quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Uma questão de cor e mídia

Mais uma vez, dou razão ao jornalista Marco Antônio Araújo, em seu blog O Provocador (link do artigo original):

29osphx061 3omeoaoiv1 file1 Tenha medo de testemunhas, principalmente se você for negro
Já escrevi aqui, repito: tenho tanto medo da Justiça quanto de testemunhas. E o caso de Vinícius Romão de Souza está aí para comprovar minha tese: centenas de pessoas devem estar presas neste momento baseado apenas no depoimento e reconhecimento de uma pessoa ignorante e (momentaneamente?) cheia de ódio? E aposto meu salário: 99% são negros.
Vinícius só vai escapar de puxar uma cana pesada porque é ator e teve algum apoio da mídia. Devido à repercussão, a testemunha, Dalva da Costa Santos, que teve o celular roubado, “meditou” muito a respeito de sua acusação contra o rapaz e decidiu desmentir suas declarações anteriores. Ufa. Foi por pouco, não? Afinal, o ator é negro.
Fosse apenas mais um jovem trabalhador voltando a pé para casa (para economizar o dinheiro do ônibus), a chance de recuperar sua liberdade era rigoramente nenhuma. Testemunhas não voltam atrás. Para elas, basta que alguém pague pelo crime do qual foram vítimas que tudo bem. É assustador, convenhamos. Principalmente se você for negro.
Entre todas as provas, as testemunhais costumam ser as mais frágeis. O ser humano erra. Demais. E, numa delegacia, tenham certeza: policiais costumam incentivar testemunhas a reconhecer bandidos, mesmos que não sejam. Não estão nem aí. Eles estão mais interessados em concluir um caso do que em praticar a presunção da inocência. Principalmente se o acusado for negro.
Por isso, sempre que assisto testemunhas enfurecidas dando declarações sobre algum suspeito, meu cérebro entra em estado de absoluta atenção. Basta uma palavra para destruir a vida de uma pessoa. Para sempre. Pessoas foram condenadas à morte assim, para só depois se descobrir que eram inocentes. Adivinha a cor da maioria delas? Acertou.
Trabalho no Judiciário e já vi uma profusão de processos que espelham exatamente a situação do ator e vendedor Vinícius. Basta uma acusação e a cadeia é certa, inevitável e praticamente insolúvel. Não é apenas roubo, mas isto e tráfico é o mais comum. Ninguém pensa que a testemunha pode ter-se equivocado; ninguém se recorda que a vítima, nervosa e revoltada, pode ser traída pelo turbilhão emocional e pelo desejo de reparação ou mesmo de punição. São sentimentos humanos, que não recrimino. Até já passei por isso, em assalto que sofri. Meu réprobo não se dirige às testemunhas e vítimas, mas ao sistema.

Nunca soube de um delegado que tenha, procurando acalmar a vítima, ponderado se não haveria possibilidade de um equívoco. Provavelmente, o policial não considera seu dever funcional questionar, mas tão somente processar o caso, torná-lo uma acusação idônea a chegar ao judiciário. É um defeito grave, originário, porque o delegado deveria ser o primeiro a se questionar se há mesmo justa razão para a instauração do inquérito, para a prisão em flagrante, para o constrangimento de uma pessoa.

Li matéria dizendo que a vítima, após muito refletir, voltou à delegacia e admitiu o engano. O delegado responsável, então, teria admitido que a prisão era indevida, mas teria dito que, mesmo assim, Vinícius teria que responder à acusação, em juízo. Jesus Cristo, como é possível?! Uma acusação errada vira uma ação penal só para que, ao final, eu absolva o acusado?! Esse delegado parou no tempo? Esqueceu, de cara, que compete ao Ministério Público decidir se oferecerá denúncia. E caso haja denúncia, após mudança no Código de Processo Penal, hoje é possível ao juiz absolver sumariamente o réu considerando os termos da defesa preliminar.

