quarta-feira, 23 de abril de 2014

Galinhas no supremo terreiro

Ainda que hoje em dia possa haver exemplos melhores, consolidou-se há muito tempo, no imaginário popular, a noção de que "ladrão de galinha" simboliza um criminoso de pequena periculosidade ou um fato de somenos importância. Aquilo que, no jargão jurídico-penal, caberia dentro da definição de crime de bagatela, passível de exclusão por força do princípio da insignificância.

Estou desconfiando do número 4...
Já comentei, aqui no blog, sobre a renitência dos tribunais brasileiros em aplicar o aludido princípio. A convicção generalizada do brasileiro, que repercute no pensamento dos juízes, de que deve haver punição a todo custo e de que crime somente se pune com cadeia, acaba levando aos tribunais causas absurdas e a mais alta corte do país não está imune.

Há alguns dias, vem repercutindo a decisão do Min. Luiz Fux, publicada no último dia 4, que determinou o prosseguimento de processo envolvendo, justamente, o furto de um galináceo. A decisão sob comento é a seguinte (obtida na página do próprio STF: file:///C:/Documents%20and%20Settings/jdyudice/Meus%20documentos/Downloads/texto_212980101.pdf):

Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado contra decisão que indeferiu medida liminar em idêntica via processual, nos seguintes termos, verbis:

“Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de Afanásio Maximiniano Guimarães, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela suposta prática do delito previsto no art. 155, caput, do Código Penal, por ter tentado subtrair uma galinha do galinheiro da vítima Raimundo das Graças Miranda, avaliada em R$ 40,00 (quarenta reais).

Irresignada, a Defesa impetrou prévio habeas corpus no Tribunal de origem, tendo a Sexta Câmara Criminal, em julgamento unânime, denegado-lhe a ordem, em acórdão assim ementado (fl. 88):
HABEAS CORPUS – FURTO SIMPLES – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – MOMENTO INOPORTUNO – ATIPICIDADE DA CONDUTA – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – MATÉRIA QUE COMPORTA O REVOLVIMENTO DE PROVAS – INCOMPATIBILIDADE – AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL – DENEGADA A ORDEM.
- Em sede de habeas corpus só se permite o trancamento da ação penal quando se constata, prima facie, a atipicidade da conduta, a ausência de indícios de autoria, materialidade delitiva ou qualquer outra causa de extinção da punibilidade.
- A aplicação do princípio da insignificância é causa supralegal excludente da tipicidade material da conduta, de forma que somente ao término da instrução processual está o Magistrado habilitado a analisar tal circunstância, sendo prematura a sua apreciação antes do término daquela fase, principalmente em sede de habeas corpus, ação de rito sumaríssimo que não comporta o revolvimento de matéria probatória.
Por isso o presente mandamus, no qual sustenta o impetrante, em síntese, a atipicidade penal da conduta do paciente, pois destituída de relevância jurídica ante a aplicação do Princípio da Insignificância.
Aduz que ‘a ação penal iniciada contra o Paciente encontra-se desprovida de justa causa, tendo em vista as coisas alheias subtraídas, o seu valor irrisório e a pronta restituição do galo e da galinha ao seu proprietário’ (fl. 5).
Diante disso, busca, em tema liminar e no mérito, o trancamento de referida ação penal.
Brevemente relatado, decido.
A liminar, que na via eleita não ostenta previsão legal, é criação da jurisprudência para casos em que a urgência, necessidade e relevância da medida mostrem-se evidenciadas de forma indiscutível na própria impetração e nos elementos de prova que a acompanham.
Em um juízo de cognição sumária, apura-se que a questão atinente à aplicação do princípio da insignificância merece uma reflexão mais profunda, demandando a análise detida da conduta criminosa, devendo, pois, ser reservada à egrégia Quinta Turma desta Corte, juiz natural da causa.
Ademais, verifica-se que a liminar pleiteada, nos termos em que deduzida, confunde-se com a matéria de fundo, consubstanciando-se em pedido eminentemente satisfativo, incabível na espécie.
Ante o exposto, indefiro a liminar.
Solicitem-se informações complementares ao Magistrado singular sobre os fatos alegados na inicial.
Após, abra-se vista dos autos ao Ministério Público Federal.”

