sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Atenção social seletiva

Com formação em Direito e em Filosofia, mas acima de tudo com enorme lucidez, o Prof. André Coelho nos brinda com mais uma de suas abordagens precisas e preciosas, que deixou como comentário à postagem "Mortes por classes". Como nem todos leem os comentários, dou-lhe o devido destaque para, depois, atender o pedido para externar uma opinião sobre.

A atenção social é seletiva. Aliás, a noção mesmo da "atenção" designa um destaque ou ênfase a certa coisa, em detrimento do restante, ou, no mínimo, por mais tempo ou com maior intensidade que o restante. É por isso que existe luta por prestígio e por status: porque atenção, consideração, apreço, são recursos escassos. São escassos porque não se pode dar grande importância a todos ao mesmo tempo, não se pode fixar o holofote em todos os atores e em todos os espaços do palco ao mesmo tempo.
Da mesma maneira, a revolta social é seletiva. Os campos de refugiados de Ruanda mataram três vezes mais pessoas que os campos de concentração nazistas. Mas Auschwitz fica na Europa e as pessoas mortas eram brancas (fora o fato de que os EUA, na sua campanha contra o comunismo, fez questão de propagandear o Holocausto como a ameaça a ser temida de qualquer regime totalitário), enquanto as mortes massivas, cotidianas, banalizadas dos campos de Ruanda aconteciam numa latitude e com pessoas de um tom de pele que estão aquém dos radares da imprensa e da atenção do público dos países desenvolvidos (que são as sedes das empresas que fazem as verdadeiras coberturas jornalísticas internacionais, que nossos jornais, com raríssimas exceções, se limitam a copiar).
A revolta social é seletiva também com quem são as pessoas que importam e quem são as que não importam. Digam as constituições e as leis o que quiserem, mas existe, em qualquer sociedade, um senso muito nítido da separação entre "nós" (designando os que têm existência e dignidade social "visível") e "eles" (os que não têm nenhuma das duas coisas). Isso está correto? Não, não está. Deveríamos nos tratar e nos respeitar como iguais, independentemente das situações sociais particulares de cada um, como merecedores todos do mesmo respeito, pelo simples fato de sermos seres humanos, irmanados na maravilha, na tragédia e na precariedade de nossa existência mundana. Mas ocorre? Ocorre, e muito, e sempre ocorreu, em todas as épocas e lugares, da Babilônia antiga à Nova Iorque atual.
Não se tem notícia da sociedade em que todos sejam tratados com a mesma importância (que seria uma sociedade sem prestígio, sem status, uma sociedade não humana, que não temos sequer idéia de como funcionaria). Nem mesmo as pequenas vilas e aldeias, sejam antigas, medievais ou modernas, que diferenciam entre famílias mais e menos importantes, entre bons e maus partidos para casamentos, entre pessoas mais e menos influentes etc. Falou em sociedade humana, lá está a distinção entre o "nós" e o "eles" marcando presença.
Até aí tudo bem. Mas se mortes bárbaras e inaceitáveis ocorrem, não deveriam ser objeto da revolta social quer fosse com a morte de um "de nós", quer fosse com a morte de um "deles"? Deveria, se os motores dessa revolta fossem a convicção moral da necessidade de prover segurança a todos e o desejo humanitário de que todo ser humano tenha sua vida respeitada. Porém, na maior parte das vezes, não o é. Os motores dessa revolta social, quaisquer que sejam os argumentos de que se revista, são mais usualmente o medo e a raiva: o medo de que algo parecido ocorra com um "de nós" e a raiva de que isso tenha sido feito por um "deles".

Como as personagens que têm voz socialmente audível são as mesmas que têm dignidade social visível, isto é, os integrantes do "nós", e não do "eles", então quando a tragédia alcança um "de nós", ela parece mais próxima, desperta mais o medo e a raiva, acentuados por um sensação desconfortável de que a fortuna cruel e infeliz que se desaba cotidianamente sobre "eles" possa, incidentalmente, se lançar contra "nós".
Aí, e só aí, é que a coisa que é sempre e em todos os casos revoltante se apresenta ao público (formado por "nós") como "realmente revoltante", digno de uma cobertura jornalística contínua e estendida e de comentários exaltados nas esquinas das ruas e nos bebedores de empresa.

4 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado pelo destaque ao meu comentário. Você, mais uma vez, se mostra um blogueiro generoso. Espero que suscite algum debate e que outros também emitam suas opiniões. Mas a opinião que não quero deixar de "ouvir" (ler) é a sua. Abraço!

Yúdice Andrade disse...

Esta resposta está bem atrasada. O resultado das reflexões que nos trouxeste já são do teu conhecimento. Rendeu, não?

David Carneiro disse...

Excelente debate, professores!

Yúdice Andrade disse...

Obrigado, Davi. E tu és muito bem vindo nele.