos estudantes com o Poder Judiciário no propósito de levar noções de cidadania e justiça para alunos do ensino fundamental da rede pública, preparando os futuros cidadãos para agir de forma consciente.
A proposta do programa é debater temas como combate às drogas, bullying, violência nas escolas, evasão escolar, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e cidadania, com a participação de juízes, professores, educadores, técnicos em psicologia e serviço social, alunos e pais e demais interessados. Por meio dessas discussões, busca-se estimular o trabalho articulado entre as instituições de Justiça e de Educação.
Objetivos:
· Indicar uma série de medidas sequenciais a serem adotadas para evitar/reduzir a evasão escolar, verificadas as peculiaridades locais envolvendo cada Município/Comarca;
· Sugerir que a questão da evasão escolar seja inicialmente tratada de forma coletiva, antes do encaminhamento individual dos casos, diante da quantidade significativa de alunos evadidos;
· Propiciar um incremento da atuação da rede de atendimento na esfera da evasão escolar, motivando-a, tornando a Vara da Infância e Juventude parceira dos demais atores;
· Contribuir para que a rede possa trabalhar de forma autônoma, mas com o acompanhamento, monitoramento e fiscalização do Poder Judiciário;
· Compreender as causas da evasão escolar para possibilitar a elaboração de um plano de trabalho em cada escola, em razão das demandas e problemas a serem identificados.
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Crime de abandono intelectual (CP, art. 246): "Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena — detenção, de 15 dias a 1 mês, ou multa."

O tipo de abandono intelectual é daqueles que não deveria continuar existindo. É um grande exemplo do modelo punitivista exacerbado que vivemos neste país, o qual busca no direito penal a solução para mazelas sociais. Além de ser, formalmente, manifestação de criminalização em prima ratio, traz-nos um instigante desafio: se os pais omissos fossem punidos com prisão, quem se responsabilizaria pelos menores já em situação irregular? Não teríamos um agravamento do problema?

Sim, eu sei que se trata de uma infração de menor potencial ofensivo, portanto eventual condenação implicaria em outro tipo de penalidade, p. ex. multa, o que implica em subtrair à família os recursos, provavelmente já escassos, de que depende para sua subsistência. E se pensarmos em outra espécie, p. ex. uma prestação de serviços à comunidade, isso de qualquer modo terá, como consequência mínima, a perda da condição de primário, dificultando a colocação do condenado no mercado de trabalho, se for o caso.

Obviamente, esses efeitos se manifestam em qualquer caso e não podemos pensar em condenação penal indolor. Mas é justamente esse o problema: não estamos falando de criminosos sanguinários, e sim de pessoas que não colocaram seus filhos na escola, muitas vezes porque, sendo elas mesmas indivíduos sem instrução escolar, simplesmente não foram orientados sobre a real necessidade da educação.

O interessante é que. lendo a matéria e a identificação do programa, fica evidente que os esforços para reverter o problema da evasão escolar não são penais. O que o poder público está tentando é o certo: juntar-se às famílias, com apoio de uma rede profissional multidisciplinar, para atacar o problema na origem. Direito penal para quê? Para dificultar ainda mais uma solução? As previsões oriundas do direito de família já não são suficientes? Eu creio que sim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Yudice, mas qual é sua sugestão para os pais que não matriculam os filhos ao menos na educação básica, mesmo que exista bolsa familia para incentivo, ameaça de destituição de poder familiar (que para pais desidiosos é um prêmio, já que o dever cuidado dos rebentos é passado para outra pessoa ou Estado) e a multa por infração administrativa prevista no ECA é inexequível porque o pai omisso/desidioso geralmente não tem renda para tanto? Me desculpe, mas o pai que deixa de matricular o filho ele está condenando o mesmo à miséria e ignorância, expondo-o à criminalidade, enfim, tirando o futuro do mesmo, sem que a criança possa se defender de um tipo de criminoso deste laia. Para mim, deveria ser como a pensão alimentícia: 3 dias para matricular ou justificar, passado o prazo, mantendo-se a inércia: cadeia. E isso vale também para os homens (pais) que deixam tudo nas mãos da mulher como se só esta tivesse a obrigação de correr atrás da educação formal do filho. Eu digo isto, porque estou cansada de ir em audiências da Infância e Juventude ou do Conselho Tutelar,os pais serem advertidos (pois quando chega nesta fase, já ultrapassou a fase de conscientização) e depois de alguns tempos a criança/adolescente permanece fora da escola. Para mim, a conduta merece ser criminalizada porque a educação básica é um direito fundamental da criança e adolescente, uma conduta equiparada a deixar de dar água ou alimento, tamanha a sua importância para o pleno desenvolvimento de um ser humano. Por isso, não dá para aceitar em pleno seculo 21 o cidadão desconhece a obrigação de matricular seu filho/pupilo na escola.

