Ainda mexendo no vespeiro da indignação reinante quanto à insegurança pública, sobretudo após escutar as lúcidas ponderações de uma amiga ontem, preciso lançar um olhar sobre a postura cruel com que a sociedade trata os indivíduos, separando-os por categorias fundadas em critérios vários, com ampla preferência pelo da acumulação de bens.
Voltemos um pouco no tempo. Quando o menino João Hélio foi arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, a imprensa — que vive de explorar o horror — ficou obcecada por isso. Na época, algumas vozes se levantaram para lembrar que, todos os dias, milhares de crianças morrem — de fome, de doenças absolutamente evitáveis, de falta de acesso à rede pública de saúde, a saneamento básico, a medicamentos, à proteção das autoridades. Morrem também de abusos vários, da exploração do trabalho à sexual. A sociedade, no geral, não se insurge contra isso. Sequer o percebe.
Quando Isabella Nardoni foi atirada pela janela de um apartamento, a imprensa produziu uma das mais exaustivas coberturas jornalísticas de que se tem notícia. E de novo vozes se ergueram para lembrar as crianças abusadas e mortas cotidianamente, nas ruas, favelas e guetos onde os holofotes da mídia não chegam, porque só se acendem nos bairros asfaltados das cidades. De novo, não se lhes deu atenção.
Se formos reparar, o que está acontecendo em Belém é semelhante. Há a exploração midiática e uma crescente mobilização social — bastante salutar, faço questão de dizer — em torno não da criminalidade em si, mas de vítimas de condição social privilegiada. Sim, porque todos os dias, e principalmente nos finais de semana, há homicídios e roubos em profusão, mas estes ganham dos jornais uma só notícia, aquela destinada a contar o fato e expor os cadáveres ensanguentados. Observe que nenhuma dessas matérias tem continuidade. Vencida a cota de sangue do dia, não se volta mais a atenção ao caso. Quanto a essas mortes, as vítimas e suas famílias são logo esquecidas e assim é porque amanhã haverá outros tantos, nas mesmas condições. São as pessoas invisíveis, termo cada vez mais utilizado.
No caso de Salvador Nahmias, Marcelo Iúdice (já antecipando, quanto a este) e uns poucos outros, a situação é diferente. A imprensa noticia o crime, registra as exéquias, publica o desabafo dos amigos, escarafuncha os perfis do Orkut, acompanha as investigações policiais, pressiona as autoridades, entrevista especialistas em segurança pública, faz enquete nas ruas, divulga informações sobre atos religiosos ou cívicos — enfim, dá uma atenção completamente diferenciada. Porque estamos falando de pessoas com expressiva visibilidade, como deveria ser cada cidadão.
Pelo amor de Deus, entenda que estas minhas palavras não externam nenhum desapreço às vítimas da violência, sejam as duas mencionadas, sejam as que se encontram em situação análoga. Eu lastimo e repudio a violência e me solidarizo com cada vítima, cada parente e cada amigo. E já me manifestei em apoio às iniciativas contra a criminalidade, partam elas da classe média ou não. A crítica se restringe à imprensa e às autoridades públicas, que ao selecionarem aqueles que merecem atenção e diligência, fazendo-o sempre em favor daqueles que se encontram em degraus mais elevados da pirâmide social, reproduzem uma sociedade desigual, injusta e não solidária. No caso do serviço público, isto por sinal é uma violação de seus deveres institucionais, que se baseiam no princípio constitucional da isonomia.
Portanto, é hora de conclamarmos a sociedade a se mobilizar, sim. Não apenas pelo médico e pelo advogado, ou por aqueles que frequentam os mesmos restaurantes e academias, mas também pela costureira (lembram quando falei da morte de D. Núbia, também vitimada por uma "saidinha"?), pelo ator (Lucas, atropelado pela polícia, que possivelmente o confundiu com um assaltante) e pelos tantos desempregados, abandonados e desassistidos que vagueiam pelas ruas da cidade todo dia, sem que ninguém os note.
Solidariedade é para todos. Ou não é solidariedade.
11 comentários:
Exato!
olha a reforma ortográfica , acabou o trema professor.Se eu colocar trema na prova não quero ponto descontado.
Yúdice, como sempre, muito oportunas a sua postagem e a sua observação. Pessoalmente, tenho certa opinião sobre isso. Vou tentar expressá-la o melhor que puder. Gostaria de ler sua opinião a respeito depois.
A atenção social é seletiva. Aliás, a noção mesmo da "atenção" designa um destaque ou ênfase a certa coisa, em detrimento do restante, ou, no mínimo, por mais tempo ou com maior intensidade que o restante. É por isso que existe luta por prestígio e por status: porque atenção, consideração, apreço, são recursos escassos. São escassos porque não se pode dar grande importância a todos ao mesmo tempo, não se pode fixar o holofote em todos os atores e em todos os espaços do palco ao mesmo tempo.
