Acabei de ver, com um retardamento de um ano, nove meses e nove dias em relação ao que já era atraso1, Julgamento de Nuremberg, Oscar de melhor filme de 1961, dirigido por Stanley Kramer.
Existe uma tendência, que poderia classificar simplesmente como mania, de classificar obras antigas como superiores aos remakes ou releituras posteriores, como se em nossos dias não se fizesse mais nada bom ou, pelo menos, nada à altura do passado. As afirmações de que este filme de Kramer seria superior à versão de 2000 é no mínimo ingênua, a começar pelo fato de que as duas obras não são versões de um mesmo roteiro, apresentando-se como projetos absolutamente distintos entre si.
Para entender a diferença, é preciso saber que não houve um julgamento de Nuremberg, como uma leitura apressada do título pode sugerir (aliás, perceba-se como o título original é mais eficiente do que o nacional: o julgamento aconteceu na cidade de Nuremberg; em português, parece que a cidade foi submetida a julgamento!). Na verdade, houve uma série de julgamentos, separados não apenas por réus nominalmente individualizados, nem mesmo por categorias de criminosos. A distinção mais importante tem relação com a própria constituição do órgão jurisdicional que realizou o polêmico acontecimento histórico.
Num primeiro momento, o Tribunal Militar Internacional foi constituído para julgar 24 militares alemães que, por sua proeminência entre os nazistas, foram apontados como os maiores criminosos de guerra daquele período, que seriam executores ou mandantes diretos das maiores atrocidades registradas pela História recente. Entre eles o maior destaque era Hermann Göring, nada menos que o n. 2 na hierarquia do III Reich, abaixo apenas do Führer. Esta fase durou de 20.11.1945 a 1º.10.1946. O telefilme de 2000 reconstitui o primeiro julgamento, com cinco réus, à frente Göring.
Posteriormente, houve a fase dos "processos de guerra de Nuremberg", a cargo do Tribunal Militar Americano (a supremacia dos vencedores!), abrangendo não somente militares, como também cidadãos comuns que, no exercício de suas funções ou profissões, teriam dado apoio ao regime genocida dos nazistas. Médicos, por exemplo (caso 1, de 9.12.1946 a 20.8.1947). E juízes (caso 3, de 17 de fevereiro a 14 de dezembro de 1947). É este o evento histórico retratado pelo filme de Kramer.
Neste, havia quatro réus. Da esquerda para a direita, na imagem: Werner Lampe (Torben Meyer), Emil Hahn (Werner Klemperer), Friedrich Hoffstetter (Martin Brandt) e Ernst Janning (Burt Lancaster), este último um dos maiores luminares do Direito alemão da época, professor universitário, autor de vários livros e até então reconhecido, segundo percebo, como um humanista. Isso fica claro na passagem em que uma testemunha menciona que ao defender, como advogado, um judeu acusado de manter relações sexuais com uma ariana, acreditou na absolvição do réu porque o juiz era Janning. Mas no final sobreveio a condenação.
Tais condenações envolviam esterilizações compulsórias e envio para os campos de concentração, barbaridades que, consoante o entendimento do tribunal, não teriam respaldo nem mesmo no sistema legal então vigente na Alemanha. Entendimento que, claro, desperta intermináveis controvérsias. Depois de ver o filme e matutar a respeito, e considerando não ter nenhum conhecimento decente sobre aquele momento histórico ou sobre o processo, cheguei à conclusão de que absolveria os réus, como por sinal entendeu um dos três juízes, que acabou vencido, mas fez questão de fundamentar a sua divergência. A meu ver, os réus, sendo juízes e não legisladores, cumpriram as leis vigentes num regime ditatorial. Seu maior crime, talvez, tenha sido decidir horrores contra a própria consciência, mas isso a depender de se resolver se, no final das contas, eles estavam mesmo contra a política de Hitler. Janning estava, ou passou a estar, e sua alma torturada é um dos aspectos mais bonitos do filme. Ele admite a culpa e, na última oportunidade de conversar com o juiz que o condenara, Dan Haywood (Spencer Tracy), reconhece que seu veredito foi justo.