Yúdice Andrade disse...

Cara anônima das 17h24, concordo com todas as suas premissas e juízos de valor, mas não com a sua conclusão. De modo algum podemos continuar a sustentar a obsessão do brasileiro por punição. Decantado por Gilberto Freyre como um povo naturalmente bom e generoso, o brasileiro na verdade é um povo cruel, que continua a supervalorizar a tradição católica de imposição do máximo sofrimento para qualquer pecado. Você mesma disse: não é qualquer pena, é "cadeia".

Entenda que, sim, educação é um direito fundamental e sua ausência nega, à pessoa, a possibilidade de um futuro, porque limita o próprio ser humano. Logo, o abandono intelectual é mesmo uma conduta gravíssima, mas de onde é que as pessoas tiram essa convicção de que punição resolve alguma coisa, meu Deus? De onde?

Naturalmente, como todo problema difícil, este também tem uma solução fácil, que é a errada. Por não ser versado em políticas públicas sobre educação infantil, confesso que não sei quais seriam os mecanismos mais adequados para compelir a matrícula dos infantes. Mas, desde logo, ocorre-me ao menos uma ideia.

Amiga minha relatou que, em Curitiba, onde vive há alguns anos e onde teve o seu bebê, foi surpreendida com a chegada inesperada, em sua casa, de agentes de saúde da família, que foram verificar como estava a criança. Por que isso aconteceu? Porque o parto foi comunicado a um sistema de assistência, que acionou os agentes de saúde do bairro onde ela mora e estes cumpriram sua obrigação de visitá-la, com eficiência e gentileza. Desacostumada de medidas como essa no Brasil, minha amiga chegou a pensar que era um golpe! Na verdade, era o Estado tomando conta das pessoas. Ela elogiou muito a assistência que recebeu.

Detalhe: a família dela tem plano de saúde e o parto sequer ocorreu na rede pública. Mesmo assim eles foram visitados, porque se trata de uma política universalizada. Onde há uma criança, os agentes devem ir.

Se é uma sugestão prática que você me pede, então podíamos pensar em uma política pública com esse perfil: a partir da comunicação de nascimento de uma criança, o próprio Estado poderia, utilizando recursos elementares da informática, monitorar a matrícula dessa criança. Caso ela não fosse feita espontaneamente, o Município - a quem compete a gestão da educação infantil - promoveria a matrícula de ofício, em uma escola próxima à residência da família e se valeria de agentes para as devidas comunicações e advertências. Em caso de faltas, os agentes entrariam em ação de novo.

Muitas vezes, os pais são pessoas tão humildes que, eles mesmos, não compreendem o papel da educação. Se esclarecidos, mandam os filhos à escola. Não necessariamente é má fé. Por essas e inúmeras outras razões, não concordo e jamais vou concordar com a criminalização.

Permita-me dizer, ainda, que toda proposta de criminalização chega sempre com uma carga de desvalor pessoal elevada e isso se percebe em seu comentário, quando afirma que a destituição do poder familiar seria um prêmio para certos pais. Sim, eu sei que isso acontece. Aliás, como diz minha esposa, devia haver uma espécie de carteira de habilitação para o sujeito ser pai ou mãe. O problema é a generalização que o texto sugere, como se toda falta de matrícula fosse uma desídia oriunda de pais que preferiam não ter qualquer encargo.

Se queremos pensar em uma solução, creio que ela começaria com um estudo sério, que respondesse a seguinte questão: por que, afinal, as pessoas deixam de matricular seus filhos na escola, havendo vagas?

Desconhecendo a resposta a essa pergunta, não poderíamos fazer muita coisa, penso.

Grato por suas ponderações, educadas e preocupadas, próprias de quem tem conhecimento pessoal do tema. Se quiser esclarecer de onde vem essa experiência, agradeço. Fico à disposição para prosseguimentos.