Colhe-se dos autos que o paciente foi denunciado como incurso nas sanções do artigo 155, caput, do Código Penal (furto), por ter, em tese, subtraído um galo e uma galinha, avaliados em R$ 40,00 (quarenta reais).

A defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sustentando, em síntese, a aplicabilidade, in casu, do princípio da insignificância.

Denegada a ordem sobreveio nova impetração no Superior Tribunal de Justiça, cuja limar (sic) foi indeferida.

Neste writ, reitera a tese de aplicabilidade do princípio da bagatela no caso sub examine, tendo em vista o pequeno valor da res furtiva.

Ressalta, ainda, que os bens subtraídos foram restituídos à vítima.

Requer, ao final, a concessão de medida liminar a fim de suspender a ação penal até o julgamento definitivo deste habeas corpus. No mérito, pleiteia o reconhecimento da atipicidade da conduta do paciente, com fundamento no princípio da insignificância.

É o relatório. DECIDO.

A causa de pedir da medida liminar se confunde com o mérito da impetração, porquanto ambos referem-se à aplicabilidade, ou não, do princípio da insignificância no caso sub examine. Destarte, é recomendável que seja, desde logo, colhida a manifestação do Ministério Público Federal.

Indefiro o pedido de liminar

Solicitem-se informações ao Juízo da 2ª Vara da Comarca de São João Nepomuceno/MG sobre os fatos alegados na petição inicial. Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal para emissão de parecer.
Publique-se.

Brasília, 2 de abril de 2014.

Ministro LUIZ FUX
Relator

Longo relatório, exígua decisão. É o primeiro sintoma. O segundo, e ainda mais grave, é o ministro se prender a um argumento formalista, fechando os olhos deliberadamente ao aspecto substancial da demanda. Parece não interessar o que está em jogo, mas tão somente a forma. A cada dia que passa, convenço-me mais de algo que tenho repetido: faz imensa falta ao STF um ministro que tenha alguma experiência com direito penal. Enquanto continuarem apostando em processualistas, permaneceremos submetidos a essa justiça formalista e, por consequência, desumana.

Mas que ninguém se engane: a ampla preferência por processualistas indica o tipo de perfil que se quer imprimir à corte, talvez enfatizando a cultura do eficientismo. Muito embora processualística e eficiência sejam uma contradição extrema.

Enquanto o ministro tergiversa sobre "causa de pedir" e "mérito", o aspecto mais importante da demanda foi sumariamente ignorado: em que consiste, de fato, o princípio da insignificância? Irrita-me profundamente, mas quem deveria entender do riscado não lhe interpreta os contornos. Age como se ele fosse uma espécie de benesse, mera liberalidade. Muito ao contrário, ele toca diretamente à tipicidade penal, primeiro requisito do conceito analítico de crime. Logo, se o fato for considerado insignificante, não é criminoso. Ponto. Simples assim.

Posso oferecer denúncia criminal contra uma pessoa que sobe em um monumento em praça pública e, sem danificá-lo em nenhuma medida, ali permanece por horas a fio? A resposta é não, porque não existe tipicidade para essa conduta. Há violação a posturas municipais, o indivíduo pode ser retirado compulsoriamente do local, ou seja, há consequências, eventualmente até punitivas, porém não criminais. É a mesma situação do fato insignificante. O problema é que as pessoas não compreendem isso, porque colocam a tipicidade formal acima de tudo. Como sempre, a forma sobre o conteúdo.

