terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Pior do que o absurdo

A discussão sobre a redução da maioridade penal está sempre na ordem do dia e, claro, em geral tratada sob os mais ridículos e estúpidos argumentos (sim, para ambos os lados). Mas confirmando a ideia de que tudo que é ruim pode ficar pior, deparei-me agora com uma enquete do Senado acerca do Projeto de Lei n. 147, de 2013, que propõe... acabar com a maioridade penal!

Duvidei que pudesse ser apenas isso, mas o fato é que o projeto só tem mesmo dois artigos, o primeiro revogando o art. 27 do Código Penal e o segundo, cláusula de revogação da própria lei. Resta, assim, examinar a justificativa dessa preciosidade jurídica:

O presente projeto de lei tem como objetivo revogar o art. 27 do Código Penal, com o objetivo de excluir a idade como fator de inimputabilidade. 

O Código Penal, no que se refere ao fator idade, adotou o critério puramente biológico na aferição da imputabilidade penal ou da também chamada capacidade de culpabilidade. Nesse caso, a inimputabilidade ocorre em virtude da presunção legal de que os menores de 18 anos não gozam de plena capacidade de entendimento que lhes permita imputar a prática de um fato típico e ilícito, não se fazendo, assim, a verificação dos elementos intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato) e volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). 

A fixação do parâmetro de 18 anos como fator de imputabilidade decorreu de razões de política criminal, por meio da qual se considerou que o jovem abaixo dessa idade não podia estar sujeito à persecução penal pela prática de crime, mas sim a medida sócio-educativa estabelecida em legislação especial.

O primeiro Código Penal brasileiro de 1830 fixou a idade de imputabilidade plena em quatorze anos, prevendo um sistema bio-psicológico para a punição de crianças entre sete e quatorze anos. Por sua vez, o Código Republicano de 1890 estabeleceu que era irresponsável penalmente o menor com idade até nove anos, devendo o maior de nove anos e menor de quatorze anos submeterem-se à avaliação do Magistrado. 

Posteriormente, a Lei Orçamentária de 1921 revogou esse dispositivo do Código Penal de 1890, tratando, já por motivos de política criminal, a questão da menoridade penal, ao estabelecer a inimputabilidade dos menores de quatorze anos e o processo especial para os maiores de quatorze e menores de dezoito anos de idade. 

Finalmente, com o advento do Código Penal de 1940, fixou-se o limite da inimputabilidade aos menores de dezoito anos, tendo sido adotado o critério puramente biológico, em que se presume absoluta falta de discernimento do indivíduo menor de dezoito anos para o cometimento de crimes, estando sujeitos à legislação especial. A Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, ao reformar a Parte Geral do Código Penal, manteve a imputabilidade penal aos 18 anos, observando assim um critério objetivo, que foi recepcionado pelo art. 228 da Constituição Federal. 

Atualmente, essa presunção absoluta, que o jovem com idade inferior a 18 anos não possui capacidade de entender o caráter ilícito de seus atos e de determinar-se de acordo com esse entendimento, tem gerado revolta na sociedade brasileira, que presencia, quase que diariamente, a prática de diversos delitos penais por crianças e adolescentes, valendo-se, inclusive, da impunidade que a sua condição particular lhe proporciona. 

Desde a definição da idade de 18 anos pelo Código Penal de 1940, a sociedade se modificou. Os jovens ingressam cada vez mais cedo na criminalidade, inclusive na prática de crimes mais violentos. Os adolescentes infratores não são mais apenas usados por quadrilhas criminosas em razão de sua inimputabilidade, mas sim participam dessas organizações, até liderando várias delas. 

O modelo atual, de aplicação da legislação especial (Estatuto da Criança e do Adolescente), que determina a aplicação de medidas sócio-educativas a esses jovens, leva a uma situação de verdadeira impunidade. Na grande maioria dos crimes, o jovem que o pratica responde em meio aberto ou com liberdade assistida, sendo acompanhado por um assistente social e tendo direito de participar de cursos profissionalizantes, tudo à custa do Estado. 

Nos casos de crimes mais graves ou de reiteração criminosa, quando é aplicada a medida de internação, onde os adolescentes são privados da liberdade, o tempo máximo de duração é de 3 (três) anos, com revisão obrigatória, no máximo, a cada 6 (seis) meses. 

Com a evolução da sociedade, por meio de avanços tecnológicos e sociais, que estimulam cada vez mais precocemente o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, o jovem de hoje é muito diferente daquele que vivia no ano de 1940, quando a maioridade penal foi estabelecida em 18 anos. Assim, atualmente, o adolescente é capaz de entender o caráter ilícito de um ato e escolher entre praticá-lo ou não. 


