Padilha, quando recebeu o Urso de Ouro de melhor filme por "Tropa de Elite" (2008) |
Esse perfil se delineia em uma carreira cinematográfica marcada por um nítido objetivo de crítica social. Começou com documentários (como o elogiado Estamira, de 2004, que produziu) e depois passou para longas de ficção que podem até ser classificados como blockbusters, mas que conservam os valores do cineasta, muito longe de serem apenas formas de ganhar dinheiro.
O primeiro grande feito de Padilha foi o documentário Ônibus 174, no qual mostrou como um sobrevivente da chacina da Candelária se tornou protagonista de um crime grave e acabou odiado pela sociedade e executado sumariamente, sob os aplausos dos cidadãos de bem. Ao humanizar o criminoso, acompanhar suas perdas e desvelar como a violência e a exclusão constroem um bandido, Padilha tinha tudo para ser execrado pelos colunistas de Veja, p. ex., ou pelos apresentadores de certos programas de TV. Mas o que ele conseguiu foram as condições para dirigir um dos maiores e mais controversos sucessos do cinema brasileiro, Tropa de Elite, em duas produções. E a visibilidade ganha ao contar a trajetória do polêmico Capitão Nascimento lhe deu prestígio na indústria de Hollywood.
E assim chegamos a RoboCop, refilmagem do clássico de 1987, cujo sucesso (e também uma boa dose de nostalgia) tem levado muitas pessoas a dizer bobagens sobre o atual trabalho de Padilha.
Muita gente esperava que a refilmagem se mantivesse fiel ao original, o que por si só é uma tolice, pois se perderia a oportunidade de uma nova abordagem. Houve quem reclamasse até do tratamento dado ao tema musical do personagem, composto pelo aclamado compositor greco-americano Basil Poledouris (1945-2006), agora minimizada e transformada numa fanfarra irônica (por favor, "fanfarra" é um estilo musical!). Mas assim como Tim Burton (A fantástica fábrica de chocolate) e Zack Snyder (O Homem de Aço), Padilha não estava ali para refilmar a mesma estória, e sim para contar a sua própria. Os saudosistas que vejam o original e parem de encher o saco. Isso não tem nada a ver com os filmes, o antigo e o atual, serem ou não bons.
Suspeito que o fato de Padilha ser brasileiro contaminou o debate. Há quem diga que o filme é uma droga e só está sendo elogiado por bairrismo e outros, em sentido oposto, para os quais o filme é muito bom e está sendo criticado por causa da síndrome de vira-lata do brasileiro. De minha parte — não sou crítico de cinema e estou aqui apenas emitindo uma opinião pessoal, na condição de leigo que viu o filme e gostou —, posso dizer que a obra reúne toda a qualidade técnica de um autêntico filme de ação estadunidense, com ótimas atuações, efeitos visuais e especiais de primeira linha e... um toque particular que motiva esta postagem.
Por que um estúdio americano, com tantas opções de cineastas para escolher, iria querer um brasileiro que nem possui uma cinegrafia tão vasta assim? Por que conceder a ele a possibilidade de realizar um projeto pelo qual muitos brigariam, com um respeitável orçamento de 100 milhões de dólares, e ainda permitindo que ele trouxesse a reboque ao menos três membros de sua equipe? Foi uma aposta em sua capacidade técnica? Duvido. Fosse por isso, ficariam com a prata da casa, mesmo. Suponho que eles autorizaram Padilha porque apostaram na visão pessoal que ele daria a um projeto cheio de possibilidades políticas, com uma evidente crítica ao governo e à sociedade estadunidense.
O filme de 1987 (dirigido pelo competente e irônico Paul Verhoeven, holandês) já era assim. Basta lembrar que a narrativa era entrecortada por "comerciais" de TV com mensagens esdrúxulas. No meu preferido, anunciava-se um sistema antifurto de automóveis que eletrocutava o ladrão a ponto de matá-lo. Um desbunde para uma sociedade que valoriza o patrimônio muito mais do que a vida, como é lá e como é cá. A estratégia, agora, foi entrecortar a narrativa por entradas de um programa de TV altamente canalha, no qual o âncora, Pat Novak, em excelente atuação de Samuel L. Jackson, tenta convencer a população americana de que a melhor coisa em matéria de segurança pública é ser policiado por robôs.
Novak é a perfeita e descarada síntese do conceito de empresário moral, criado pelo sociólogo Howard Becker: um comunicador (no caso, da imprensa, mas poderia ser um político, um empresário com grande visibilidade, etc.) que, por meio de discursos de ódio altamente utilitaristas, tenta convencer a população como um todo de suas verdades em matéria de políticas públicas, notadamente de segurança, que mascaram intenções as mais perversas e setoriais. Fica por nossa conta deduzir que ele ganha dinheiro da OmniCorp para se dedicar tanto à causa, o que explica cenas de uma ironia aguda, como quando corta a palavra do Senador Dreyfuss (responsável pela lei que veda o uso de robôs nos Estados Unidos para fins de policiamento), grita palavrões quando a lei é mantida após ter sido revogada e, em especial, quando se vale de um exercício de metacrítica, "denunciando" que certos setores da mídia são tendenciosos e mal intencionados, e que poderiam induzir as pessoas a acreditar que os Estados Unidos são um agressor imperialista, já que exerce policiamento em países como Iraque e Afeganistão. Ponto para Padilha.
RoboCop pode decepcionar os tontos que vão ao cinema para ver porrada. Existe ação, obviamente, mas em doses adequadas. O roteiro de Joshua Zetumer trata sobre pessoas. Sobre seres humanos, com suas perdas, dores, desejos e necessidades. Enfatiza a humanidade do protagonista Alex Murphy, a ponto de explicar, sob a ótica científica, quanto de humanidade ele conserva. Enfatiza a sua família e mostra o passo a passo das decisões de um capitalista inescrupuloso, assessorado por gente igualmente sem caráter, para produzir um ciborgue. Este aspecto me pareceu mais convincente do que o roteiro original.
O RoboCop de Padilha é um ótimo programa de entretenimento. E seu aspecto comercial não trai a verve do cineasta, que por meio de um blockbuster consegue promover reflexões úteis para a nossa vida real. Isso não é novo no cinema, obviamente. E apenas reforça a minha reserva em relação às pessoas que o reduzem ao lazer e acham bacana "desligar o cérebro" antes de entrar na sala. Cinema também serve para isso, mas não pode ser apenas isso. Se não equivaleria aos diversos outros instrumentos de imbecilização de que o nosso mundo já está abarrotado. Vá ver os tiros, mas se permita meditar sobre o que significa a presença dos Estados Unidos em países estrangeiros, que deveriam ser soberanos; pense na aplicação da lógica da guerra sobre o policiamento urbano de rotina; pense no confronto entre eficiência e resguardo dos direitos fundamentais; pense nas atividades econômicas que ganham com o crime e o seu combate, muitas vezes fomentando o primeiro para lucrar; pense nas estruturas de corrupção profundamente arraigadas no tal "sistema"; pense em como a tecnologia pode nos desumanizar. Enfim, há muito em que pensar.
Vá ao cinema. E leve o cérebro junto.
Um comentário:
Sim, leve o cérebro e o coração pois, afinal, é de gente que falamos aqui (dos dois lados da tela).
Ótima análise.
Parabéns, irmão.
Beijos.
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