Da mesma maneira, a revolta social é seletiva. Os campos de refugiados de Ruanda mataram três vezes mais pessoas que os campos de concentração nazistas. Mas Auschwitz fica na Europa e as pessoas mortas eram brancas (fora o fato de que os EUA, na sua campanha contra o comunismo, fez questão de propagandear o Holocausto como a ameaça a ser temida de qualquer regime totalitário), enquanto as mortes massivas, cotidianas, banalizadas dos campos de Ruanda aconteciam numa latitude e com pessoas de um tom de pele que estão aquém dos radares da imprensa e da atenção do público dos países desenvolvidos (que são as sedes das empresas que fazem as verdadeiras coberturas jornalísticas internacionais, que nossos jornais, com raríssimas exceções, se limitam a copiar).
A revolta social é seletiva também com quem são as pessoas que importam e quem são as que não importam. Digam as constituições e as leis o que quiserem, mas existe, em qualquer sociedade, um senso muito nítido da separação entre "nós" (designando os que têm existência e dignidade social "visível") e "eles" (os que não têm nenhuma das duas coisas). Isso está correto? Não, não está. Deveríamos nos tratar e nos respeitar como iguais, independentemente das situações sociais particulares de cada um, como merecedores todos do mesmo respeito, pelo simples fato de sermos seres humanos, irmanados na maravilha, na tragédia e na precariedade de nossa existência mundana. Mas ocorre? Ocorre, e muito, e sempre ocorreu, em todas as épocas e lugares, da Babilônia antiga à Nova Iorque atual.
Não se tem notícia da sociedade em que todos sejam tratados com a mesma importância (que seria uma sociedade sem prestígio, sem status, uma sociedade não humana, que não temos sequer idéia de como funcionaria). Nem mesmo as pequenas vilas e aldeias, sejam antigas, medievais ou modernas, que diferenciam entre famílias mais e menos importantes, entre bons e maus partidos para casamentos, entre pessoas mais e menos influentes etc. Falou em sociedade humana, lá está a distinção entre o "nós" e o "eles" marcando presença.
Até aí tudo bem. Mas se mortes bárbaras e inaceitáveis ocorrem, não deveriam ser objeto da revolta social quer fosse com a morte de um "de nós", quer fosse com a morte de um "deles"? Deveria, se os motores dessa revolta fossem a convicção moral da necessidade de prover segurança a todos e o desejo humanitário de que todo ser humano tenha sua vida respeitada. Porém, na maior parte das vezes, não o é. Os motores dessa revolta social, quaisquer que sejam os argumentos de que se revista, são mais usualmente o medo e a raiva: o medo de que algo parecido ocorra com um "de nós" e a raiva de que isso tenha sido feito por um "deles".
Como as personagens que têm voz socialmente audível são as mesmas que têm dignidade social visível, isto é, os integrantes do "nós", e não do "eles", então quando a tragédia alcança um "de nós", ela parece mais próxima, desperta mais o medo e a raiva, acentuados por um sensação desconfortável de que a fortuna cruel e infeliz que se desaba cotidianamente sobre "eles" possa, incidentalmente, se lançar contra "nós".
Aí, e só aí, é que a coisa que é sempre e em todos os casos revoltante se apresenta ao público (formado por "nós") como "realmente revoltante", digno de uma cobertura jornalística contínua e estendida e de comentários exaltados nas esquinas das ruas e nos bebedores de empresa.
Bom, na verdade a opinião era um pouco maior e mais bem elaborada que isso, mas a essa altura já desejaria saber a sua opinião a respeito, para que pudéssemos levar adiante esse diálogo.
Um abraço!
Gracias, Lafayette.
Aluno anônimo chatinho:
1. Nunca descontei pontos por erros de português, embora ache que devia fazê-lo. Mas, se o fizesse, as conseqüências não seriam nada boas em termos de notas e de quantidade de atingidos. Afinal, mesmo as escolas tidas como mais sofisticadas de Belém têm-nos entregado alunos muito mal preparados, como o demonstra desde o péssimo português generalizado que hoje vemos, até a dificuldade extrema de pensar, com desalentadora freqüência.
2. Se você estivesse mesmo tão bem informado, saberia que, nos termos do acordo ortográfico, as duas formas de escrita co-existirão, ou seja, podem ser usadas indistintamente, até 2012 no Brasil e 2014 (salvo engano), nos demais países. Logo, não cometi nenhum erro.
3. Tenho tentado vencer hábitos de uma vida inteira, mas aqui e ali falharei, é claro. Este é um problema que não atinge o alunado médio, que simplesmente desconhece os temas da acentuação e notação léxica.
4. Diante de sua "denúncia", não editarei o texto e deixarei o trema lá, como prova viva da minha lenta adaptação.
André, em que pese eu não me achar apto a complementar o que escreveste, atenderei o teu pedido, fazendo uma postagem para isso. Mas me deixa pensar um pouco antes. Abraço.
Yúdice,
tem completa razão o André. Seu raciocínio é preciso, na exata medida em que expressa o que sinto. Sentimo-nos "nós" - algo que espelha aqueles que tiveram a oportunidade de educação, trabalho, crescimento saudável, dignidade, enfim - compungidos e amedontrados pelas mortes de "gente de expressão", ocorridas nos últimos tempos.
Este fato, porém, não impede que a revolta da classe média seja justa e a causa correta. Se eram estas tragédias que faltavam para tirar do torpor a elite econômica deste Estado, que elas tenham resultado. Até porque, na realidade, é esta mesma elite que ocupará os cargos de mando na Administração Pública, responsáveis pela adoção das medidas de combate à situação de descalabro em que nos encontramos - em nosso favor e dos que não tiveram a mesma oportunidade que nós.
Nas nossas circunstâncias, se não for assim, não será de outra forma. Afinal, qualquer outro secretário de Segurança Pública, delegado-geral de Polícia ou comandante da Polícia Militar sairá da mesma casta que come 3 vezes ao dia, e não da periferia da cidade. Ao menos até que a democracia brasileira seja capaz de criar cidadãos de verdade entre todos as classes sociais, e não somente entre sua elite - e mesmo assim, somente em parte desta.
Espero que este meu comentário não seja entendido como um protesto elitista. Muito pelo contrário: é um apelo para que entendamos nossa responsabilidade, inclusive pelo que hoje acontece em Belém.
Abraço.
Yudice, é excelente a contribuição do prof. André ao debate.
Precisa e elegante.
Quem sabe um dia teremos a solidariedade entre todos os "nos", por sobre a maior visiblidade social de "uns" que de "outros".
É em momentos como este que atravessamos que comentários como do do prof. mostram a conexão entre os dois lados do mesmo mundo onde moram os "nos" e os "uns".
Também nesses momentos as parcelas da mídia que atuam majoritária ou somente "num" e "noutro" momento se encontram.
Quem sabe também aí, no espaço midiático, teremos o dia em que a mesma pauta se colocará frente a "uns" e "nos".
OLá Primo,
Lúcida análise a sua, Atrevo-me a dizer que o próprio Direito é reflexo de tal pensamento.
O ordenamento jurídico é seletivo, tem um público muito bem definido e sobrevive de tal condição.
O crime quando cometido contra uma pessoa no qual nos vemos em igualdade nos choca mais, talvez pela possibilidade de que se aconteceu com alguém que consideramos igual, por que não aconteceria conosco?
Abraços primo!!!
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht
Acho que ambos escreveram muito bem, defendendo seus pontos de vista. Gostaria de acrescentar o desapreço, a falta de importância dada à morte, no caso, por assassinato, de uma só pessoa, mesmo que em uma comunidade de quase 2 milhões. Hoje, lemos até com enfado os cadernos policiais pingando sangue e despertamos da letargia quando nos parece chegar próximo o barulho. No entanto, uma só pessoa assassinada, já deveria ser motivo para escândalo em uma cidade normal. Uma só! Agora, a nova frase do dia, sem dúvida, é do Secretário, sobre o ladrão de comportamento súbitamente alterado para roubar...
A coisa ficou tão banal. Querer colocar a culpa na sociedade é o mais simples e correto.
Não interessa se é o Seu Zé ou o maior milionário da cidade.
O que o homem tem que saber e sentir na pele que ele ao cometer um crime será exemplarmente punido. Com o maior rigor possível. Sem benesses.
Sem discursos socialmente corretos, mas com a realidade nua e crua dos dias atuais.
Francisco, pelo menos de minha parte, nada vejo em termos de "protesto elitista" em tua manifestação. Quando escrevi sobre a passeata organizada pelos familiares de Salvador Nahmias, deixei clara a minha opinião de que todos temos o direitos de nos queixar, de protestar, de nos mobilizar - e que tudo isso, em última análise, pode trazer conseqüências práticas úteis.
Juvêncio, espero ansiosamente por esse dia, porque até aqui a mídia tem sido uma das maiores causas de inutilização dos debates e das iniciativas no campo da crime e da violência. Afinal, é dela que se serve o cidadão comum para conhecer fatos e para conferir opiniões alheias sobre esses fatos, quando ele mesmo não está apto ou não tem interesse em pensar por conta própria, o que infelizmente é muito rotineiro.
Jean, o que afirmas é fato. A seletividade é sentida mais duramente no Direito Penal, mas não é sua exclusividade. Não teria como ser. E o que mencionas no segundo parágrafo se chama "empatia" - conceito que tem norteado boa parte das discussões no campo penal, sem que as pessoas se deem conta disso.
Boa lembrança de Brecht, meu caro Stephan. Já conhecia o poema e, de fato, ele se mostra bastante oportuno.
O que nos lembras, Edyr, é a relação umbilical entre violência e humanidade. E isso tem passado despercebido às pessoas. A coisa funciona como lembrou o Jean: sentimos quando a coisa acontece com alguém do nosso meio. Se não é assim, não nos importamos. Mas não é toda e qualquer vida que tem valor? Não deveria ser assim?
Anônimo, seu comentário ficou meio ambíguo para mim, mas também acredito na eficácia do sistema de justiça criminal como fator desestimulador do crime e da violência. Só que por eficácia não devemos entender dureza desmedida, necessariamente, por isso não compreendi bem o sentido de "realidade nua e crua dos dias atuais". Podemos continuar a conversar.
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