Afanar uma caneta comum, com carga pela metade, é objetivamente subtrair coisa alheia móvel. É furto, porém? Os antiquados dizem que sim e depois vão discutir outras questões. Na verdade, o fato não é típico e, por isso, não poderia desafiar uma ação penal. Por consequência, uma denúncia versando sobre a subtração de uma galinha avaliada em 40 reais, fato que tecnicamente não constitui furto, deveria ser rejeitada. E caso fosse aceita (como normalmente é), eventual habeas corpus impetrado contra tal pretensão punitiva deveria ser concedido, sem mais.

Mas no país da forma acima de tudo, muito me admira que as artes plásticas não sejam mais valorizadas. Duas tristezas. Pobre país.

Sobre o fato de o STF se ocupar de casos de bagatela, inclusive com críticas dos próprios ministros: http://www.conjur.com.br/2014-abr-09/causas-relevancia-ainda-sao-julgadas-supremo-tribunal-federal

Matéria do "Fantástico", com direito a vídeo: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/04/dois-casos-de-furto-de-galinhas-vao-parar-no-supremo-tribunal-federal.html

3 comentários:

Anônimo disse...

Caro Yúdice

Boas as tuas considerações sobre o assunto, que me fizeram refletir . Confesso que tenho muitas dúvidas sobre a questão, apesar de concordar contigo quanto ao absurdo de tal pendenga chegar ao STF.

O valor da galinácea (R$ 40,00) pode ser pequeno, mas, e se o dono só tem 3 galinhas , p. ex, vivendo dos ovos que põem, não acabaria sendo um valor "razoável" para ele, já que veria sua renda em ovos cair 33% ? E se a mesma é aquela galinhazinha de "estimação"? Não tem preço.....

Quanto a questão de que somente processualistas são indicados ao STF, lembro ao amigo que, infelizmente, o que vemos hoje, são nomeações rigorosamente políticas. Ninguém está preocupado no tão necessário equilíbrio de áreas jurídicas, de modo a robustecer as decisões.

Um foi indicado por ser negro, o outro porque sua mãe era muito amiga da Dona Marisa, a outra porque necessitavam indicar uma mulher, o outro porque se comprometeu a votar favoravelmente a determinada questão no mensalão, outro porque foi advogado de partido político, e por aí vamos.

Ainda semana passada a filha do Ministro Marco Aurélio(indicado pelo seu primo Presidente da República) também foi indicada para o TRF.

O que vale - infelizmente - é o sobrenome, o parentesco, o partido político, a jura. Vejam a enorme quantidade de parentes nos nossos tribunais. Um escárnio.

E, para terminar, copiando o Zé Simão, é piada pronta o nome do réu ser Afanásio!!!!

Kenneth

Yúdice Andrade disse...

Sobre o questionamento técnico por você suscitado, Kenneth, a tipicidade corresponde a um aspecto objetivo do delito, portanto o fato é típico ou não é típico, até porque o tipo penal foi concebido como instrumento de garantia do acusado. Assim, não se pode admitir que o fato seja ou não típico a partir de informações acidentais, tais como se eu furtar 5 reais de um grande empresário, incorro em atipicidade, mas se eu furtar os mesmos 5 reais de um cara que ganha salário mínimo, haveria crime. Se fizermos isso, o crime deixará de depender da conduta em si, mas do nível de renda da vítima - o que, por sinal, é algo fora da possibilidade de controle do agente.
A solução para isso é estabelecer um valor que seria considerado insignificante sempre, em qualquer situação, independentemente dos envolvidos. Meu texto segue essa orientação.
Quanto à indicação dos ministros do STF, ela é política por determinação da própria Constituição. Mas entendi que a crítica se dirige aos modos de escolha dos indicados. Realmente, a situação não tem sido muito favorável. O pouco caso com a matéria penal é apenas um plus ao problema que você destaca.
É a velha máxima: "all is politics"!

Anônimo, quando quiser ser "inteligente" e "audacioso", assine seu comentário. Identifique-se ou vá cantar em alguma freguesia condizente com o seu nível de covardia.

Anônimo disse...

Obrigado pela aula 0800.
Vou meditar mais sobre a questão
Abs
Kenneth