A imprensa noticiou ontem o inusitado caso de uma empresa de consultoria de empregos, sediada no Município paulista de Sorocaba, que disponibilizou um formulário on line, a ser preenchido pelos interessados em contratar, a fim de definir o perfil dos possíveis candidatos aos empregos. O problema é que uma das opções constantes do formulário era "preconceito de cor", havendo um campo para marcar "sim ou não".
O resultado, previsível, foi uma repercussão negativa e o site, claro, até já está fora do ar. Tanto que pincei essa imagem aí ao lado do Kibeloco. O famoso site humorístico, por sinal, fez um texto inesperadamente raivoso, a ponto de incluir uma pergunta estilo Datena ("cadê o Ministério Público?") e de mencionar a inafiançabilidade do crime de racismo. Aí mexeu no meu setor, motivo desta postagem.
A questão é: o titular de uma empresa agenciadora de empregos, ao questionar seus possíveis clientes sobre se têm preconceito de cor como critério de indicação de candidatos, comete crime de racismo?
Inicialmente, forçoso reconhecer que a empresa, ao proceder dessa forma, chancela em alguma medida o preconceito alheio. Não no sentido de concordar com ele (podemos até supor, para fins de argumentação, que o dono da empresa se sinta repugnado ante a ideia), mas no sentido de considerá-lo um critério razoável de empregabilidade. Pode ser um excessivo pragmatismo: ciente de que o preconceito é um fator socialmente concreto, o empresário decidiu agradar os clientes, falar a linguagem deles. Afinal, isso otimiza os seus serviços. Indicações mal sucedidas podem arranhar a imagem da empresa agenciadora que, convenhamos, exerce uma atividade econômica. Ninguém está nessa por passatempo, e sim para ter renda, gerar empregos, etc.
A preocupação prioritária do empresário em reduzir o risco de indicações mal sucedidas, à custa de referendar implicitamente o ódio racial, constitui racismo? Honestamente, considero discutível. Constitui crime de racismo? Quanto a isto, minha resposta taxativa é não.
O fundamento legal para a questão é a Lei n. 7.716, de 1989, fonte habitual de notáveis erros jurídicos. Com a redação que lhe foi dada pelas Leis n. 9.459, de 1997, e n. 12.288, de 2010 (e duas outras, mais pontuais), referido diploma pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Os tipos penais dela constantes são previstos dos arts. 3º a 20 e, à exceção do último, todos eles têm em comum o fato de representarem obstáculos ao exercício de algum direito por motivo de discriminação ou preconceito. A hipótese que mais se aproxima do que ora discutimos é a do art. 4º ("Negar ou obstar emprego em empresa privada: Pena — reclusão de 2 a 5 cinco anos."). Há outras condutas derivadas.
O § 2º do aludido artigo determina o seguinte: "Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências."
A pergunta que eu gostaria que fosse respondida com isenção, desapaixonadamente, é: a empresa em questão negou ou obstou emprego a alguém? A resposta só pode ser negativa. Quem poderia perpetrar tal conduta seria o contratante, não o agenciador. Aliás, o agenciador não se beneficiaria com tal medida, pois quanto mais pessoas ele puder alocar no mercado de trabalho, melhor.
Aí você dirá: mas ele incorreu na particularidade daquele § 2º! Foi mesmo? Leia com mais atenção. O texto se refere a quem exige características raciais ou étnicas como critério de recrutamento. No caso ora examinado, a empresa não exigiu, nem pediu, nem condicionou, nem nada do gênero. Ela sondou os possíveis contratantes sobre a opinião deles. Tal publicidade, por sinal, nem se destina aos prejudicados, mas aos contratantes.
No âmbito penal, vigora o princípio da taxatividade: a norma deve ser clara e a conduta realizada deve corresponder exatamente à moldura legal. Para você, pode não fazer nenhuma diferença ética exigir ou pedir. Para o direito penal, faz toda a diferença. Entendo a sua contrariedade, mas não existe crime aqui. Para mudar essa situação, só mudando a lei.
Se algum outro penalista quiser discordar, gostaria de conhecer seus argumentos. E, claro, de bom grado receberei as demais opiniões sobre o caso em si. Mas minha análise penal é esta, convicta. Embora, no plano ético, eu concorde que a ocorrência de uma situação como esta depõe miseravelmente contra a sociedade que somos. Mas isso não é nenhuma surpresa, é?
2 comentários:
Ñ vou me aventurar a discutir se a conduta se amolda ou ñ ao tipo penal, deixando isso com vcs, bem mais estudiosos, limitando-me a afirmar que, a princípio, concordo com seus argumentos.
Decidi comentar algo que percebi na postagem e queria que vc confirmasse se pensei certo ou minha imaginação foi longe.
Verifiquei que vc utilizou 2 imagens nitidamente contra o racismo, como um ato simbólico, na linha do "se algum jumento ñ entender que sou contra o racismo e que ñ estou defendendo uma suposta prática, ao menos as imagens servirão como desenho".
Isso porque, no mundo de hj, em que além de nos preocupar com o que escrevemos, temos que pensar no que pessoas com dificuldade de interpretação de texto vão pensar sobre o que escrevemos, ñ deixa de ser prudente utilizar "desenhos".
E aí, fui longe na imaginação ou faz algum sentido?
P.S. Pensei a respeito da sua resposta e refleti sobre o que falei no post passado. De fato, ainda que a sede de violência da humanidade seja remota, considerando as opções atuais e td o que já avançamos em algums aspectos, ñ deixa de ser mais reprovável esse comportamento nos dias de hj.
Bom feriado!
Ora, Rita, ouvi dizer que tiveste ótimas aulas de Direito Penal! ;)
Para ser honesto, eu realmente não pensei em ilustrar a postagem como recurso para tornar clara a minha posição sobre o tema. Mas, indo mais fundo, o fato de eu não ter pensado não significa que, ao nível do sub-consciente, não tenha ocorrido exatamente o que pensaste - e, inclusive, pelo motivo que pensaste.
Na lógica do tudo-em-mim-quer-me-revelar, pode ser que estejas coberta de razão. Vou meditar sobre isso. Abraço.
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