segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Marina

Marina me disse um dia que a gente só se lembra do que nunca aconteceu. Ainda ia se passar uma eternidade antes que eu pudesse compreender essas palavras. Mas é melhor começar do início, que nesse caso é o final.
Em maio de 1980, desapareci do mundo por uma semana. No espaço de sete dias e sete noites, ninguém soube do meu paradeiro. Amigos, colegas, professores e até a polícia saíram em busca do fugitivo que alguns já acreditavam morto ou perdido por ruas mal-afamadas, mergulhado em alguma crise de amnésia.
Uma semana depois, um policial à paisana teve a impressão de conhecer aquele garoto; a descrição batia. O suspeito vagava pela estação de Francia como uma alma penada numa catedral de ferro e névoa. O policial me abordou com um ar de romance de terror. Perguntou se meu nome era Óscar Drai e se era o rapaz que havia sumido sem deixar rastros do internato onde estudava. Fiz que sim, sem abrir a boca. Lembro-me do reflexo da abóbada da estação nas lentes de seus óculos.
Sentamos num banco da plataforma. Calmamente, o agente acendeu um cigarro. Deixou queimar sem colocá-lo nos lábios. Disse que tinha um monte de gente esperando para me fazer um monte de perguntas, para as quais era bom que tivesse boas respostas. Concordei de novo. Fitou-me nos olhos, estudando-me. "Às vezes, contar a verdade não é uma boa ideia, Óscar", disse. Estendeu algumas moedas e pediu que eu ligasse para meu tutor no internato. Foi o que fiz. O policial esperou que eu terminasse a ligação. Em seguida, me deu dinheiro para um táxi e me desejou sorte. Perguntei como sabia que eu não ia desaparecer de novo. Ele me olhou longamente. "Só as pessoas que têm algum lugar para onde ir podem desaparecer", respondeu, sem explicações. Foi comigo até a rua e, lá chegando, despediu-se sem perguntar onde eu tinha estado. Vi quando se afastou pelo Paseo Colón. A fumaça de seu cigarro intacto o seguia como um cão fiel.
Naquele dia, nos céus de Barcelona, o fantasma de Gaudí esculpia nuvens impossíveis sobre um azul que dissolvia o olhar. Peguei um táxi até o internato, onde achei que haveria um pelotão de fuzilamento à minha espera.
Por quatro semanas, professores e psicológos escolares me martelaram para que eu revelasse meu segredo. Menti, oferecendo a cada um exatamente o que queria ouvir ou podia aceitar. Com o tempo, todos fizeram um esforço para fingir que tinham esquecido o episódio. E eu segui o exemplo. Nunca contei a ninguém a verdade sobre o que tinha acontecido.
Na época, não sabia que, cedo ou tarde, o oceano do tempo nos devolve as lembranças que enterramos nele. Quinze anos depois, a memória daquele dia voltou para mim. Vi aquele menino vagando entre as brumas da estação de Francia e o nome de Marina se acendeu de novo como uma ferida aberta.
Todos temos um segredo trancado a sete chaves no sótão da alma. Este é o meu.

A primeira frase de um livro pode dizer muito sobre ele. Sou obcecado pelas frases de abertura dos romances, ao mesmo tempo em que aprecio uma linguagem elegante e sofisticada, porém sem afetação. Não há necessidade de termos rebuscados, preciosistas ou obscuros para produzir um texto perceptivelmente saído de uma mente culta e criativa.

Acima, você tem o prólogo de um romance que, em poucas linhas, conseguiu me arrebatar totalmente. Desconheço a sinopse; comprei por causa do autor. Mas o estilo é exatamente como entendo uma boa literatura contemporânea. Você não fica absolutamente sequioso de ler o resto da estória depois de ser introduzido a ela com tanta maestria?

6 comentários:

Anônimo disse...

Qual é a obra e o autor?

Yúdice Andrade disse...

O título da obra é o mesmo da postagem e o autor, Carlos Ruiz Zafón. Haverá uma segunda postagem a respeito, por isso, deliberadamente, deixei a coisa no ar, para despertar o interesse.

Ana Manuela disse...

Também só comprei por ser do autor, embora desconhecesse a sinopse. Trata-se de um dos meus autores favoritos!

Yúdice Andrade disse...

Até o momento, querida Ana Manuela, nem sei de que trata o livro! A correção das provas não me permitiu ler mais do que umas dez páginas. Mas pretendo devorá-lo na primeira oportunidade.
Zafón corre a passos largos para figurar no meu "top 10".

Ana Manuela disse...

No meu caso, não sei do que se trata por estar estudando pras provas, mas também não vejo a hora de poder ler. Espero que seja tão bom quanto A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo. =)

Anônimo disse...

Poxa Yúdice, que maldade! Até modifiquei a minha posição para ler melhor e... putz! acabou!!!!!! agora, lá vou eu atrás desse referido autor, pois a curiosidade ficou atinada!
Suellen Resende