Motivado pelo debate travado na caixa de comentários da postagem "A brincadeira começou agora", a partir da manifestação da querida Luiza Duarte, recordo-me de uma historinha pessoal.
Corria o ano de 1996. Eu estava no último ano da graduação e estagiava no escritório da advogada Mary Cohen, hoje conhecida nos meios jurídicos por sua atuação junto à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB — uma humanista, com uma visão bem clara do mundo, que em mais de uma ocasião, como nesta que ora narro, me ensinou lições para toda a vida.
Certo dia, deparei-me com um pedinte no escritório. Um rapaz alto, vestido com uma certa formalidade e voz suave, quase um falsete. Contava uma história intrincada e ao final pedia dinheiro. Depois que saiu (sem atingir o seu objetivo), comentei que já o vira diversas vezes no Ministério Público (onde estagiara em 1995) e no fórum, sempre contando histórias e pedindo dinheiro. Repudiei a sua conduta de mentir para nos enganar, emocionar e soltar a grana.
Mary então interveio com uma só advertência: "Você não pode esperar que ele tenha a mesma noção de moralidade que nós, que vivemos de uma forma completamente diferente."
A frase não foi bem essa, mas seguia esse rumo. E me pôs a meditar profundamente em seu significado. Ela tinha razão. Nós — com todas as dificuldades enfrentadas ao longo da vida, eu e ela, pelo menos — tínhamos casa, comida na mesa, família, escola e uma série de outras coisas que, em verdade, são básicas, mas para muita gente são luxos inalcançáveis.
Após a separação quando eu tinha três anos, minha mãe foi trabalhar fora e passava o dia todo longe dos filhos. Mesmo assim, eu me recordo dela brincando comigo ocasionalmente, levando-nos para passear, repassando a tabuada (ih, denunciei minha idade...) e, especialmente, dando-me valores. Ela me ensinou que não devíamos pegar nada que não fosse nosso, que devíamos pagar nossas dívidas (isto ela me ensinou com exemplos) e que deveríamos manter a família sempre unida.
Não eram lições de moral. Apenas frases que ela podia dizer uma só vez e mesmo assim ficaram guardadas comigo. Tanto que, até hoje, eu repito algumas delas. Regras atemporais, que valiam na minha infância, valem hoje e continuarão atuais mais tarde.
Reconheço o quanto isso fez toda a diferença para mim. E imagino como seria minha vida se eu não tivesse aprendido nada disso. Logo, pondo-me no lugar dos outros — o que a maioria das pessoas não sabe e muito menos se interessa em fazer —, consigo compreender o bêbado que me pede dinheiro para comprar comida para o filho, que na verdade ele usará para continuar a beber. Não tenho uma opinião romântica sobre ele, não. Mas também não o rotulo de vagabundo. Encaro-o como uma pessoa que não consegue (ou não consegue mais) compreender que o que faz está errado. Não facilito, não passo a mão na cabeça, não dou o dinheiro, mas procuro respeitar a humanidade que há nele, inclusive em sua falência moral.
Idêntico procedimento utilizo nas minhas valorações sobre bandidos, marginais, delinquentes ou afins. E por isso me irrito tanto com os julgamentos do tipo dono-da-verdade que a imprensa e muita gente faz, objeto de críticas recorrentes aqui no blog.
Um comentário:
Olá primo,
Mais uma vez um belo post.
'Não facilito, não passo a mão na cabeça, não dou o dinheiro, mas procuro respeitar a humanidade que há nele, inclusive em sua falência moral.'
Este trecho retrata exatamente o meu sentimento, o que me deixa de certa forma confortado, afinal a escassez de juristas realmente humanistas não me permitiria ter esperanças de mudanças.
Como é difícil para as pessoas se colocarem no lugar das outras e como seria fácil entendê-las se assim a fizessem.
Abraços!!!
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