Ao longo de mais de sete anos trabalhando junto às Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, pude constatar uma coisa em relação ao processo penal: recurso é, basicamente, coisa da defesa. Seja porque se persegue um objetivo verdadeiramente justo (a absolvição de um inocente, o reconhecimento de uma escusa ou a imposição de uma pena menos dura e mais proporcional), seja pelo mais deslavado intuito procrastinatório, os advogados sempre estão a postos para recorrer. Mas e o Ministério Público?
Estagiei no Parquet em 1995, menos de sete anos após a promulgação da Constituição vigente e pude conferir o esforço que a instituição fazia para honrar as suas novas e maiores atribuições. Imagino que essa preocupação continua existindo, o que se pode conferir através da expansão do organograma, investimentos estruturais, consolidação de objetivos, etc. No entanto, alguns problemas crônicos subsistem, p. ex. o ranço do serviço público, notadamente o ligado ao sistema judicial, que adora esconder-se atrás da desculpa de que há muito trabalho e por isso somos ineficientes. Daí resultaria uma boa explicação para o fato de o MP recorrer pouco.
Com efeito, pelo que tenho visto, se há condenação, o MP costuma dar-se por satisfeito e deixa o processo correr. Com isso, perde a oportunidade de sanar nulidades, de corrigir ilegalidades que, muitas vezes, põem a perder até mesmo a punibilidade de alguém que a merecia. Deixando a sentença transitar em julgado para a acusação, ficam livres os advogados para apontar os erros cometidos pelo juiz. E, creiam-me, não se trata de inventar erros: eles existem mesmo! Por isso, uma atuação mais comprometida do promotor de justiça poderia assegurar uma condenação tecnicamente mais correta e, portanto, menos suscetível de reforma.
Já vi um caso em que o réu era processado por estuprar uma menina de 14 anos e depois estrangulá-a e atirar seu corpo a um rio. O tribunal do júri tomou uma decisão estapafúrdia: condenou-o pelo estupro, mas absolveu quanto ao homicídio. E absolveu de um jeito que tornou clara a desinteligência dos jurados sobre os fatos e suas implicações. Apreciando os quesitos, eles afirmaram que o réu atirou a vítima no rio, produzindo as lesões descritas no laudo cadavérico, mas votaram "não" no quesito sobre essas lesões serem a causa da morte. Por outras palavras, a morte da vítima não teve uma causa! E o Ministério Público simplesmente não recorreu.
Só para caracterizar melhor o caso, o personagem em questão já fora processado antes pelo estupro de outra adolescente, sendo absolvido por insuficiência de provas. E anos mais tarde, porque respondia em liberdade ao processo acima, foi acusado de estuprar e matar um menino de quatro anos, pelo que está sendo novamente processado, desta vez preso.
Em suma, o MP costuma recorrer apenas na hipótese em que o réu é absolvido. Às vezes, recorre para aumentar a pena ou o regime penitenciário imposto, mas em geral isso ocorre em delitos específicos, tais como tráfico de entorpecentes e, quase sempre, mediante argumentos moralistas e não técnicos. A terceira hipótese em que o MP costuma recorrer, inclusive sem necessidade, é em casos de repercussão midiática.
Sintomas, pelo que entendo, de que a missão institucional do Ministério Público precisa ser entendida com mais clareza e serenidade por quem faz parte dela.
4 comentários:
É, caro Yúdice, nossas instituições ainda têm muito o que crescer. O que é esperado, inclusive porque nossa Constituição é nova e a visão que temos a respeito do que fazer concretamente para realizar os seus comandos é imatura.
O tempo e o esforço farão com que tudo se fortaleça.
Acho que estamos num bom caminho.
Sem qualquer intenção piegas, preciso repetir que o seu blog, sobretudo pelas postagens jurídicas, mas não só através delas, representa uma ferramenta de valor nessa caminhada.
Beijos para os três.
O interessante, Tônia, é que quando comecei a postagem, a intenção era escrever sobre outra coisa. Mas às vezes as palavras ganham vida e fluem para um rumo próprio.
Seja como for, acredito que a situação seja essa, mesmo. Agora é esperar que essa evolução que propões realmente ocorra e, de preferência, com um pouco mais de velocidade.
Quando estagiei no MP, um pouco mais cedo que o amigo, em 93, circulei entre as promotorias, entre elas, a criminal.
"Lafa, analisa estes, marca os pontos numa lista e conversamos depois."
Era uns 6 autos. Passei uns 3 dias na missão. Alegraço. Ao final, "mas Lafa, estes dois aqui só perdestes tempo, ganhamos e tu me anotas umas bobagens" e tome-te mijada.
"Mas, doutor, a pena nem foi dosada corretamente, tem até erro de qualificadora."
O Promotor era gente boa, cobrava mas não humilhava. Encerrou o papo com a frase de praxe: faz o que tô mandando.
É, amigo, passados 17 anos, a coisa continua a mesma pelo visto.
Engraçado, Lafa, achei que o comentário que mencionaste era humilhante o suficiente, considerando que ele tinha a obrigação de ensinar e que, no final, o errado era ele.
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