Diante disso, propomos a revogação do art. 27 do Código Penal, com o objetivo de excluir a idade como fator de inimputabilidade.

Engasgado com a sucessão de sandices, tive que me esforçar para chegar ao fim da leitura, quando então encontrei o nome da peça que propôs esse nojo. Sem surpresa, topei com Magno Malta, uma das criaturas cuja presença no Senado mais me causa espécie, indignação, vontade de fugir correndo.

Várias coisas poderiam ser ditas desta imbecilidade colossal que é o PLS 147/2013. A primeira, que não adianta revogar o art. 27 do Código Penal se o art. 228 da Constituição permanecer como está. Trata-se de um erro tão primário e gritante que está valendo exonerar todos os assessores do senador. Mas a leitura dessa asneira supratranscrita revela, ainda, outros desatinos:

  • A já esperada tolice de definir imputabilidade penal com base, tão somente, em capacidade discernimento, quando ela também exige capacidade de autodeterminação. As duas menções a esta última mais não fazem do que repetir o texto da lei ou a redação exígua de qualquer manualzinho, o que sugere absoluta ausência de reflexão sobre o conteúdo e o sentido da norma. Magno Malta, que não possui nenhuma formação específica senão a de pastor evangélico, não é do tipo que conhece (ou entende) um conceito técnico como imputabilidade penal.

  • O senador também não compreende o que é "política criminal", expressão que aparece em sua justificativa como uma espécie de sinônimo de protecionismo quando, na verdade, tudo é política criminal, inclusive o mais extremo punitivismo.

  • A justificativa alude à revolta da sociedade brasileira, informação que é presumida e não comprovada. Mas mesmo que fosse real, não é óbvio que legislar sobre a revolta constitui comportamento perigoso? Isso não recomendaria especial cautela na proposição e encaminhamento das políticas públicas?

  • Outra presunção não comprovada é a de que adolescentes lideram organizações criminosas. Certamente isso aconteceu aqui e ali, mas a justificativa dá a entender que isso virou rotina, um fenômeno tão comum que justifica conceber-se todo um sistema repressivo baseado em tais fatos. Estratégia comum dos loucos: legislar sobre a exceção.

  • Distorcendo os fatos, para enganar o público, Malta afirma que, na "grande maioria dos crimes", os adolescentes recebem medidas socioeducativas não privativas de liberdade, o que geraria sensação de impunidade e estimularia novos ilícitos. Omite o senador, com certeza dolosamente, que a "grande maioria" dos atos infracionais é composta por ações menores, mas ele induz o leigo a acreditar que o jovem infrator é, em sua maioria, assassino, latrocida, estuprador. Ora, se a maioria dos atos infracionais não envolve violência contra a pessoa e corresponde a tipos penais com penas menores, como criticar que os responsáveis não sejam encarcerados? Não é para ser! Mesmo em se tratando de adultos.

  • Malta também omite, é claro, a situação em que vivem os adolescentes submetidos à medida de internação e a absoluta violência inerente ao sistema. Também finge que criminalidade não tem causa alguma além da vontade individual.

  • Tão cínica é a justificativa que o senador não se esqueceu de criticar o fato de que o adolescente infrator tem direito a acompanhamento por assistente social e a cursos profissionalizantes, "tudo à custa do Estado"!!! Mas o que essa criatura espera, então? O dinheiro "do Estado", que na verdade é nosso, deve ser empregado para quê, então? Para sustentar um Congresso Nacional parasitário, vergonhoso, que tem metade dos membros respondendo a algum tipo de acusação de improbidade, inclusive ações penais? Ou para torrar em obras faraônicas que fazem a alegria dos empreiteiros? Mas para política pública não pode haver dinheiro. Melhor seria, portanto, que o homem de Deus propusesse a pena de morte, de uma vez. Porque prisão sem assistência alguma pode ser pior do que morrer.
Desculpem subir o tom desse jeito, mas é má fé demais. Magno Malta me enoja. Não há dia que eu não lamente haver, neste país, gente que permita a um ser desses ocupar uma vaga no Senado. Não à toa, não conseguimos melhorar enquanto país, enquanto povo.

PS — Ah, sim: sem surpresa, constato que, dos 2.911 internautas que já votaram na enquete do Senado, 80,4% se disseram a favor da proposta. Claro. Viram o que era, votaram a favor, usando a técnica de sempre: agiram sem pensar, movidos por uma convicção irracional e que não aceita ponderações. Com brasileiros assim, ficam explicados os Maltas da vida.

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