No caso de Vinícius, qualquer coisa é abusiva. O rapaz foi preso porque a vítima o "reconheceu" a partir de duas características: cabelo black power e uma camisa preta. Oi? Nada sobre a fisionomia, voz, alguma característica exclusiva? O cabelo dele nem é grande. Se for por cabelo crespo e camisa preta, eu mesmo posso acabar preso qualquer dia desses. Embora eu seja um tanto desbotado, à noite todos os gatos são pardos. Convém não caminhar pela rua tarde da noite. Vá de carro, meu amigo. Quem tem carro é cidadão de bem.

Naturalmente, estas cautelas todas seriam desnecessárias se o suspeito fosse preso com o produto do crime. Mas Vinícius não possuía nenhum dos objetos mencionados pela vítima. Nem arma ou qualquer outro indício que pudesse relacioná-lo ao roubo. Foi, apenas, o primeiro negro com cabelo e camisa confundíveis que se avistou. Se estava às proximidades e cabia no estereótipo, era ele. Simples assim. Repito e insisto: a vítima está emocionalmente afetada. Dá para desculpá-la por suas falhas. Não podemos ter a mesma tolerância com a polícia. Ainda mais porque, segundo reportagem do G1, constou da ocorrência que o policial militar condutor do preso justificou o fato de não ter encontrado nenhum pertence da vítima em posse de Vinicius porque ele teria passado a res furtiva para uma pessoa de alcunha "Braço". No entanto, nenhuma diligência foi empreendida para checar essa informação. É sempre assim: o policial recorre a sua suposta rede de informações prévias e todo mundo acredita nele sem questionar. Com isso, qualquer inocente vira bandido contumaz e com larga rede de comparsas.

Enfim, o delegado de polícia pediu a libertação de Vinícius, que se encontra sob a humilhação e a violência do cárcere desde o dia 10. Já são 16 dias de inferno. E só vai sair porque houve mobilização em seu favor, mas não qualquer mobilização, porque muita gente que é presa também conta com isso. Só que ninguém dá a mínima. Delegado, promotor, juiz, em geral todos entendem que a alegação de inocência é mais uma malandragem do vagabundo e concordam que ele deve mesmo responder ao processo preso, porque é grande o risco de reincidência, de ações que possam comprometer a ação penal e para dar uma resposta rápida à sociedade, que fica abalada com delitos de tão extrema gravidade.

Vinícius, mesmo fulminado pelo estereótipo racista do brasileiro, ainda é um ponto fora da curva. Por ter feito um papel na Rede Globo, acreditaram quando ele alegou inocência, quando seus amigos comprovaram que ele trabalha em uma loja, onde por sinal é considerado um excelente vendedor; destacaram que ele voltava para casa a pé a fim de economizar dinheiro para um novo curso de teatro, etc. Não fosse o nome da Globo, e consequente repercussão em todos os portais de notícias, Vinícius seria apenas mais um negro alegando inocência para tapear o sistema. E talvez se dizer ator ainda o prejudicasse mais!

E ainda tem gente que menospreza e repudia o garantismo penal.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bom dia professor querido (sei que você não gosta muito de ser assim chamado, mas não resisti),
Muito bom ler este post, apesar da infelicidade do caso e da habitualidade com que estes tipos de erros ocorrem, eu estava, neste exato momento, buscando algum bom exemplo para citar em minha monografia, cujo tema será a fragilidade dos relatos testemunhais no processo penal, onde tentarei abordar, também, a questão dos estereótipos.
No mais, deixo um grande abraço de saudade.

Yasmin Santiago

Yúdice Andrade disse...

Minha querida, eu apenas pedia para ser chamado pelo nome, mas adoro ser chamado de professor. Isto é um grande elogio para mim, a despeito do odioso desserviço prestado pelos técnicos de futebol...
Fico feliz que tenhas encontrado um tema para a tua monografia. O pouco que comentaste sugere algo interessante. Daqui, disponho-me a ajudar no que for possível. E começo lembrando: se vais falar de estereótipos, Zaffaroni é citação necessária.
Outro abraço imenso. Também sinto a tua falta.