O assassinato de Marcelo Castelo Branco Iúdice, anteontem à noite, fez ressurgir o clima de indignação, revolta e cobrança quanto ao poder público, que vimos recentemente quando da morte de Salvador Nahmias e de outras vítimas. Tudo dentro de uma rotina insuportável, que insiste em se repetir. Contudo, há muito, muito mais a se refletir e a se dizer em relação a essa onda de vidas desperdiçadas.
Um dos aspectos mais difíceis de se enfrentar é que a mídia reforça no ideário geral a ideia de que o crime constitui, única e exclusivamente, uma opção pessoal. É a escolha feita por uma pessoa má e indiferente aos cidadãos de bem. Esse pensamento está totalmente assimilado pela sociedade. Infelizmente, isso não é verdade. Se fosse, teríamos ao menos diagnóstico que tornaria 1% mais fácil combater a criminalidade. Digo mais fácil porque só se pode vencer um problema quando suas causas são conhecidas. Digo, porém, 1% porque poucas coisas são tão difíceis quanto vencer as más inclinações humanas. Todas as tentativas de fazer isso que a História registra redundaram em medidas centradas no conceito de periculosidade e justificaram alguns dos piores horrores promovidos por governos. Aliás, continuam justificando, na forma ultraelaborada da teoria do direito penal do inimigo.
Um crime não tem uma causa única. Isso jamais aconteceu e jamais acontecerá. Permitam-me duas pequenas digressões.
1) Uma pessoa não decide ser médico porque "gosta de Medicina" ou porque "deseja salvar vidas", como frequentemente escutamos (principalmente de crianças). Esse motivo pode ser verdadeiro. Contudo, ao se inscrever no vestibular para Medicina, o indivíduo provavelmente sopesou, também, o retorno financeiro que a profissão lhe traria; a rotina de plantões e demais elevadas exigências; os pesados custos para a formação; a disponibilidade e a confiabilidade de um curso em sua cidade ou a sua capacidade de se mudar para outra; o mercado para novos médicos, especialmente na especialidade que pretenda abraçar, dentre outros aspectos. Se ponderou tudo isso e decidiu, todos esses elementos são também causas de ele cursar Medicina.
2) Uma pessoa não se casa apenas porque ama outra. Decerto que o amor deve ser a premissa mais óbvia do casamento. Contudo, para se chegar a essa importante decisão, outras questões foram avaliadas, a começar pela reciprocidade do sentimento. Avaliou-se, também, suponho, se o casal dispunha de condições econômicas, se teria uma casa, se um dos cônjuges precisaria mudar de cidade e o que isso impactaria seus projetos de vida, a maturidade do parceiro, o apoio familiar e uma miríade de outras coisas. Até, eventualmente, a existência de uma gravidez. Tudo isso foi posto na balança na hora de se decidir pelo matrimônio.
Tudo na vida é assim. Apenas decisões muito simplórias são submetidas a uma escolha do tipo sim ou não. Constitui, portanto, uma grave estultice supor que um crime é deliberado com base, única e exclusivamente, no ato de jogar uma moeda para o alto e ela cair com a face riscada para cima. Não que não haja crimes com essa característica. Eles existem, imagino. Mas suponho que sejam improváveis. Se alguém comete, p. ex., um crime de ímpeto, essa decisão deve ser baseada em sua personalidade inconsequente — e a formação de uma personalidade é um processo complexo e muito demorado.
Daí resulta que uma série de fatores conduzem uma pessoa ao crime — alguns pessoais; outros, exógenos. A sociedade atual — e de novo a mídia — detestam que se afirme esse tipo de coisa. Porque desvirtua o discurso reinante centrado na maldade por livre escolha. Quer irritar um moralista de plantão? Basta dizer que o crime tem causas sociais. A resposta é desvastadora. Você é tachado de tudo que não presta. E uma afirmaçãozinha pré-cozida, que está na ponta da língua, sempre é lembrada: nem todo pobre é bandido, por isso você está errado.
Evidentemente, nem todo pobre é bandido. Isso é um fato. Mais do que um fato, é uma afirmação altamente preconceituosa, porque sugere, nas entrelinhas, a existência de alguma relação natural entre a pobreza e o crime, a perversidade ou a falta de caráter. Tal pensamento, além de falso, é indigno. Mais falso e indigno, contudo, é o seu reverso: a ilação de que os ricos teriam uma propensão natural à ética e à solidariedade, o que a História está a demonstrar que muito ao contrário. Mas voltemos ao principal.
Com efeito, há pobres que enveredam pelo crime e outros — felizmente, a esmagadora maioria — que, apesar das grandes adversidades suportadas, mantêm-se dentro dos comandos da ética, da religião, das leis ou de tudo quanto possa auxiliar na formação de um cidadão útil. Mas se eu tirar dessa premissa a conclusão de que os indivíduos — pobres ou ricos, o raciocínio serve para ambos — que se tornam criminosos o fazem apenas porque o quiseram, estarei inventando o primeiro ser humano completamente amoral, a-histórico (ai, a nova ortografia...), atemporal, associal, assentimental e outros neologismos pertinentes. Primeiro porque jamais existiu alguém assim. Trata-se, obviamente, de uma hipótese impossível.
Preciso lembrar, ainda, que a responsabilidade penal se baseia no conceito de culpabilidade e este, por sua vez, depende da vontade livre do indivíduo. Assim, não possui responsabilidade penal toda pessoa que, por qualquer motivo, não pode decidir livremente, seja porque está sob erro, sob coação ou desprovida, transitória ou permanentemente, do discernimento. E ainda existem aqueles que até compreendem os seus atos, mas não conseguem controlá-los. Daí as figuras do erro de tipo, da coação moral irresistível e da inimputabilidade, previstas pela legislação penal. Ou seja, quando uma pessoa comete um crime e pode ser, em tese, punida por ele, isto significa que ela possui a capacidade de decidir e, podendo agir de acordo com a lei, optou livremente por transgredi-la. Destaco isso para esclarecer que todo criminoso incorreu num ato de vontade. Quem mata, rouba, estupra ou pratica qualquer uma das outras condutas nocivas que a lei criminaliza, escolheu perpetrar esse tipo de maldade. Ainda assim, essa escolha está submetida a outros fatores que excedem ao âmbito meramente individual. Uma coisa não nega a outra. Muito ao contrário, complementam-se.
Em uma síntese simplista, quando uma pessoa comete um crime, é porque fez uma escolha pessoal ruim, provavelmente motivada por traços negativos de sua personalidade — perversidade, concupiscência, indiferença, ódio racial, preconceito, carreirismo social, etc. — somados a fatores outros, os mais diversos, dentre os quais se pode supor a falta de construção de vínculos afetivos, o mau exemplo, a imitação, a estimulação por terceiros, a ausência de acesso a bens de consumo (notadamente os vitais) e a serviços públicos, a reação ao sentimento de abandono e perseguição e infindáveis outros.
Esta postagem não é mais do que um esboço de um assunto inesgotável. Encerro-a dizendo que, ao sustentar que o crime, amplamente considerado, é apenas e tão somente a livre escolha de uma pessoa má, você demonstra ausência de reflexão (não soube, não pode ou não quis) e divórcio com a realidade. E políticas de segurança pública que partam dessa premissa estão sumariamente fadadas ao fracasso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário