Após 6 meses e 6 dias sem pisar numa sala de cinema, eu e minha esposa retornamos ontem, para ver O curioso caso de Benjamin Button, tradução literal do título do mais recente filme de David Fincher (2008). Adaptado de um conto do escritor estadunidense Francis Scott Fitzgerald (1896-1940), o que torna Benjamin Button curioso é o fato de ter nascido velho e rejuvenescer à medida que o tempo passa.
Li uma crítica antes de ver o filme, que mencionava algumas inconsistências no roteiro de Eric Roth, e depois tive os meus próprios inconformismos. Minha mentalidade jurídica se inquietou com a total ausência de esclarecimento sobre como poderia uma pessoa viver naquela situação, sem documentos. Se ele saiu do país, foi porque tirou um passaporte e obteve um visto. Mas como poderia fazê-lo se sua aparência discrepava da idade cronológica? Como justificar-se perante as autoridades? Como não ser exposto à curiosidade cruel da sociedade?
Contudo, quando estamos diante de uma premissa como a do conto e do filme, é melhor abandonar a sanha por explicações. Histórias assim só podem ser entendidas enquanto metáforas. Não há como uma trama dessas justificar os seus detalhes e implicações. Precisamos aceitar as licenças poéticas e nos concentrar na mensagem. Até porque é muito aborrecido ver um filme fantasioso e escutar alguém dizendo “mas que mentira!” Que caia fora do cinema o incomodado, ora pois.
O filme adota uma fórmula bastante conhecida: colocar pessoas diante de uma situação impossível e extrema, a fim de nos levar a pensar no que faríamos vivendo dramas análogos (na medida em que fossem possíveis) ou, mais subjetivo ainda, a nos fazer refletir não sobre os fatos em si, mas sobre os valores que eles nos sugerem, como a nossa relação com o tempo, o nosso corpo, o envelhecimento, amores que se tornam inviáveis (ou que assim supomos) e a perda. Neste caso, principalmente as perdas.
Como graças a Deus não sou crítico de cinema, dispenso-me de analisar a obra. Apenas digo que, longe de ser agradável a qualquer público, trata-se de um filme excelente, com atuações competentes (nada que valha um Oscar para Brad Pitt, entretanto) e um impressionante uso daquele software que apaga os traços da idade no rosto dos atores, que transformou Cate Blanchett numa menininha. Regina Duarte (que o utilizou em sua última atuação como protagonista) deve estar se cortando de in-ve-ja.
Para mim, é uma história sobre encontros. As pessoas se encontram, partem e não necessariamente voltam, ao longo de suas vidas. Uma cena tocante é quando Benjamin, aos 49 anos, e Daisy, aos 43, então vivendo juntos e felizes, contemplam a si mesmos num espelho para guardar a lembrança desse momento em que se encontraram no meio de suas vidas, numa época em que suas idades estavam de acordo, antes que ela envelhecesse e ele, remoçasse, voltando a ficar distantes um do outro.
E nós, que seguimos o tempo normal, que envelhecemos um dia a cada dia e jamais podemos retroceder, exatamente como cada uma das pessoas que nos cercam? Quantas vezes nos perdemos de quem amamos, por conta de nossas más escolhas? De nossos erros e impaciências. De nossos medos.
Os personagens do filme lutam contra o inexorável (a morte dos idosos, no asilo; o corpo que não corresponde à alma; a vontade de ser uma coisa diferente do que se é). Mas, no final das contas, não é exatamente isso que fazemos o tempo todo? Muito do que está a nossa volta pode ser mudado, mas muita coisa simplesmente não. Dito isto, penso que O curioso caso de Benjamin Button nos deixa duas mensagens:
— quanto ao verdadeiramente inexorável (como envelhecer ou rejuvenescer e perder até mesmo o que somos), devemos nos entregar com serenidade e sem desistir de usufruir do que se tem, enquanto se tem;
— quanto ao mais — e aqui me baseio na personagem Elizabeth Abbott, que aos 68 anos superou o fracasso de não ter conseguido cruzar o Canal da Mancha a nado, na juventude —, reconhecer que muito do que julgamos fato consumado em nossas vidas pode não ser. Como ela mesma diz: não desista nunca.
Pode não parecer, ainda mais considerando as sequências finais, mas é um filme otimista.
4 comentários:
Yúdice, concordo com você quanto âs mensagens: quando a hora chegar, renda-se ao inexorável; try, just a little bit harder.
Vi o filme essencialmente como uma fábula de amor, de zelo e de humanidade.
As falhas jurídicas (como você nos mostra) e biológicas saltam â vista, porém nada imperdoável.
Só fiquei preocupado com os seus 6 meses sem ir ao cinema. Que tal tentar uma ida semanal?
Um abraço.
Meu amigo, eu e minha esposa adoramos cinema. Por isso mesmo, dificilmente vamos um sem o outro. É empatia, não obrigação. Gostamos de fazer esse programa juntos. E aí, com o nascimento da Júlia, o tempo escoou. De um lado, havia as horas de cuidados com ela. De outro, havia o nosso desejo de estar com ela nos momentos de atividade e brincadeiras. Além disso, sendo professor, acabo trabalhando nos três turnos. Aos finais de semana, tínhamos mais necessidade de descansar do que outra coisa.
Por isso esses seis meses se passaram. Daqui apoucos dias vamos eu e ela de volta ao batente da vida docente. Aí cinema será quando Deus quiser.
Mas estamos serenos quanto a isto. Obrigado pela preocupação.
A justificativa é plenamente plausível, e foi aceita, sem ressalvas.
Um abraço.
Oi Yúdice.
ainda não assisti o filme mas to mt curiosa.
Com relação as críticas, quem quiser ver a realidade até nesses filmes, que fique assistindo os jornais da vida...
abraços.
até logo.
Postar um comentário