sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Nuremberg


Hoje risquei da lista de pendências mais um filme alvo de diversas recomendações, mas que somente agora pude assistir. Trata-se de O julgamento de Nuremberg (Nuremberg, de Yves Simoneau), uma produção para a TV de 2000, tendo Alec Baldwin como protagonista, no papel do promotor Robert Jackson, chefe da equipe de acusação.
Trabalho competente de reconstituição de um dos mais importantes acontecimentos do século XX  a ponto de as falas originais, objeto de gravações, terem sido utilizadas para a composição do roteiro , apresenta em quase três horas de duração excelentes atuações, notadamente a de Brian Cox, como o marechal Hermann Göring, número 2 na hierarquia nazista.
Naturalmente, o meu interesse maior não era pelo aspecto artístico, até porque existe o filme de Stanley Kramer (1961), em cujo elenco despontam nomes como Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Maximilian Shell, Judy Garland e Montgomery Clift, para citar alguns medalhões do cinema de todos os tempos. Este será visto numa próxima oportunidade.
O filme de hoje, com as licenças inevitáveis da edição e das concepções da equipe de produção, permite que tenhamos alguma noção de questões das mais relevantes, a saber: 1) por que se decidiu julgar os criminosos nazistas feitos prisioneiros, em vez de simplesmente enforcá-los, como preferiam os russos; 2) como se deu a constituição do tribunal internacional e a definição das regras que seriam adotadas no julgamento (é interessante a cena em que os juízes comparam os ritos processuais em seus respectivos países); 3) a suposta igualdade entre os países aliados, vencedores da guerra, não disfarçou a hegemonia dos Estados Unidos na tomada de decisões cruciais; 4) em que pese o filme não explorar um dos temas mais espinhosos desse julgamento  ter sido realizado por um tribunal de exceção  está lá a crítica ao fato de que ele não seria nada além de um simulacro, para dar ares de justiça e legalidade a um desfecho que sempre se repetiu na História: os vencedores decidem o que é certo e errado e os perdedores, declarados culpados, são executados.
O julgamento de Nuremberg é um fato histórico que, para um estudioso do Direito, precisa ser objeto de reflexão. Para o Direito Constitucional e Internacional, assim como para a Ciência Política, além de outras áreas do conhecimento, ele conduz a discussões difíceis e importantíssimas, ainda muito atuais, quando os desafios trazidos pela globalização  notadamente o que alguns autores chamam de declínio dos Estados nacionais  desnudam a necessidade de pisar no terreno pantanoso das relações internacionais e chegar a respostas precisas. Como os casos de Slobodan Milosevic e Saddam Hussein, dentre outros, Bin Laden quem sabe um dia ou mesmo conflitos abertos entre países ou povos estão a demonstrar, sem trégua.
No mínimo, se o Holocausto nazista lhe diz alguma coisa, assista. A sequência dos filmes feitos nos campos de concentração mostra o que todos precisamos saber, para não deixar que se repita.

5 comentários:

Anônimo disse...

O filme é ótimo, ainda mais pela oportunidade de ouvir a versão dos próprios nazistas (não que eu simpatize com as idéias do III Reich, mas no discurso histórico oficial, e mais ainda quando dirigido ao grande público, elas costumam ser muito mal e porcamente apresentadas). Do ponto de vista jurídico-processual, o julgamento foi, a meu ver, um ato de barbárie. Anterioridade da lei, tipicidade da conduta, exigibilidade de conduta diversa, obediência hierárquica, juiz natural, promotor natural, devido processo, ampla defesa etc. - todos esses princípios, bases formais do Estado de Direito, foram sistematicamente deixados de lado. E, diferentemente dos casos Milosevic e Hussein (que também extrapolam seus limites, ao pretenderem aplicar dispositivos de tratados e convenções de direitos humanos a cidadãos de países que nunca foram signatários desses acordos), no julgamento de Nurenberg existe ainda a agravante de que a ONU e os tratados e convenções internacionais de direitos humanos à época sequer existiam. Minha opinião, que reconheço ser polêmica, é que, embora o Regime Nazista tenha sido, de fato, uma das piores facetas da humanidade e uma das piores atrocidades que a história já testemunhou, não havia como, do ponto de vista jurídico, responsabilizar aqueles generais e soldados pelo que fizeram sob a égide de um regime legítimo e legalmente constituído, sob o cumprimento de ordens dadas com caráter de comendo hierárquico militar e, ainda mais, depois de 1933, numa situação de guerra externa. Confesso que ainda não assisti ao outro filme sobre o julgamento, citado na postagem, mas, dada a descrição do elenco, fiquei tentado a dar-lhe uma chance. Muito oportuna a postagem, Yúdice, parabéns!