Tenho razões para preferir o telefilme de 2000. A meu ver, ele é bem mais didático para quem, como eu, lança um olhar jurídico sobre o tema. As razões estão enunciadas na postagem anterior, cujo link já coloquei acima. Aqui, fiquei com a sensação de que o enfoque dado ao julgamento e as diversas passagens em que se mostrava a vida dos personagens (com ênfase para Frau Bertholt, interpretada por Marlene Dietrich) serviram para criar um clima algo romanceado, mais favorável ao tom moralista dado ao roteiro, que assume contornos nítidos durante o discurso do juiz Haywood, que culmina com o anúncio da condenação dos réus à prisão perpétua (não reclame de spoilers: são fatos históricos!). Tenho por justa a crítica porque o filme é de 1961, apenas 16 anos após o final da guerra, quando as feridas ainda eram muito mais sangrantes do que em fins do século XX. E também porque a Guerra Fria atormentava o mundo com todo o vigor, dando a receita para que um elenco estelar hollywoodiano contribuísse com a ideologia do governo daquele país.
O filme, sem dúvida, é muito bom, devendo-se tributar às limitações técnicas da época os efeitos sonoros esquisitos e as horríveis montagens sempre que aparecia alguém dirigindo. Quanto à linguagem arrastada, o interesse em destacar amenidades e a descrição pontual de aspectos factuais secundários do julgamento (testes de fones de ouvido, p. ex.), tributa-se a um temperamento mais sereno dos cineastas daquele tempo, cientes de que o seu público não tinha a urgência que hoje nos domina, obrigando-nos a objetivar, resumir, priorizar tudo, porque não há tempo nem vontade de pensar em detalhes. Quanto mais em causas e consequências.
1 A contagem se refere ao tempo que levei para ver o filme de 1961, após ter visto o telefilme de 2000.
3 comentários:
Os dois filmes são aqueles que quase sempre pego na Fox como uma das três opções, mas acabo sempre trocando por outro de Drama ou Oscar. Mas ainda os verei antes do fim do ano, hehe.
Lhe indico O Segredo de seus Olhos, segundo filme argentino (e latino-americano) a ganhar o Oscar. Quanto mais o via, mas entendia porque a Academia preferiu ele em vez de A Fita Branca. Mesmo até prevendo o final (mas calma, o ganche é dado apenas na cena quase imediatamente anterior; o resto é epílogo), ele me espantou.
Prato cheio para debates de moral x legal, penas duras e etc (volto a fazer definição simplória apenas para não revelar mais).
E fica a dica, claro, a primeiro argentino a levar Oscar, caso o senhor não tenha visto ainda: A História Oficial. A situação poderia ensejar diferentes teses de direito de família (voltando ao modo simplório).
Ainda sobre O Segredo de seus Olhos... o filme não deixa de refletir a realidade do país em que é feito. Até onde sei, na Argentina há muitos furtos e roubos, mas bem menos assassinatos. Na primeira vez que fui a Buenos Aires neste ano, por sinal, havia uma grande manifestação popular pela morte de UM policial.
Não sei se um brasileiro que também averiguasse assassinatos se espantaria tanto com o estado do corpo (calma, a cena que me refiro é bem no início do filme). Se o filme fosse brasileiro, a cena teria de exigir doses de Jack o Estripador (ver a terceira imagem do verbete dele na wikipedia lusófona) para, quem sabe, se sobressair para o "averiguador".
Lógico, admito que o que estou falando pode ser preconceito e ignorância minha... ou insensibilidade de quem já foi vacinado um pouco por algumas capas do Amazônia ou pelo "Polícia" d'O Liberal (ao menos é um caderno separado hoje, mais fácil de evitar; lembro que nos meus 11 anos era colado no de "Esportes"...)
Sugestões anotadas na minha sempre crescente lista de recomendações cinematográficas, Caio.
Recordo-me de quando "O segredo de seus olhos" venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não sabia que a temática seguia por esse caminho.
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