Já escrevi aqui, repito: tenho tanto medo da Justiça quanto de testemunhas. E o caso de Vinícius Romão de Souza está aí para comprovar minha tese: centenas de pessoas devem estar presas neste momento baseado apenas no depoimento e reconhecimento de uma pessoa ignorante e (momentaneamente?) cheia de ódio? E aposto meu salário: 99% são negros.
Vinícius só vai escapar de puxar uma cana pesada porque é ator e teve algum apoio da mídia. Devido à repercussão, a testemunha, Dalva da Costa Santos, que teve o celular roubado, “meditou” muito a respeito de sua acusação contra o rapaz e decidiu desmentir suas declarações anteriores. Ufa. Foi por pouco, não? Afinal, o ator é negro.
Fosse apenas mais um jovem trabalhador voltando a pé para casa (para economizar o dinheiro do ônibus), a chance de recuperar sua liberdade era rigoramente nenhuma. Testemunhas não voltam atrás. Para elas, basta que alguém pague pelo crime do qual foram vítimas que tudo bem. É assustador, convenhamos. Principalmente se você for negro.
Entre todas as provas, as testemunhais costumam ser as mais frágeis. O ser humano erra. Demais. E, numa delegacia, tenham certeza: policiais costumam incentivar testemunhas a reconhecer bandidos, mesmos que não sejam. Não estão nem aí. Eles estão mais interessados em concluir um caso do que em praticar a presunção da inocência. Principalmente se o acusado for negro.
Por isso, sempre que assisto testemunhas enfurecidas dando declarações sobre algum suspeito, meu cérebro entra em estado de absoluta atenção. Basta uma palavra para destruir a vida de uma pessoa. Para sempre. Pessoas foram condenadas à morte assim, para só depois se descobrir que eram inocentes. Adivinha a cor da maioria delas? Acertou.
Nunca soube de um delegado que tenha, procurando acalmar a vítima, ponderado se não haveria possibilidade de um equívoco. Provavelmente, o policial não considera seu dever funcional questionar, mas tão somente processar o caso, torná-lo uma acusação idônea a chegar ao judiciário. É um defeito grave, originário, porque o delegado deveria ser o primeiro a se questionar se há mesmo justa razão para a instauração do inquérito, para a prisão em flagrante, para o constrangimento de uma pessoa.
Li matéria dizendo que a vítima, após muito refletir, voltou à delegacia e admitiu o engano. O delegado responsável, então, teria admitido que a prisão era indevida, mas teria dito que, mesmo assim, Vinícius teria que responder à acusação, em juízo. Jesus Cristo, como é possível?! Uma acusação errada vira uma ação penal só para que, ao final, eu absolva o acusado?! Esse delegado parou no tempo? Esqueceu, de cara, que compete ao Ministério Público decidir se oferecerá denúncia. E caso haja denúncia, após mudança no Código de Processo Penal, hoje é possível ao juiz absolver sumariamente o réu considerando os termos da defesa preliminar.
No caso de Vinícius, qualquer coisa é abusiva. O rapaz foi preso porque a vítima o "reconheceu" a partir de duas características: cabelo black power e uma camisa preta. Oi? Nada sobre a fisionomia, voz, alguma característica exclusiva? O cabelo dele nem é grande. Se for por cabelo crespo e camisa preta, eu mesmo posso acabar preso qualquer dia desses. Embora eu seja um tanto desbotado, à noite todos os gatos são pardos. Convém não caminhar pela rua tarde da noite. Vá de carro, meu amigo. Quem tem carro é cidadão de bem.
Naturalmente, estas cautelas todas seriam desnecessárias se o suspeito fosse preso com o produto do crime. Mas Vinícius não possuía nenhum dos objetos mencionados pela vítima. Nem arma ou qualquer outro indício que pudesse relacioná-lo ao roubo. Foi, apenas, o primeiro negro com cabelo e camisa confundíveis que se avistou. Se estava às proximidades e cabia no estereótipo, era ele. Simples assim. Repito e insisto: a vítima está emocionalmente afetada. Dá para desculpá-la por suas falhas. Não podemos ter a mesma tolerância com a polícia. Ainda mais porque, segundo reportagem do G1, constou da ocorrência que o policial militar condutor do preso justificou o fato de não ter encontrado nenhum pertence da vítima em posse de Vinicius porque ele teria passado a res furtiva para uma pessoa de alcunha "Braço". No entanto, nenhuma diligência foi empreendida para checar essa informação. É sempre assim: o policial recorre a sua suposta rede de informações prévias e todo mundo acredita nele sem questionar. Com isso, qualquer inocente vira bandido contumaz e com larga rede de comparsas.
Enfim, o delegado de polícia pediu a libertação de Vinícius, que se encontra sob a humilhação e a violência do cárcere desde o dia 10. Já são 16 dias de inferno. E só vai sair porque houve mobilização em seu favor, mas não qualquer mobilização, porque muita gente que é presa também conta com isso. Só que ninguém dá a mínima. Delegado, promotor, juiz, em geral todos entendem que a alegação de inocência é mais uma malandragem do vagabundo e concordam que ele deve mesmo responder ao processo preso, porque é grande o risco de reincidência, de ações que possam comprometer a ação penal e para dar uma resposta rápida à sociedade, que fica abalada com delitos de tão extrema gravidade.
Vinícius, mesmo fulminado pelo estereótipo racista do brasileiro, ainda é um ponto fora da curva. Por ter feito um papel na Rede Globo, acreditaram quando ele alegou inocência, quando seus amigos comprovaram que ele trabalha em uma loja, onde por sinal é considerado um excelente vendedor; destacaram que ele voltava para casa a pé a fim de economizar dinheiro para um novo curso de teatro, etc. Não fosse o nome da Globo, e consequente repercussão em todos os portais de notícias, Vinícius seria apenas mais um negro alegando inocência para tapear o sistema. E talvez se dizer ator ainda o prejudicasse mais!
E ainda tem gente que menospreza e repudia o garantismo penal.
2 comentários:
Bom dia professor querido (sei que você não gosta muito de ser assim chamado, mas não resisti),
Muito bom ler este post, apesar da infelicidade do caso e da habitualidade com que estes tipos de erros ocorrem, eu estava, neste exato momento, buscando algum bom exemplo para citar em minha monografia, cujo tema será a fragilidade dos relatos testemunhais no processo penal, onde tentarei abordar, também, a questão dos estereótipos.
No mais, deixo um grande abraço de saudade.
Yasmin Santiago
Minha querida, eu apenas pedia para ser chamado pelo nome, mas adoro ser chamado de professor. Isto é um grande elogio para mim, a despeito do odioso desserviço prestado pelos técnicos de futebol...
Fico feliz que tenhas encontrado um tema para a tua monografia. O pouco que comentaste sugere algo interessante. Daqui, disponho-me a ajudar no que for possível. E começo lembrando: se vais falar de estereótipos, Zaffaroni é citação necessária.
Outro abraço imenso. Também sinto a tua falta.
Postar um comentário