Anônimo disse...

Sou mais o filme do Valdick Soriano.

Yúdice Andrade disse...

André, com a precisão cirúrgica que te é peculiar, produziste uma lista dos itens espinhosos que o julgamento de Nuremberg nos permite debater. É muita coisa, sem dúvida. E olha que o ponto mais crucial já nos renderia uma discussão riquíssima: o que fazer com criminosos de guerra, se não existe um ordenamento jurídico penal internacional? E como responder às sociedades quando se constata, como disseste, que não há o que fazer?
Abraços.

Anônimo, presumo que você esteja se referindo ao documentário da maravilhosa Patrícia Pillar sobre a vida de Waldick Soriano ("Waldick - Sempre no meu coração"). Pois saiba que tenho grande interesse em assistir a esse documentário que, pelo que sei, foi exibido na TV fechada em algum momento. E que o próprio Soriano não viu, pois morreu no dia 4.9.2008, antes de sua finalização. Se houver em DVD, por favor me informe. Grato.

Anônimo disse...

Bom, não sei se você já estava dando a discussão meio que por encerrada e se apenas lançou no ar o assunto dos tratamento internacionalista dos criminosos de guerra, mas, se quiser saber minha opinião, penso que: (1) deveria haver uma legislação penal internaicional, não apenas para crimes de guerra, mas também para atos lesivos aos direitos humanos em geral; (2) essa legislação estaria acompanhada de um sistema administrativo penal internacional, encarregado da aplicação das penas; (3) essa legislação seria aplicada ou quando as legislações nacionais não previssem ou não dessem o tratamentom adequado àqueles crimes (tendo o "adequado" que ser previamente definido em tratados internacionais) ou na forma de instância recursal internacional em relação a decisões que já esgotaram as instâncias internas; (4) os países teriam que aderir a isso voluntariamente, o que, óbvio, seria um desafio político diplomático gigantesco, principalmente por causa dos teimosos de sempre (EUA, Rússia, China, Vietnam, Coréia do Norte, Arábia Saudita, Iran, Egito, Tailândia etc.); (5) até que tal legislação penal supranacional exista e esteja vigente e eficaz, o único tratamento que se pode dar aos criminosos de guerra é no âmbito do direito interno do país em que cometeram suas atrocidades (o que, bem sei, pode resultar, em vários casos, na mais absoluta impunidade). Essa solução com que concordo não se baseia numa tese positivista, e sim republicana e procedimentalista: como Kant frisou, o motivo por que se pode, de modo legítimo, aplicar uma sanção a um ser humano contra a sua vontade é que tal sanção derive de uma norma de cujo processo de elaboração ele próprio tenha participado, direta ou indiretamente, de modo que seja plausível a presunção de que a norma que se aplica contra ele é uma norma que ele mesmo aprovou que existisse e que fosse aplicada a casos como o seu. Isso, recuperando uma noção de Rousseau, é autonomia: só ser submetido às normas que você mesmo produziu, ser ao mesmo tempo o destinatário e o autor das normas vigentes. Se se desrespeita a autonomia, se se aplica a um sujeito uma norma de cujo processo de elaboração ele não pôde participar nem diretamente com seu voto, nem indiretamente pelo voto de seu representante legítimo, então se está violando a sua autonomia, se está impondo a ele uma norma alheia, heterônoma, desrespeitando sua dignidade enquanto ser humano. Abraço!

Yúdice Andrade disse...

De modo algum eu daria a discussão por encerrada, ainda mais diante da perspectiva de aprender contigo. Não peças licença: volta quantas vezes quiseres.
Muito obrigado pelos ótimos acréscimos.